Por Fabio Victor*
Quando assumiu seu primeiro mandato como presidente, em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva expressou aos seus auxiliares incômodo com os militares que lhe acompanhariam como ajudantes de ordens. Achava que poderiam ser espiões. Solicitou ao chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, que fossem substituídos por civis. Carvalho explicou ao chefe que a atividade estava amparada na legislação e o convenceu de que a suspeição era exagerada. Lula logo ficou chapa dos ajudantes de ordens, num dos muitos sinais da relação amistosa que sobreviria com os representantes das Forças Armadas.
É notório, e reconhecido mesmo por antilulistas fardados, que no segundo governo do petista, com crescimento econômico e bonança orçamentária, saíram do papel projetos estratégicos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, com compra de equipamentos para as três forças. E a atuação de Lula de 2003 a 2010 revela um presidente alinhado com anseios da caserna. Desde o princípio, ele vetou qualquer proposta de revisão da Lei de Anistia ou punição por crimes de Estado na ditadura. Escolheu como primeiro interlocutor com os militares o general Oswaldo Oliva, pai de Aloizio Mercadante, que servira ao regime militar e era um entusiasta dos governos do período. No primeiro mandato do ex-líder sindical, houve um embate entre o ministro da Defesa, o diplomata José Viegas, e o comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, ampliado por causa de uma nota da corporação defendendo a ditadura. Viegas quis demitir o general, mas Lula não deixou, e o diplomata então se demitiu. Nelson Jobim, ministro da Defesa no segundo mandato lulista, era (e é) amigo de generais e encampou pautas caras à cúpula militar, como quando formulou a estratégia para barrar a revisão da Lei de Anistia no Supremo Tribunal Federal em 2010 ou ao lançar uma Estratégia Nacional de Defesa e uma Política Nacional de Defesa; sua gestão apaziguadora tanto agradou a Lula que o petista pediu a Dilma para manter Jobim no cargo — pedido que ela atendeu, mas os dois não se bicaram e Jobim logo saiu.
A birra de Lula com os ajudantes de ordens era, portanto, um resíduo da zanga esquerdista com a herança nefasta da ditadura, mas não expressava o perfil conciliatório que está no DNA do líder petista — quase sempre aberto a negociar e mais afeito ao diálogo que ao confronto — e que rapidamente deu o tom de sua convivência com os fardados.
Desastrosa para as relações civis-militares, a politização das Forças Armadas ocorrida nos quatro anos de Jair Bolsonaro foi o ápice de um processo iniciado ainda no governo de Michel Temer e que atingiu escala monumental com seu sucessor, cujo projeto de transformar instituições de Estado em instrumentos político-ideológicos teve êxito parcial. O cenário indicava que o terceiro mandato de Lula seria, nesta área, muito mais espinhoso e conflituoso do que os dois anteriores. Desde a campanha eleitoral, setores do PT, da esquerda e da sociedade organizada alertavam que a bolsonarização dos quartéis exigiria por parte de Lula medidas enérgicas para frear a contaminação política das tropas e circunscrever as Forças Armadas às suas atribuições constitucionais, inclusive com punição para transgressões toleradas e incentivadas por Bolsonaro.
Vacinas
As primeiras medidas do presidente, contudo, demonstraram que a conciliação continuaria a permear a relação. Embora tenha retomado a necessária indicação de um paisano como ministro da Defesa — premissa da subordinação do poder militar ao poder civil interrompida por Temer e Bolsonaro —, o escolhido foi um político de centro-direita, de uma família de usineiros e industriais, elogiado por Bolsonaro e efusivamente acolhido por lideranças militares. José Múcio Monteiro, que começou a carreira na Arena, o partido da ditadura, ex-deputado, ex-ministro lulista e ex-ministro do Tribunal de Contas, foi estrategicamente pinçado para evitar atritos com a caserna. Outra vacina contra crises foi nomear como comandantes das três Forças Armadas os oficiais-generais mais antigos de cada uma delas.
Mas uma intentona se atravessou no caminho, a Intentona Bolsonarista.
O ataque às sedes dos Três Poderes perpetrado por correligionários de Jair Bolsonaro em 8 de Janeiro — cujo apelido toma emprestado o substantivo depreciativo com que os militares batizaram a revolta comunista de 1935 —, embaralhou tudo. É como se uma boiada tresloucada tivesse entrado na loja de cristais que Lula colocara Múcio para proteger.
