domingo, 26 de novembro de 2023

BETTY MILAN - O descaso pela vida, FSP (definitivo)

 

Betty Milan

Escritora e psicanalista, é autora de “O Papagaio e o Doutor” e “Baal”; membro da Academia Paulista de Letras

Estava em Paris no dia 7 de outubro. Depois do ataque do Hamas, errei pelas ruas com um profundo sentimento de humilhação. Podia eu pertencer à mesma espécie dos que haviam entrado no kibutz para assassinar qualquer judeu que estivesse a seu alcance? Não parei de ouvir o noticiário, embora não quisesse. Até me dar conta de que ele não me permitiria compreender os fatos.

Comprei um livrinho sobre a história do antissemitismo e reli o Gênesis para me dizer que a história atual repete a do Antigo Testamento. Caim matou Abel. Esaú só não matou Jacó porque, a pedido de Isaac —o pai dos dois—, Jacó migrou com a família. Dina, filha de Jacó, foi estuprada. O assassinato, a diáspora e o estupro foram e são atuais.

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Khaled Joudeh chora sobre o corpo de sua irmã mais nova, Misk, em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza - Samar Abu Elouf - 22.out.2023/The New York Times - NYT

Freud dizia que assim é porque nós somos o produto de gerações e gerações de assassinos. Só que não explica por que nós nos entregamos repetidamente à pulsão de morte. A explicação talvez esteja no fato de que "o inconsciente não concebe a própria morte", como o mesmo Freud afirmou. Por não acreditarmos que somos mortais, nós aceitamos a guerra. Não fosse a descrença, haveria mais gente recusando matar e correr o risco de morrer com as armas.

Cerca de 1.200 israelitas e mais de 11 mil palestinos já morreram na guerra. Mais de 120 mil palestinos tiveram que sair da Faixa de Gaza. A imagem de homens, mulheres e crianças andando com seus burricos em direção ao sul foi comparada pelo correspondente Jorge Pontual, da Globonews, a um "êxodo bíblico".

A filósofa Djamila Ribeiro escreveu nesta Folha uma frase inesquecível: "Não se pode jamais instrumentalizar as lágrimas de uma mãe". Graças à profundidade da comparação e à frase lapidar, eu consegui distanciar-me do horror.

O escritor Albert Camus disse que "nomear algo indevidamente aumenta a infelicidade do mundo". Quem nomeia oferece uma alternativa. Repito a frase de Camus como um mantra, na esperança de que a palavra possa nos salvar. Ou seja, a diplomacia, a resistência dos que não confundem o Estado de Israel com os judeus nem o Hamas com os palestinos. Dos que não ignoram —como disse Edward Gibbon, a história é apenas "pouco mais do que o registro dos crimes, loucuras e desventuras da humanidade"—, mas tampouco se rendem à ignorância e, consequentemente, são contrários a todo fanatismo.

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O descompasso entre a política e a realidade é global, e a indiferença à vida é o nosso denominador comum atual. A palavra genocídio implica intenção explícita de matar. Mas também pode ser aplicada quando a intenção é implícita e os exemplos de genocídio se multiplicam a olhos vistos. Basta sair nas ruas das grandes capitais mundiais e escutar os que não têm país nem abrigo; os que vão morrer de frio nas calçadas dos países do Norte ou "morrer de sol", sem lenço nem documento, como os dependentes químicos e moradores de rua dos países do Sul.

