terça-feira, 28 de novembro de 2023

A inteligência artificial precisa de sessões de catequese, João Pereira Coutinho, FSP


1.

Sempre penso em inteligência artificial quando levo meu filho à catequese. Estranha associação? Talvez, leitor. Mas eu sou estranho e agora é tarde para mudar.

Não pretendo que ele seja crente. Ele será o que entender: crente, agnóstico, ateu –viver e deixar viver é o lema da casa.

Mas gostaria que, na infância, ele adquirisse algumas noções básicas sobre essa "moralidade de escravos", para citar um célebre filósofo alemão que terminou sua carreira abraçado a uma cabeça de cavalo.

Compaixão pelos mais fracos. Capacidade de perdão. Responsabilidade moral pela sua conduta. Respeito pela essencial dignidade de todos seres humanos.

Nada de especial: esses valores, que começaram no cristianismo, acabaram por definir os códigos legais e éticos da civilização ocidental. Não foram os únicos, certo, mas foram os essenciais.

Verdade, grande verdade: essa civilização nem sempre esteve à altura deles. Sua longa lista de barbáries –a Inquisição, as guerras religiosas, o tráfico de seres humanos etc.— é a prova definitiva de que a prática nem sempre cumpriu a teoria.

Mas, como lembrava o historiador Tom Holland no seu "Domínio", mesmo quando criticamos cada um desses crimes, é a linguagem cristã secularizada que usamos, não a ética do paganismo romano.

Repetindo: é indiferente se somos crentes, agnósticos ou ateus. É indiferente se somos de esquerda, de direita, ou nem uma coisa nem outra. Nossa gramática moral é tributária de Jerusalém, mesmo quando pensamos que não é.

E a inteligência artificial? Que tem a ver com o assunto?

Tem tudo. Sou leigo em tecnologia: como dizia um personagem de Woody Allen, eu nem sei como funciona o abridor de latas.

E, entre "doomers" e "boomers", venha o diabo e escolha. Os primeiros afirmam que a IA vai ser nosso fim. Os segundos acreditam que será a nossa salvação. Não me meto em tais polêmicas.

Mas sorri quando, recentemente, um dos grandes otimistas sobre o assunto, Yann LeCun, declarava ao Financial Times que não existe uma relação necessária entre superior inteligência e desejo de domínio. Os medos da humanidade sobre máquinas hiper-inteligentes não fazem o menor sentido.

Quando li as palavras de LeCun, pensei: "Você tem de contar essa à restante criação animal".

Aliás, não apenas aos bichos; em 2023, creio que já temos alguns argumentos para afirmar que inteligência nem sempre é virtude. Havia nazistas inteligentes, até brilhantes: Heidegger, Hans Freyer, Carl Schmitt. Comunistas, idem: Aragon, Gramsci, Sartre. E daí?

Uma grande inteligência é um grande ponto de interrogação. E os seus excessos mais patológicos só podem ser freados por "sentimentos morais" que brotam de outra fonte. Eles são a derradeira esperança para domar a besta que há em nós.

Nas discussões sobre o futuro da IA, fala-se muito de engenharia, informática ou matemática. Mas eu talvez começasse por levar o algoritmo a sessões de catequese.

Um abridor de latas modelo barbatana  de tubarão tenta usar um abridor de latas modelo alicate.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 27 de novembro de 2023 - Angelo Abu

2.

Mudando de assunto, "ma non troppo": minha coluna da semana passada rebentou com meu email. Foram centenas de críticas. Tudo porque escrevi que as novas gerações têm aprendido bastante com prof. Osama bin Laden no repúdio ao Ocidente.

Sua "Carta à América" viralizou no TikTok e em outras redes sociais porque os delírios de Osama, evidentes em 2002, deixaram de ser tão evidentes assim em 2023.

Meu único erro, admito, foi não ter acrescentado que todos aprendemos com todos: Osama, hoje, encanta os ocidentais; mas Osama também foi encantado por eles –na sua casa paquistanesa, por exemplo, as tropas encontraram livros de Noam Chomsky, o famoso linguista que atribui todas as misérias mundiais ao poder oculto das grandes corporações americanas.

Como escrevi na época, isso não tem nada de original: a retórica do jihadismo também deve seus "hits" a vários autores ocidentais que, muito antes de Osama, ofereceram aos terroristas a imagem de um Ocidente decadente, espiritualmente vazio, predatório ou simplesmente genocida, sem nada que o salvasse. Autores de extrema esquerda ou de extrema direita, atenção.

Existe até um livro de Ian Buruma e Avishai Margalit que conta essa história com detalhe: "Ocidentalismo".

No fim das contas, razão tinha o filósofo alemão da cabeça de cavalo: tudo é um eterno retorno.

Jesus aprendeu a perdoar os homens por ser como eles, Manuela Cantuária, FSP

 O livro que atualmente jaz sobre minha mesa de cabeceira, pasmem, é uma Bíblia Sagrada. Aos desavisados que entram em meus aposentos, me justifico dizendo que estudo personagens complexos de narrativas, mitologias e textos religiosos.

Nesse sentido, Jesus sempre me intrigou bastante. Antes da ascensão do cristianismo, as divindades costumavam ser representações extremamente humanas, contraditórias, que perdiam o controle, sentiam raiva e rancor, vacilavam e aprendiam com seus vacilos.

