segunda-feira, 27 de maio de 2024

Dora Kramer - Faz de conta, FSP

 Paulo Vanzolini conta em um de seus memoráveis sambas que, na praça Clóvis paulistana (posta abaixo nos idos dos anos 1970 para dar passagem ao metrô), um dia a carteira dele foi batida. "Tinha 25 cruzeiros e o teu retrato", relata. E, em mágoa de amor, conclui: "25, francamente achei barato pra me livrar do meu atraso de vida".

É o que ocorre com os infratores da regra da chamada pré-campanha eleitoral, cuja penalidade máxima é uma multa de R$ 25 mil para quem pedir votos para si ou para apadrinhados. Sai quase de graça a infração para quem deseja se livrar do atraso de vida que a lei impõe no período antecedente ao início oficial da corrida eleitoral, neste ano marcada para 16 de agosto.

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O deputado e pré-candidato a prefeito de São Paulo Guilherme Boulos e o presidente Lula, no palanque do ato das centrais sindicais em comemoração ao Dia do Trabalhador - Zanone Fraissat/Folhapress - Folhapress

Aconteceu outro dia com o presidente Lula por causa do pedido de votos ao pré-candidato a prefeito Guilherme Boulos (PSOL-SP) no palanque de uma comemoração do 1º de Maio. Incomparável o ganho presumido com o apelo explícito em relação aos danos da penalidade imposta.

Vale o risco, posto que irrisório, descontado o cunho imoral da infração legal para o qual não se dá importância —nem a Justiça Eleitoral, dona da norma feita letra morta na prática. Afinal, a própria legislação é frouxa na definição do que seria exatamente o conceito de pré-campanha. Ninguém sabe direito o que pode ou não pode.

Vimos isso no julgamento que absolveu o senador Sergio Moro (União Brasil-PR) por ausência de provas consistentes e provavelmente veremos no caso do senador Jorge Seif (PL-SC), também acusado de irregularidades antes do prazo regulamentar.

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Ou bem se define o regramento com rigorosa clareza e são impostas punições efetivas —por exemplo, a possibilidade do risco ao registro de candidaturas— ou seguiremos no faz de conta.

Vale lembrar que campanha é campanha, antes ou depois do marco temporal hoje desrespeitado numa rotina de total desfaçatez.


As mariposas e o conservadorismo, Ligya Maria, FSP

 Até o início do século 19, quase todas as mariposas de Manchester, na Inglaterra, tinham asas brancas. Mas a fuligem das fábricas cobriu as árvores da região e dificultou a camuflagem do inseto, que passou a ser capturado mais facilmente por predadores. Com isso, a mariposa de asas escuras, antes ínfima minoria, floresceu e, após cerca de 100 anos, já era dominante no ecossistema.

O fenômeno, conhecido como melanismo industrial, é relatado pelo conde Alexander Rostov, personagem da série "Gentleman in Moscow" interpretado por Ewan McGregor. O aristocrata perde tudo na Revolução de 1917, escapa do fuzilamento por ter um amigo bolchevique e é condenado a passar o resto da vida num hotel no centro de Moscou.

As mariposas de Manchester, um caso clássico de seleção natural, são usadas por Rostov para apontar a barbárie intrínseca a qualquer tipo de revolução ou golpe.

Afinal, mesmo com a intervenção humana na natureza, foi necessário um século para que as traças escuras estabelecessem seu domínio.

Na Rússia socialista, milhares de pessoas inocentes foram encarceradas e assassinadas pelo Estado em poucos meses —prisões e matanças se seguiram por décadas. Nem mesmo a cultura (música, literatura, pintura, gastronomia, religião, arquitetura etc.) escapou do massacre.

Rostov representa a contenção conservadora que visa proteger princípios civilizatórios básicos.

O conservadorismo não é contra o novo, ele busca apenas preservar as conquistas de uma sociedade e a dignidade humana, ante transformações bruscas que não passaram pelo teste do tempo —o que inclui mudanças políticas e econômicas, no meio ambiente ou de aspectos culturais cotidianos, como a linguagem.