O espaço da fraternidade, Gilles Lapouge, OESP

Um grupo de psiquiatras resolveu se manifestar. Não para defender sua profissão, reclamar aumento de salários ou redução do horário de trabalho. Não. Os psiquiatras estão indignados porque em muitos hospitais doentes são amarrados, presos com correias, condenados, à mínima falta, ao isolamento. Este protesto dos médicos em primeiro lugar tem a virtude da informação. Imaginamos que os métodos descritos por eles estavam confinados ao antigos, realmente antigos, estabelecimentos do século 19, àqueles tempos obscuros e bárbaros onde não havia hospitais psiquiátricos, mas "manicômios". E desses loucos encontramos imagens nos antigos livros de medicina: seres hirsutos, sujos, babando, olhar de animal assustado, a boca aberta como num grito. Homens ou mulheres seminus, com frequência enjaulados e amarrados como um salsichão numa camisa de força. Essa imagens, imaginávamos que tinham desaparecido para sempre. Ora, o protesto dos psiquiatras as atiram diretamente no nosso rosto. Hoje, em 2015, na França, diariamente fechamos, imobilizamos, sangramos pessoas doentes. Essas práticas desumanas praticamente haviam desaparecido. Mas agora estão em claro aumento e, mais ainda, banalizadas como atos quotidianos. Segundo o manifesto dos psiquiatras: "Dizer não às correias que machucam, que provocam gritos, que aterrorizam mais do que tudo, é dizer 'sim' a um mínimo de fraternidade, afirmar que podemos agir de outra maneira". Essas brutalidades - amarrar o doente, aterrorizá-lo, mantê-lo confinado durante semanas na solidão e no silêncio de uma cela - não significa apenas fazer-lhe mal, mas humilhá-lo, aterrorizá-lo e sobretudo encerrá-lo no seu sofrimento infinito, sepultá-lo numa espécie de tumba e levá-lo diretamente à "loucura" contra a qual os médicos têm a missão de protegê-los. Tais revelações são surpreendentes. Há meio século parecia que a França abandonara essas práticas. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, jovens médicos entusiastas sonhavam enterrar esses métodos medievais. Em 1963, nasceu a clínica de La Borde, na qual os doentes não apenas eram tratados como seres humanos, responsáveis e preciosos, mas livres com relação ao seu corpo e seus movimentos e participavam do funcionamento da instituição. Os resultados foram espetaculares. O modelo se propagou na França, claro, mas também nos países vizinhos, em particular na Inglaterra. Mais tarde, no êxtase libertário das revoltas estudantis de maio de 1968, inúmeras tentativas foram lançadas para humanizar ainda mais, chegando ao desvario, a liberdade concedida aos pacientes. Em seguida o bom senso rapidamente retornou e essas audácias foram esquecidas, a tal ponto que hoje são os próprios médicos que denunciam a volta da "velha camisa de força", que agradava tanto às sociedades burguesas dos séculos 19 e 20. O grupo de psiquiatras explica este violento retrocesso pela precariedade dos recursos. O número de psiquiatras e enfermeiras não é enorme, não que sejam mais raros do que antes, mas o prolongamento da vida humana tem por efeito aumentar a população enferma. E os hospitais são vetustos, mal equipados. Temos de pensar também que a psiquiatria é apenas o sintoma de uma tendência mais geral: após os anos de liberdade que se extinguiram bruscamente após as revoltas de maio de 1968, um silêncio absoluto tomou conta da vida social e intelectual da França. O desemprego, as ignomínias do terror islâmico, a deterioração da grande esperança que foi a Comunidade Europeia, o temor dos imigrantes, a insegurança do planeta, os desconfortos da vida urbana, o conformismo dos estudantes angustiados com seu próprio futuro e pouco inclinados ao sonho, tudo isso se combinou para dar nascimento a uma sociedade repressiva, menos feliz e menos indulgente, como para justificar o título do livro do grande filósofo Michel Foucault: Vigiar e Punir. O hospital psiquiátrico será o reflexo ou a sombra da sociedade francesa? Ou o seu microcosmo?

/ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO   

ESTADÃO / ALIÁS Minha Conta Ponto dentro da curva, Alexandre Matias

Os taxistas que comemoraram a proibição do aplicativo Uber em São Paulo na semana passada podem ir tirando seu cavalinho da chuva. Queimem os fogos de artifício enquanto é tempo, pois mesmo que o próprio Uber venha ser proibido no mundo inteiro (algo pouco provável), ele aponta para o futuro inevitável. A era eletrônica começou a engatinhar nos anos 50 e desde seus primeiros passos nos anos 80 pelo menos a cada cinco anos nos apresenta a uma novidade faceira que parece ser transitória, mas se embrenha cada vez mais em nossos dias. Faça as contas: videogame, computador pessoal, web, sites, banda larga, redes sociais, smartphone, internet móvel, aplicativos, tablet. Cada uma dessas novas invenções impulsionou ainda mais a próxima sem necessariamente anular as anteriores. O dispositivo móvel de acesso à internet que carregamos no bolso (e por pura conveniência linguística ainda chamamos de "telefone") talvez seja o primeiro a começar a anular alguns dos anteriores, mas ainda vai demorar um tempo para que desktops e laptops desapareçam da paisagem como máquinas de escrever, videocassetes, mapas de papel e listas telefônicas já desapareceram. Lembra do tempo em que você tinha que chegar em casa na hora em que o telejornal começasse senão você o perdia? Ou da época em que você esperava ansiosamente que determinada música tocasse no rádio pra que você conseguisse gravá-la? E quando você tinha que comprar um disco de plástico prateado com 12 canções quando queria ouvir apenas uma? Pois é, felizmente esse tempo acabou.