Desde aquela famigerada tarde uma pergunta não quer calar: qual o papel das Forças Armadas na Intentona Bolsonarista? Ela pode começar a ser respondida com outra questão: os ataques aos Três Poderes teriam ocorrido daquela forma massiva e organizada se não houvesse como base para a turba o acampamento montado em frente ao Forte Apache, o Quartel-General do Exército em Brasília, onde os vândalos se mobilizaram, de onde saíram e para onde voltaram?
Como a resposta é negativa, resta evidente no mínimo a omissão do Exército ao não desmantelar as instalações. Sabia-se que familiares de oficiais frequentavam — viralizou um vídeo em que Cida Villas Bôas, a mulher do ex-comandante do Exército que em 2018 ameaçou o Supremo com um tuíte, visita o local e saúda os acampados. Ainda em dezembro, os comandantes das Forças Armadas divulgaram uma nota em que defendem as vigílias golpistas –cuja pauta principal era o pedido por um golpe militar como resposta à eleição de Lula — em nome da liberdade de expressão. Mais do que isso, em privado os comandantes concordam com boa parte da zanga dos acampados: como eles, acham que Bolsonaro foi vítima de um Judiciário e uma imprensa militantes. É aterrador, mas pode ser pior, pois a cada dia surgem evidências de que no acampamento operou o Estado-Maior do motim e que integrantes das Forças Armadas atuaram diretamente na Intentona.
Sabe-se agora, segundo depoimentos dos malfeitores presos, que as atrasadas tropas do Exército no campo de batalha protegeram quem deveriam combater. Sabe-se que, para além da “família militar”, oficiais da ativa frequentavam o acampamento do Forte Apache. Sabe-se que um dos terroristas presos por tentar explodir um caminhão dias antes da Intentona recebeu a bomba no acampamento. Sabe-se que oficiais da reserva incentivaram o golpe via redes sociais. Sabe-se que mentores da Intentona frequentavam o Palácio da Alvorada — e nunca é demais lembrar que entre os auxiliares mais próximos de Bolsonaro estavam vários oficiais-generais. O general Braga Netto, aliás, abordado em 18 de novembro por militantes que clamavam por uma virada de mesa no resultado da eleição, os tranquilizou com uma charada: “Vocês não percam a fé; é só o que eu posso falar pra vocês; tem que dar um tempo”.
Premonições
Em 3 de janeiro, duas apoiadoras que foram recebidas por Bolsonaro em seu retiro na Flórida contaram como o capitão lhes animou na conversa: “Ele falou que o melhor está por vir”. A lembrança dos avisos do ex-ministro da Defesa e da Casa Civil e das correligionárias de Orlando evoca outra declaração premonitória. Peço licença pela extensão da transcrição, mas, numa quadra histórica em que absurdos se esvaem como poeira ao vento — porque são diariamente suplantados por absurdos maiores —, é preciso relembrar cada um deles, e este, à luz da Intentona Bolsonarista, ganha contornos assombrosos. Em 20 de novembro, veio à tona um áudio enviado por Augusto Nardes, ministro do Tribunal de Contas da União, a um amigo representante do agronegócio.
“É o pior momento que a nação vai viver, mas talvez seja importante pra poder recuperar. (...) O que vai acontecer agora? Está acontecendo um movimento muito forte nas casernas. Eu acho que é questão de horas, dias, no máximo uma semana, duas, ou talvez menos que isso, que vai acontecer um desenlace bastante forte na nação. Imprevisíveis”, alertou Nardes. “Vamos perder? Sim, vamos perder alguma coisa, mas a situação para o futuro da nação poderá se desencadear de forma positiva, apesar desse principal conflito que deveremos ter nos próximos dias ou nas próximas horas.”
O ex-parlamentar gaúcho, que no monólogo rememora sua atuação ao longo dos anos para fortalecer o que chama de “sociedade conservadora”, se gaba do papel privilegiado no entorno do poder no pós-eleição. “Falei longamente com o time do Bolsonaro essa semana (...), [o presidente] tem esperança de recuperar e melhorar a sua situação física, e certamente terá condições de enfrentar o que vai acontecer no país. (...) Eu não posso falar muito até porque..., sim tenho muitas informações.” E encerra Nardes: “Os próximos dias serão nebulosos e o que vai acontecer de desdobramento não se sabe, mas certamente teremos desdobramentos muito fortes nos próximos dias.” Com a repercussão do áudio, o ministro pediu licença médica do TCU.
