sábado, 27 de abril de 2024

A publicidade de atos processuais é cláusula pétrea, Luís Francisco Carvalho Filho - FSP

 A publicidade dos processos é direito do cidadão, interesse da coletividade e dever do Estado.

Os julgamentos podem ser defeituosos. Omissão, ignorância, preconceito, corrupção, interesse, abuso de autoridade, intolerância política. Por isso, a Constituição estabelece uma série de garantias concretas, entre elas a de que "a lei só pode restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem".

É uma cláusula pétrea, imutável, proibitiva. Estende-se por toda a administração pública e se impõe a todos os seus agentes.

Exceções existem, é claro. Para a proteção da intimidade, no direito de família (casamento, sucessão, guarda de filhos) e em questões de crianças e adolescentes, por exemplo, o sigilo processual é absoluto. É bom que assim seja, mas em determinadas circunstâncias o segredo se dissipa. Se o divórcio de um governante revela hipótese de enriquecimento ilícito, ele –é bom que assim seja– não pode permanecer oculto.

A eficácia plena do princípio constitucional da publicidade enfraquece quando o segredo de Justiça se fundamenta em interesse público ou social. A subjetividade conspira contra a transparência.

O Código de Processo Penal diz que "a autoridade assegurará o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade". As medidas cautelares, como busca e apreensão ou interceptação telefônica, são protegidas pelo sigilo total. Nem o investigado tem acesso e a explicação é óbvia. A surpresa é essencial para encontrar evidências. A publicidade extemporânea tornaria as iniciativas inúteis.

No âmbito do processo criminal, o sigilo tem prevalecido, muitas vezes por hábito, mas o princípio constitucional ainda é o mesmo. A publicidade é a regra.

Peça "Segredos de Justiça", dirigida por Marco André Nunes
Cena da peça 'Segredos de Justiça' - Divulgação

São duas vertentes de valores. Em primeiro lugar, o defensor do réu ou do investigado tem direito a ter acesso amplo a elementos de prova já documentados. É súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal. A autoridade não pode esconder ou manipular o momento de exibição do que, em tese, já deveria estar acessível, pelo menos para os advogados da causa, sob pena de acentuar o caráter kafkiano da Justiça.

Por outro lado, existe o interesse público, difuso, de aferir a lisura ou a nulidade dos procedimentos.

O sigilo dos autos não pode prevalecer, por exemplo, porque é interesse das partes, salvo em caso de juízo arbitral. Os arquivos forenses são um manancial inestimável para ensaios biográficos e históricos. Negar informações de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, se o sigilo não é imprescindível para a segurança da sociedade e do Estado, é delito de responsabilidade.

Nesse contexto, não podem ser ignoradas as reclamações desferidas contra o ministro Alexandre de Moraes pela cruzada essencial que adotou em favor da democracia.

Segredos que se perpetuam geram desconforto político. O Supremo deveria tornar de conhecimento geral, logo e sem exceções, tudo que se investigou.

Em matéria de punição criminal ou de restrição à liberdade de expressão ou de informação jornalística, a "jurisprudência" restritiva que se tem produzido tem implicações desastrosas e autoritárias.

Basta imaginar um magistrado bolsonarista, como o ministro Kassio Nunes Marques, empenhado em banir, em outros tempos, as manifestações "comunistas" que supostamente contaminam o noticiário e as redes sociais.

'Cashback' torna mais caro e ineficiente o que Bolsa Família já faz, Rodrigo Zeidan ,FSP

 De boas ideias o inferno está cheio, diz o ditado. E a proposta da reforma tributária de devolução de impostos ("cashback") nas contas de energia elétrica, água, esgoto e gás natural é uma delas.

A essência do projeto é excelente: diminuir a incidência de impostos sobre as famílias mais pobres da sociedade. Essa proposta contemplaria as famílias com renda per capita de até meio salário mínimo inscritas no Cadastro Único, o mesmo parâmetro usado para o Bolsa Família. Mas ela falha por criar mais burocracia, o que vai tornar o processo muito mais caro e ineficiente do que simplesmente aumentar o valor do Bolsa Família.

Sabemos há anos que a melhor política social da história brasileira é o Bolsa Família, que faz exatamente isso, transferência de renda na veia com resultados surpreendentes, como melhorar o nível educacional das comunidades, não só das famílias que o recebem.

Roberta Aline/MDS

O Bolsa Família chega até a aumentar o nível de emprego formal, especialmente em cidades pobres —um incremento de 10% no número de beneficiários acrescenta 1% ao total de vagas com carteira assinada.

Se o Bolsa Família é tão bom, por que não simplesmente aumentar o valor do benefício em vez de criar barreiras, já que as famílias receberiam o reembolso somente depois de apresentar notas fiscais?

O programa de "cashback" falha por duas razões: cria estorvo para as famílias e burocracia nova para o Estado. Tudo isso para fazer o que o Bolsa Família já faz: entregar renda diretamente.

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Já sabemos que transferências de renda incondicionais são tão boas quanto as condicionais, resultado robusto de pesquisas científicas nas últimas décadas. Por que diabos o governo está voltando a criar condicionantes, baseadas em consumo, quando sabemos que isso não é a forma mais eficiente de fazer políticas sociais?

O único benefício desse programa seria a formalização da relação de compra, pois as famílias mais pobres teriam de apresentar notas fiscais dos bens e serviços. Mas isso chega a ser quase um absurdo, pois transformaria essas famílias em fiscais do governo. O governo não consegue fiscalizar se botijões de gás são vendidos com notas fiscais e coloca o trabalho na conta dos mais pobres.

