quinta-feira, 27 de outubro de 2022

CNN Brasil tem tom complacente com o governo em meio a caso Roberto Jefferson, FSP

 Num dos dias mais tensos da história recente do Brasil, a uma semana das eleições, um aliado do presidente Jair Bolsonaro (PL), o ex-deputado Roberto Jefferson, reagiu a um mandado de prisão da Polícia Federal com 50 tiros de fuzil e três granadas, ferindo dois agentes.


Em condições normais, não deveria haver dúvidas sobre como trazer este acontecimento para o noticiário da televisão. Mas, nestes tempos extraordinários que estamos vivendo, o jornalismo tem sido sufocado ou, literalmente, nocauteado.

O ex-deputado Roberto Jefferson (PTB) chega ao presídio de Benfica, no Rio, cerca de 14 horas depois de receber voz de prisão da Polícia Federal e de reagir com tiros e granadas - Reprodução/TV Globo

CNN Brasil, por exemplo, dedicou dois minutos ao atentado dentro de um programa ao vivo que ficou no ar por 135 minutos na tarde de domingo (23). Uma das apresentadoras chegou a mencionar que a cobertura ia continuar, mas foi orientada pelo ponto eletrônico a mudar de assunto.

No dia seguinte, num debate no mesmo canal, um comentarista justificou o gesto de Jefferson sob o argumento de que o político de extrema direita não é um Mahatma Gandhi.

"Não sei como eu reagiria. Você toparia numa boa ficar na sua prisão domiciliar com a tornozeleira se você não tivesse cometido nenhum crime? Na lei brasileira não existe nenhum crime que justifique ele estar nesta situação. E você acha que ele devia ficar calmamente? Talvez até um cara, que tivesse um espírito Mahatma, que tivesse uma grande alma como Gandhi, fizesse uma resistência pacífica", disse Fernão Lara Mesquita.

Na terça-feira, a CNN convidou um político da situação e outro da oposição para debater o seguinte tema: "Qual o impacto de decisões do TSE nas eleições?". Era uma pergunta evidentemente destinada a produzir comentários críticos à atuação do ministro Alexandre de Moraes. Entendo que a questão de fundo era outra, "qual o impacto das fake news nas eleições?", mas ela escapou a quem formulou a pergunta do debate.

A CNN Brasil é integrada por uma equipe de excelentes profissionais, que respeito demais. Mas decisões editoriais extemporâneas, como as citadas acima, deixam o espectador com a suspeita de que o canal está adotando um ponto de vista complacente com o governo num momento crítico da história.

O ataque extremista de domingo trouxe à tona outros temas delicados. Apoiadores de Bolsonaro rumaram em direção à casa de Jefferson para acompanhar o caso. Um deles socou um cinegrafista da Inter TV, afiliada da Rede Globo, levando-o ao chão e, em seguida, ao hospital. Como tantos outros ataques semelhantes que ocorreram nos últimos quatro anos, o soco visava impedir o trabalho de um veículo de imprensa considerado crítico ao governo.

Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas, em 2021 ocorreram 430 episódios de violência contra profissionais da mídia. É um recorde histórico. O relatório da Fenaj classifica Bolsonaro como o "principal agressor" de jornalistas e veículos de comunicação, sendo responsabilizado por 147 casos —129 episódios de descredibilização da imprensa e 18 de ataques verbais aos profissionais.

Ao determinar a prisão de Jefferson neste domingo, Alexandre de Moraes voltou a proibir que o ex-deputado concedesse entrevistas. Para os ultraliberais, essa medida deve ter sido vista como censura. É mesmo censura impedir que um extremista defenda publicamente a resistência armada à prisão?

Temos visto que o conceito de democracia e mesmo o de liberdade de imprensa são compreendidos de formas diferentes, dependendo de fatores como formação familiar, classe social e mesmo categoria profissional. De um modo geral, donos de empresas de comunicação pensam diferente de jornalistas.

Sou de uma geração que começou a trabalhar na metade da década de 1980, na transição para a democracia. Não vivenciei nada parecido com o que está acontecendo nestes últimos anos. A profissão de jornalista nunca esteve tão ameaçada. É uma tristeza.

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Conrado Hübner Mendes - Dois bolsonaristas pedem minha prisão, FSP

 Augusto Aras e Kassio Nunes Marques pedem minha prisão. Eventual condenação, somados os casos, pode alcançar mais de 10 anos de detenção. O cálculo considera a pior hipótese permitida no Código Penal. Improvável, dizem advogados. Talvez cinco ou seis anos. Não tão improvável com Bolsonaro reeleito e a virtual cooptação definitiva de um judiciário menos conhecido pela integridade que pela autoadmiração e vocação colaboracionista.