Em um tempo em que não existia terapia, essas narrativas ofereciam lições emocionais pela identificação com protagonistas humanos como nós. Jesus, no entanto, com sua fama de evoluído, pacífico e galeroso, me parecia uma espécie de contraponto. E eu me perguntava por que essa representação é tão poderosa, sendo a exceção de uma regra tão básica.

Por isso, às vésperas do aniversário dele, estou lendo o maior best-seller de todos os tempos, a Bíblia Sagrada. Só assim consegui entrar em contato com o lado mais humano de Jesus e, surpreendentemente, identificar um complexo arco de transformação relacionado ao perdão.

Desenho de Jesus Cristo voando entre as nuvens
Ilustração de Silvis para coluna de Manuela Cantuária de 27 de novembro de 2023 - Silvis/Folhapress

É Jesus que ensina aos homens o conceito de inferno, pouco explorado no Antigo Testamento. O Deus do Antigo Testamento aplicava punições extremas aos homens, como o dilúvio e as pragas do Egito, mas todas essas punições tinham um fim, que era a morte.

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O castigo eterno é sempre desproporcional, não importa o tamanho da dor e o sofrimento que tenha sido causado por esses pecadores. Até porque esses pecadores não têm consciência das consequências de suas ações, ou pensariam duas vezes antes de cometer tais pecados.

Ao longo de sua trajetória, Jesus condena inúmeras pessoas, populações de cidades inteiras, ao castigo eterno, por motivos variados. Amaldiçoa até uma figueira por estar sem frutos. É só após ser apedrejado, chicoteado, pregado vivo em uma cruz, que ele suplica a Deus para que perdoe os homens, porque "eles não sabem o que fazem".

Jesus não aprende a perdoar os homens por ser mais evoluído, mas por ser como eles, por sentir na carne a dor da experiência humana. Exatamente da mesma forma, aprendi a amá-lo: não quando conheci suas virtudes, mas quando conheci seu pior lado.

PEDRO MARANHÃO Quando o mercado de carbono vai na contramão da proteção ambiental, FSP

 

Pedro Maranhão

Presidente da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema)

projeto de lei 412/2022, que regulamenta o mercado de carbono no Brasil, foi aprovado em caráter terminativo na Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal, o que impediu o aprofundamento do debate sobre um aspecto importante e que pode trazer grandes prejuízos ao país se não for revisto pela Câmara dos Deputados.

O setor brasileiro de gestão de resíduos atenua os impactos negativos que o lixo não tratado provoca no meio ambiente e na saúde. Somos, portanto, um dos atores na luta contra a poluição e o aquecimento global. Mas o PL 412/2022, equivocada e injustamente, nos coloca no campo dos poluidores. Na base desse equívoco há uma desastrosa confusão entre o que é um lixão e o que é um aterro sanitário.

Aterro sanitário em Ribeirão Preto (SP) - Edson Silva/Folhapress - Folhapress

Todo mundo sabe o que é um lixão. No Brasil existem ainda 3.000 dessas áreas que recebem ilegalmente cerca de 40% do lixo produzido no país. Nelas não há controle ambiental ou sanitário; por isso, causam doenças, contaminam o solo, o lençol freático, os rios e os mares. Além disso, a decomposição dos resíduos lançados em lixões libera na atmosfera grande volume de metano (CH4), poderoso gás de efeito estufa cerca de 28 vezes mais poluente que o dióxido de carbono (CO2). Eliminar os lixões é uma das principais metas da política ambiental no Brasil.

Autoridades, legisladores e políticos deveriam reconhecer a diferença dos aterros sanitários. Essas complexas obras de engenharia têm que ser aprovadas pelos órgãos ambientais e permitem a disposição segura dos resíduos, reduzindo os riscos para a saúde pública e o meio ambiente. O aterro também permite a captura do gás metano e sua transformação em biometano, que substitui fontes fósseis de energia e contribui para a descarbonização da economia.

A regulamentação do mercado de carbono precisa considerar essa diferença crucial. Os operadores de aterros sanitários não são poluidores —pelo contrário, atenuam os danos que os resíduos podem causar. Deveriam ser incentivados. No entanto o projeto aprovado prevê que instalações que emitam mais de 10 mil toneladas equivalentes de carbono serão obrigadas a participar do mercado regulado de carbono.

Aterros que atendem áreas com 30 mil habitantes ou mais ultrapassam esse limite. Assim, já teriam obrigações de reporte e, a partir de certo limite de emissões, até poderão ser sancionados pelas emissões no tratamento dos resíduos gerados por terceiros. Isso vai obrigar os operadores, em vez de venderem créditos pela mitigação que proporcionam, a comprarem créditos, o que tonará mais caros os serviços prestados.

É importante destacar que o Sistema Europeu (EU ETS), no qual o Brasil se espelhou, não inclui a gestão de resíduos no rol de setores regulados. Além disso, no mercado de livre negociação de créditos de carbono, os primeiros projetos no mundo foram de aterros sanitários, o que reforça a incoerência do que está ocorrendo com a regulação do mercado de carbono no Brasil.

Não temos perspectivas de extinguir os lixões com legislações que desestimulam aterros e incentivam o descarte irregular. Esperamos que nossos parlamentares se conscientizem de que o combate às mudanças climáticas não passa por onerar ainda mais um dos maiores aliados nessa batalha.