Para evitar fraudes, o governo também vai ter de criar sistemas de verificação de compatibilidade entre consumo e renda, senão vai ter gente apresentando notas fiscais de R$ 100 milhões.

O objetivo da medida é, em parte, "estimular a cidadania fiscal e mitigar a informalidade nas atividades econômicas, a sonegação fiscal e a concorrência desleal". Mas essa é talvez a pior forma de fazê-lo, pois requer a criação de novos sistemas burocráticos e ainda gera fricções de compras e vendas para as famílias mais pobres, exatamente aquelas que deveriam ser mais livres para tentar melhorar de vida, não ficar gerenciando se pegou as notas fiscais para depois perder tempo na solicitação de reembolso. E uma família vivendo de favor, a que mais precisa, não vai ter direito a nada.

O tempo das famílias mais pobres não é de graça. Sistemas burocráticos custam dinheiro. A possibilidade de fraude aumenta sobremaneira.

O governo deveria esquecer essa ideia de "cashback" e simplesmente aumentar a renda dos mais pobres. Ou talvez subsidiar mais as tarifas sociais de energia elétrica (já que o sistema já existe).

Sabemos onde a criação de nova burocracia no Brasil dá. Em ineficiência e corrupção. Pode ser que dê certo, mas eu não apostaria uma nota fiscal nisso.

Demétrio Magnoli Ilha da Tartaruga, ocupada, FSP

 Nos campi dos EUA, os acampamentos de protesto reivindicam, formalmente, a ruptura dos laços acadêmicos e financeiros das universidades com instituições e empresas israelenses. "Manifestações pró-Palestina", na descrição protocolar da imprensa? Canta-se "do rio até o mar, Palestina é tudo que se vê" e "Intifada, revolução!". O nome certo não seria "manifestações anti-Israel"? Ou, mais longe, "pró-Hamas" e "antissemitas"?

Não é justo acusar de antissemitismo as numerosas minorias de estudantes que aderem aos protestos. A centelha deflagradora das manifestações foi a criminosa punição coletiva da população de Gaza conduzida pelas forças de Israel. O material inflamável depositou-se ao longo da ocupação sem fim, agravada pela sabotagem das negociações de paz pelo governo de Netanyahu. Contudo, no caso, é imperativo distinguir a massa dos manifestantes das lideranças dos acampamentos.

Manifestantes pró-Palestina acampados no campus da Universidade Columbia, em Nova York
Manifestantes pró-Palestina acampados no campus da Universidade Columbia, em Nova York - Spencer Platt - 22.abr.24/Getty Images via AFP

A expressão "manifestações espontâneas" quase sempre indica apenas a ignorância do narrador. Espontâneo é espirro, não atos políticos. Os protestos nos campi têm direção. São convocados por redes de organizações microscópicas que, finalmente, encontraram um palco iluminado, como Estudantes pela Justiça na Palestina (SJP), Muçulmanos Americanos pela Palestina (AMP), Ação Palestina (PA), Movimento Jovem Palestino (MYP) e Samidoun. Há, inclusive, a Voz Judaica pela Paz (JVP), um grupo judaico que prega a diluição de Israel num "Estado binacional" –e, portanto, a transformação dos judeus israelenses em minoria étnica.

Todas negam que sejam antissemitas, classificando-se como antissionistas. Praticam um jogo de palavras ilusionista. Nos seus sites, encontra-se o mapa da "Palestina livre", que incorpora todo o território de Israel, mas nunca a defesa da paz em dois Estados. Não faltam símbolos e imagens associados ao Hamas e até, em alguns casos, celebrações explícitas do ato terrorista de 7 de outubro.

Daí, nos protestos, emergem cartazes com a sentença "Nós somos Hamas", cânticos em louvor à Al-Qassam, o braço armado da organização fundamentalista, e gritos de "judeus, voltem para a Polônia". As bombas retóricas de fragmentação atingem os estudantes judeus, submetidos a incontáveis ameaças e gestos de intimidação.

Ideologia? Acima de um substrato de nacionalismo palestino radical, identificam-se os marcadores típicos da "esquerda decolonial". A SJP conecta a luta pela libertação da Palestina ao combate à "ocupação" da Ilha da Tartaruga, o nome "decolonial" do que hoje são os EUA e o Canadá, inspirado pelo mito de origem dos índios Lenape.

A "esquerda decolonial" é uma derivação do movimento identitário que enxerga na expansão histórica europeia (isto é, "branca") as fontes do capitalismo, da opressão e do mal. São narrativas do paraíso perdido: perdeu-se a sagrada Ilha da Tartaruga com a chegada dos colonos do Mayflower; perdeu-se a Jerusalém árabe com o advento da imigração sionista.

No lugar da luta de classes marxista, o movimento "decolonial" engaja-se numa utopia de restauração purificadora: "povos originários" versus "brancos europeus". Sob esse prisma, Israel coagula uma implantação do imperialismo europeu no Oriente Médio árabe-muçulmano que deve ser abolida.

Democracia representativa, direitos, liberdades políticas? Tais invenções "europeias" são descritas como ferramentas da dominação "colonial". Do pressuposto escorre uma indisfarçável admiração pelo Hamas. A pulsão "decolonial" não se restringe a grupúsculos de jovens ativistas. Na Universidade Columbia, quase 170 professores subscreveram uma declaração sugerindo que "pode-se interpretar" o 7 de outubro "como exercício do direito de resistência por um povo ocupado".

O movimento "decolonial" é, intrinsecamente, antissemita. Sorte de Netanyahu, que ganha um álibi providencial. Azar dos palestinos.