segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Marcus André Melo - O consentimento dos perdedores, FSP

 "Nunca una victoria fue tan amarga, ni una derrota tan dulce" afirmou Felipe González após ser apeado do poder em 1996, após 14 anos no cargo. As pesquisas previam uma derrota esmagadora, mas a margem de vitória de seu adversário foi de pouco mais de 1%. A expectativa de que Lula derrotaria Bolsonaro por larga margem era também dada como certa; o placar final foi similar.

Aqui o amargor aumenta pela vitória da oposição no Congresso, o que levou o ex-presidente a afirmar que não será um "governo do PT". O que é prudente, mas não totalmente crível.

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva durante reunião com equipe de transição no Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília - Sergio Lima/AFP

Como já observei aqui, dado à desproporcionalidade na distribuição de ministérios em seus governos anteriores, isto exigirá uma inversão radical. As nomeações para o governo de transição privilegiando integrantes do partido sinalizam na direção contrária; suas declarações sobre política econômica, idem.

Lula manifestou o desejo de governar com "os perdedores das eleições". O contraste alvissareiro é com Allende e sua assertiva "No soy el presidente de todos os chilenos. No soy hipócrita"; ou do presidente do seu partido, Carlos Altamirano, "avanzar sin transar", ou seja, sem negociar.

A derrota frente a G. W Bush, em 2002, não foi nada doce para Al Gore: "Que não haja dúvidas: embora eu discorde profundamente da decisão da Suprema Corte, eu a aceito". Bolsonaro levou dois dias para admiti-la, e a deixou implícita. Mas o jogo segue consistente com as análises na coluna sobre a democracia brasileira.

O consentimento dos perdedores é um elemento central da democracia. E eles incluem candidatos e seu eleitorado. Segundo uma pesquisa Gallup, 97% dos eleitores de Gore acreditavam que ele ganhara a eleição, o que explica os protestos de rua ocorridos (vale rever o filme "Recount", de 2008).

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O impacto da derrota no eleitorado é o tema do monumental "Loser’s consent: elections and democratic legitimacy", que examina o gap ganhador-perdedor em várias dimensões. Assim, os perdedores avaliam pior: a qualidade da democracia; as instituições; a eficácia da participação política; a responsividade dos políticos; e que apoiadores de partidos perdedores que nunca governaram são o subgrupo mais crítico. E também que o gap é menor em democracias com desenho institucional proporcionalista; e maior entre grupos mais polarizados etc.

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Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, choram durante apuração das urnas no segundo turno das eleições 2022, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

Estas conclusões explicam o histrionismo da direita radical, que nunca governou; o STF vilipendiado antes, mas enaltecido agora; a fragmentação criando incentivos para a barganha, o que converte perdedores em quase ganhadores.

O amargor da derrota é atenuado pelo imperativo das coalizões. O que fazer para que não degenerem em abuso? Veja aqui.


Ruy Castro A Justiça implacável. FSP

 Em 1946, o Rio ganhou uma atração inédita: um alemão recém-chegado instalou uma frota de pedalinhos em forma de cisne na Lagoa Rodrigo de Freitas. A prefeitura concedeu-lhe o alvará, a Lagoa virou um point e Herberts Cukurs, o alemão, não parou mais. Criou um restaurante flutuante atracado ao vizinho clube Caiçaras, construiu na margem um playground para as crianças e promovia competições de barcos a vela, a remo e a motor. Era adorado. Cukurs ficou rico e seu nome e foto saíam nos jornais.

De repente, em 1950, o choque. Notícias vindas da Europa revelaram que Herberts Cukurs era um criminoso de guerra, chefe da ocupação nazista em seu país, a Letônia. Comandara execuções em massa de prisioneiros judeus por fuzilamento, afogamento e gás e, entre outras monstruosidades, ordenara o incêndio de uma sinagoga em Riga com 300 pessoas dentro. Calculava-se que, entre 1943 e 45, matara 30 mil pessoas. Seu cognome seria "O Carniceiro de Riga".

A extradição de Cukurs foi pedida por várias entidades particulares europeias, com base em depoimentos de sobreviventes que o tinham identificado nos jornais brasileiros. Mas, embora esses depoimentos viessem de pessoas de diferentes nacionalidades e que não se conheciam entre si, ele não podia ser extraditado. Não passara pelo tribunal de Nuremberg, entrara legalmente no Brasil e os governos europeus não reuniam provas suficientes para incriminá-lo. Para complicar, tinha agora um filho brasileiro.

O processo arrastou-se por anos, sem solução. Cukurs foi ficando por aqui e, com o tempo, foi esquecido. Mas nem todos o esqueceram. Em 1965, um comando israelense o atraiu a Montevidéu e o executou a tiros.

A única pena sofrida por Cukurs no Brasil foi a de que, em 1951, a Prefeitura do Rio cancelou seu alvará e o proibiu de explorar os pedalinhos. Como sabemos, a Justiça brasileira é assim: implacável.

O criminoso nazista Herberts Cukurs viveu por 20 anos no Brasil e foi executado no Uruguai por agentes do Mossad - Arquivo Nacional

Lygia Maria - Vergonha tropical, FSP

 Gal, nosso canário, morreu e Bolsonaro não deu um pio. Assim como também não se pronunciou sobre Aldir Blanc e João Gilberto. Apoiadores do presidente dizem que esses artistas eram de esquerda e apreciados apenas pela elite intelectual. Logo, não há problema em ignorar as mortes.

Porém, mesmo se Gal, Aldir e João fossem ouvidos apenas por um grupo ideológico ou social, suas obras fazem parte do patrimônio cultural brasileiro, e o mandatário no Palácio da Alvorada tem o dever de valorizá-lo. Afinal, governa para o país, não somente para quem o elegeu.

A cantoras Gal Costa durante gravação em colaboração com Preta Gil - Adriano Vizoni - 7.jun.17/Folhapress

Além disso, nem só de economia e poder vive um presidente da República. Trata-se de cargo também simbólico, com protocolos e liturgias que, ao longo do teste do tempo, se mostraram necessários (prática bem conservadora, a propósito).

João Gilberto criou a bossa nova, misturando samba com elementos do jazz, e um novo estilo de canto minimalista. Hoje, "Garota de Ipanema", do também compositor da bossa nova Tom Jobim, é uma das músicas mais tocadas no mundo.

Gal Costa fez parte de outra revolução estética: o tropicalismo. No fim dos anos 1960, tínhamos estilos populares como o samba, o rock estrangeiro assimilado pela jovem guarda e as canções de protesto, que buscavam conscientizar o povo sobre problemas políticos —uma visão oriunda do realismo socialista da URSS.

O tropicalismo quebrou essas barreiras, misturando estilos e se opondo à politização da estética. No primeiro disco solo de Gal, de 1969, há fusões entre rock, psicodelia e ritmos populares. Cantava com voz de anjo e também gritava como uma roqueira. Depois, interpretou diversos estilos, foi música-tema de novela, sucesso nas rádios e criou uma legião de fãs. Só alguém que desconhece o Brasil ignora a partida de Gal.

Ainda bem que, logo, esse problema acabará. Teremos um presidente que, pelo menos, sabe usar talheres e segue as liturgias do cargo. Novos problemas virão, claro, mas torçamos para que não nos cause tamanha vergonha.