Essa é a perspectiva de filósofos como Burke e Oakeshott, que, como as alvas mariposas, não consegue se reproduzir no debate público brasileiro. Toda crítica a teses heterodoxas progressistas é tachada de bolsonarismo, que, por sua vez, não passa de populismo retrógrado.

A Universidade de São Paulo e os seus tribunais raciais, Michel França - FSP

 Em março, a Universidade de São Paulo gerou controvérsia ao barrar um aluno por não considerá-lo pardo. Como de costume, logo apareceram os críticos às cotas raciais.

Aqui na Folha, por exemplo, a colunista Lygia Maria comparou as bancas de avaliação fenotípica aos tribunais raciais de regimes eugenistas. Wilson Gomes seguiu caminho semelhante ao argumentar que tal política era uma esquisitice republicana.

Agora que a pauta parece ter esfriado, é possível discuti-la sem se deixar influenciar pela repercussão gerada pelas reações emocionais do calor do momento, quando muitos são seduzidos a criar argumentos para agradar a torcidas. No entanto, analisar política pública não se resume a inflamar torcidas para promover audiência.

Política pública é sobre a vida das pessoas. É sobre avaliar os custos e benefícios de cada intervenção. É buscar criar soluções mais eficazes para que cada membro da sociedade possa atingir seu potencial. Discutir política pública significa ir além de nossas crenças e examinar cuidadosamente a literatura sobre o assunto.

Em debates relacionados às minorias, isso é ainda mais emblemático. Muitos têm algum ressentimento derivado de atitudes, nem sempre republicanas, de militantes que estão na linha de frente lutando por mudanças. No entanto, apesar dos desconfortos gerados por tais atitudes, uma rápida olhada na literatura ajudaria muitos a entender a profundidade dessa agenda.

As desvantagens enfrentadas pelos negros começam antes mesmo do nascimento. Estudos mostram a existência de disparidades no desenvolvimento das crianças negras resultantes das condições socioeconômicas e do viés racial durante o período de gestação ("Essays on Economics of Education: Racial Inequality, Social Norms, and Childcare Impact on Schooling"). Após o nascimento, as próprias famílias podem discriminar investindo mais na educação do filho de pele mais clara ("Is parental love colorblind? Human capital accumulation within mixed families").

Na ilustração de fundo verde claro, um homem está atrás de um púlpito, ele usa um terno, uma toga e gravata. Abaixo, mãos com punhos cerrados, de tonalidades diferentes aparecem.
Aline Bispo

Na escola, também há evidências de que os professores discriminam as crianças negras ("Racial Discrimination in Grading: Evidence from Brazil"). Uma vez no mercado de trabalho, mesmo quando analisamos trabalhadores com características produtivas semelhantes, os negros recebem cerca de 14% a menos que os brancos, um padrão que tem se mantido constante ao longo dos últimos 40 anos (Números da Discriminação Racial).

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Desse modo, um pequeno esforço em procurar olhar para evidências ao emitir uma opinião leva à conclusão de que o Brasil, em si, é um grande tribunal racial que gera uma competição desleal para os negros. Confesso que demorei um tempo para compreender isso, pois não tinha o menor interesse pela agenda racial. No entanto, a própria USP ajudou nesse processo.

Não faz muito tempo que estudei lá. Quando entrei na instituição, ainda não havia cotas e não era incomum os professores mencionarem que eu lembrava um jogador de futebol. Embora, dentro das quatro linhas, minha habilidade com a bola nunca tenha me permitido ultrapassar duas ou três embaixadinhas.

Com o tempo, o dia a dia na universidade foi revelando que muitos ali não pareciam tão acostumados a ter a presença de um aluno de pele mais retinta, talvez tampouco de um que tinha um bom desempenho acadêmico. Minha presença e a de outros pouquíssimos pretos na instituição representavam a quebra de um imaginário da posição do negro na sociedade brasileira.

Certa vez, um colega da elite carioca comentou: "Não sei como uma pessoa como você tira notas altas". Bem, dada a baixa expectativa que muitos têm em relação aos negros, é possível que até hoje eu continue surpreendendo não somente a ele como também parte dos professores que tive naquela instituição e fora dela.

O texto é uma homenagem à música "Umbabarauma", composta por Jorge Ben Jor, interpretada por ele e Mano Brown.