Congestionado.Faz sentido esperar um taxi na chuva enquanto um taxista dorme no ponto?

Congestionado.Faz sentido esperar um taxi na chuva enquanto um taxista dorme no ponto? Foto: Gabriela Biló

Muita gente ainda vê a era digital como uma fase passageira, um modismo histérico ou uma bobagem de adolescente. Mas essas mesmas pessoas conversam com a família inteira pelo WhatsApp (pais, primos, filhos, netos, tios, avós), matam a saudade de amigos distantes pelo Skype, brigam sobre política com reaças e comunas e postam fotos dos próprios filhos no Facebook e tiram foto e fazem vídeos que nunca cogitariam fazer na época do filme. Ainda falamos em "entrar na internet" por resquício de comunicação. Estamos online o tempo todo, mesmo quando não estamos olhando pra um de nossos monitores (o "espelho negro" como tão bem definiu o autor inglês Charlie Brooker na série da BBC que leva essa nova era a extremos bem pessimistas). Duas das maiores empresas do mundo - Google e Facebook - não existiam há vinte anos. As profissões da vez em 2015 não existiam em 2005, algumas delas nem em 2010. Quem nasceu no século 21 não faz essa distinção, que é o futuro inevitável. Você alguma vez pensa em acionar a rede elétrica da sua casa quando precisa iluminar um cômodo? Quando dispara o mecanismo de evacuação de seus dejetos orgânicos? Quando se conecta à rede hídrica para ter acesso à água? Não, você simplesmente acende a luz, dá descarga ou abre a torneira (que, em 2015, às vezes não "liga" a água). A geração nascida depois da internet sabe que está na internet, ponto. Não escreve um e-mail, não manda mensagem, não envia um "torpedo" (ugh) ou um "zap-zap" (argh). Simplesmente fala, escreve, chama. Todos estamos em contatos com todos e a tendência é piorar. Nem George Orwell imaginaria um pesadelo tão paranoico que as pessoas levariam seus próprios rastreadores no bolso e voluntariamente contariam tudo sobre suas vidas para todos. Nem Aldous Huxley cogitaria a quantidade de desdobramento de futilidades e preocupações múltiplas que habitam cada recanto da internet. Mas esta é apenas a visão de copo vazio da história. O outro lado desinventa a cidade. A Revolução Industrial foi crucial para atingirmos um novo patamar de progresso, mas para isso abrimos mão de nossas individualidades para nos encaixar nas engrenagens do sistema. Para o mundo funcionar, era preciso assumir um papel predefinido e segui-lo à risca - da escolha do emprego à criação dos filhos, do sistema educacional ao mercado financeiro, do núcleo familiar à política internacional. Isso retirou a humanidade do campo e trouxe a civilização para uma nova realidade, a urbana. Em dois séculos saímos da fazenda e superlotamos as cidades, que estão em seu limite, de diversos pontos de vista. O século 20 foi o século das multidões (nunca houve tanta gente no planeta), mas também o do modernismo, que expandiu e colocou pra fora a mudança de comportamento que estava presa na caixa de Pandora aberta por Freud. E aos poucos as multidões foram percebendo-se formadas por indivíduos, cada um deles era uma pessoa diferente da outra. Precisamos aprender essa tolerância, mesmo que na marra. A era digital crava o final da revolução industrial justamente ao começar desatar o grande nó que é a metrópole, engrenagens urbanas criadas para abrigar multidões a partir de uma série de parâmetros preestabelecidos (séculos atrás) que estão sendo implodidos um a um. Faz sentido esperar debaixo de uma marquise, na chuva, que um táxi passe, quando no quarteirão de trás há um taxista literalmente dormindo no ponto porque não sabe onde o passageiro está? Por que eu tenho que comprar um volume de papel se eu quero ler apenas um artigo? Não posso hospedar um desconhecido quando não estiver usando meu apartamento? Por que preciso esperar uma semana para assistir ao próximo episódio? As respostas podem divergir, mas apontam para o mesmo lado: o futuro. Acostume-se. ALEXANDRE MATIAS É JORNALISTA E DONO DO SITE TRABALHO SUJO