Cada um vive o risco Bolsonaro a sua maneira. Eu vivo com dois processos criminais sobre minha cabeça. Lançados pelas duas maiores autoridades jurídicas do país: o procurador-geral da República e um ministro do STF. Dois bolsonaristas sanguíneos. O soldado e o cabo. Prometeram ao presidente postura bovina e cumpriram, com os efeitos letais que ajudaram a causar. Irremediavelmente.

O procurador-geral da República Augusto Aras com o presidente Jair Bolsonaro (PL) - Ueslei Marcelino - 10.mai.21/Reuters

Por que pedem prisão? Porque julgam criminosas duas colunas escritas aqui. Por palavras que teriam afetado a "trajetória de vida imaculada", disse Augusto. "Omisso", "poste" e "chicaneiro" foram elas. Um jargão corriqueiro. Palavras que não entram nem no glossário da grosseria e da galhofa. E não fazem justiça, nem conceitual nem literária, à gritante atuação dos imaculados.

Querem prisão de professor universitário em razão de palavras antipáticas sobre o desempenho ostensivamente maculado desses homens sem qualidades. Ignoram lições da decência, do direito constitucional e penal. Não existe direito de não ser criticado, nem direito de não se sentir ofendido. A autoestima de autoridade pública não é protegida pela lei.

Por essas e outras, para mim se tornou impossível falar de Bolsonaro em abstrato. Ou apenas por meio de números e índices socioeconômicos, já graves o suficiente. Deveria ser difícil para qualquer um, exceto o cientista político que, entre baforada e outra de charuto, mirando o Pão de Açúcar de sua janela, pondera diante de suas planilhas sobre instituições funcionando. E saca a tirada orgulhosa "democracia corre risco zero". Um frasista.

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Quando um amigo, um tio, uma prima mergulha nessa vertigem desumanizadora e subscreve o horror, um laço profundo de comunidade afetiva se rompe. Como sentar à mesa e celebrar algo juntos? Não é porque votam indiretamente pela minha prisão, mas algo mais inexplicável. Às vezes irreversível.

Ainda não descobri como expressar esse sentimento. E o que fazer com ele. Há certas coisas que presumimos compartilhar em silêncio. Depois que um presidente ironiza pessoa agonizando com falta de ar, não deveria ser necessário dizer mais nada. Vou lhes poupar de outros 150 exemplos. O curriculum vitae do inumano está na coluna anterior.

Que essas investidas criminais interfiram na minha vida pessoal, profissional e material, é problema menor. Mas o meu risco é também o seu risco.

Vivo com o medo da cadeia por ser professor. Outras vivem sob ameaça de estupro e de morte. Como Natalha Theofilo, mulher negra na Amazônia, exilada em seu país para manter viva sua família (veja sua carta no jornal Sumaúma); como Debora Diniz, antropóloga que foi morar no exterior para não ser morta pelo fundamentalismo religioso; como Patrícia Campos Mello e Constança Rezende, repórteres dessa Folha.

Outros levam tiro, como os dois policiais federais baleados por Roberto Jefferson. Atentado com selo bolsonarista oficial. Outros morrem em festa de aniversário, por ostentarem identidade política.

Com a disseminação das armas, seus filhos também podem ser vítimas de atentado na sala de aula, por exemplo. Aluno de escola tradicional paulistana planejava ataque a tiros dias atrás, depois de decepção amorosa. Com arma do pai. Por sorte não executou.

Todos os casos são parte de um programa de governo, não da violência brasileira cotidiana. E não é só isso. Não importa só saber o que Bolsonaro pode fazer com a minha vida, a sua e a do seu filho. Importa saber o que pode fazer com a nossa. A incivilidade, a pobreza e o colapso climático sempre chegam aos nossos condomínios fechados.

O que se perde quando se perde a democracia? Perde-se além dos bons negócios. Perde-se, por exemplo, o direito e o poder de se autogovernar. Isso que "se perde" muita gente nunca teve, verdade. Se esses valores são etéreos demais para quem nasceu e cresceu no camarote da sociedade brasileira, como eu, e se sente livre o suficiente, bom lembrar que também se perde capacidade de realizar seu autointeresse, seu plano de vida. Um objetivo liberal.

Ninguém tem direito de estar mal-informado. Porque isso implica cumplicidade. Quando o outro lado quer sua eliminação, não adianta pedir empatia e paz no coração.