Voltemos a janeiro. Tantas evidências de envolvimento de membros das Forças Armadas com a Intentona Bolsonarista fizeram com que agora um enorme espectro paire sobre a relação entre Lula e os militares — o espectro da suspeição. Num café da manhã com jornalistas cinco dias após o ataque, o presidente afirmou que perdeu a confiança em parte dos fardados. Depois revelou ter descartado decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (na qual um general assumiria o comando) porque não queria ter virado uma “rainha da Inglaterra” em meio ao motim — uma forma diplomática de dizer que duvida da lealdade dos atuais chefes militares. Suspeita que os invasores tiveram a entrada no Palácio do Planalto facilitada por traidores de farda. E cobrou o seu ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Gonçalves Dias, por um apagão no setor militar que deveria ter evitado a tragédia. “Minha inteligência não existiu”, queixou-se o petista. As unidades do Exército responsáveis pela proteção do palácio tampouco agiram.
As forças de segurança do Distrito Federal falharam miseravelmente em proteger o coração da República, mas o governador Ibaneis Rocha, seu então secretário de segurança — o bolsonarista Anderson Torres — e o agora ex-comandante da PM, Fábio Augusto Vieira (afastado e preso, como Torres), não são os únicos responsáveis pelo fiasco. Admitir que houve falhas graves também por parte das forças federais, incluindo as Forças Armadas — e é evidente que houve —, não significa dizer, como fez irresponsavelmente o governador mineiro, Romeu Zema, que o governo Lula permitiu o ataque para se vitimizar. Por mais que o 8 de Janeiro tenha sido um fracasso coletivo, um dos maiores fracassos coletivos da história republicana, há um protagonista claro, Jair Bolsonaro (e seus asseclas), e vítimas igualmente distinguíveis: os Três Poderes da República, a democracia, o Estado de Direito.
Desconfiança mútua
Por seu lado, os militares mandam recados de sua insatisfação com seu novo comandante supremo e destacam que as Forças Armadas não aderiram à Intentona –o que é fato, mas um golpe de estado à antiga seria mesmo impraticável. Fazem circular queixas à declaração de Lula de que perdeu a confiança nos auxiliares de farda ou até à exclusão da salva de tiros de canhão — um ritual castrense centenário — da cerimônia de posse, para atender a um pedido de associações de pessoas com deficiência e entidades de defesa de animais. O ex-ministro do GSI Sergio Etchegoyen, um dos artífices das crises recentes entre política e caserna, classificou a declaração de Lula sobre a desconfiança nos militares como um ato de “profunda covardia” –uma vez que nenhum comandante poderia rebatê-la. Interlocutores frequentes de lideranças militares, como os ex-ministros da Defesa Aldo Rebelo e Nelson Jobim, reforçaram a necessidade de tolerância e diálogo em vez de confronto e retaliação.
Uma reunião entre desconfiados foi realizada ontem para aparar as arestas. Lá estavam Lula, José Múcio, os comandantes militares e Josué Gomes da Silva, o presidente da Fiesp alvo de outra intentona. A ideia de convidá-lo foi criar uma agenda positiva em meio à crise — planos para a indústria nacional de Defesa. Múcio, o ministro cuja cabeça muitos petistas já estão cobrando e os bombeiros tentam preservar (a princípio Lula deve resistir a entregar), disse após a reunião que os responsáveis pelo ataque a Brasília serão punidos, mas fez questão de isentar institucionalmente as Forças Armadas.
De todo modo, o mote da esquerda foi lançado. “Sem anistia” já virou coro em shows musicais. À primeira vista, se refere ao capitão ex-presidente e aos cúmplices da Intentona de 8 de Janeiro. Mas tudo indica que poderá se alastrar para demandas históricas em relação aos militares, questões sensíveis tangenciadas por todos os governos desde a redemocratização: a alteração do artigo 142 da Constituição (o que dá aos militares a atribuição de garantir a lei e a ordem e ganhou de bolsonaristas a leitura deturpada de que as Foças Armadas são um poder moderador), a revisão da Lei de Anistia, a mudança nos currículos de escolas militares e no sistema de promoções de generais ou até mesmo na lei de 2019 que reestruturou a carreira militar e alterou as regras de seguridade social do pessoal do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Até poucos dias, Lula sinalizava que não daria vazão a pressões do tipo. Já é impossível ter essa certeza. Um dos reflexos da desconfiança do presidente foi querer abrir mão de ajudantes de ordens militares, como em 2003. Desta vez não houve quem o convencesse, e sua segurança passou a ser feita por policiais federais. Não parece disposto a voltar atrás.
*Fabio Victor, repórter e editor, é autor de “Poder camuflado - Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro” (Companhia das Letras, 2022). Trabalhou na Folha de S.Paulo (1997-2017) e na revista piauí (2017-2020) e hoje dedica-se a projetos autorais