domingo, 17 de janeiro de 2021

Assassinato de Rubens Paiva na ditadura faz 50 anos com punição ainda sob debate na Justiça, FSP

 16.jan.2021 às 23h15

SÃO PAULO

Um dos mais conhecidos crimes da ditadura militar, o assassinato do ex-deputado Rubens Paiva por agentes do regime completa 50 anos nesta semana com a Justiça ainda discutindo se há a possibilidade de punir acusados envolvidos.

O STF (Supremo Tribunal Federal) travou em 2014 a tramitação de ação penal aberta na Justiça Federal no Rio naquele ano contra cinco pessoas por entender que havia violação à Lei da Anistia, que veda sanções a acusados de crimes políticos durante o regime.

Em 20 de janeiro de 1971, Paiva, engenheiro e parlamentar que tinha sido cassado após o golpe de 1964, teve a sua casa no Rio invadida, foi levado a uma unidade militar para depoimento e desapareceu.

Documentos do Exército atestam sua entrada no DOI (Destacamento de Operações de Informações), e até seu carro chegou a ser devolvido à família semanas depois. Testemunhas o viram ferido e agonizando no local.

Depoimentos e apurações da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2012 para apurar crimes do regime, e do Ministério Público Federal apontam que os militares montaram uma farsa para encobrir o assassinato sob tortura e a ocultação do corpo, ocorrida provavelmente no dia seguinte.

O Exército à época divulgou que guerrilheiros interceptaram uma viatura na qual Paiva era transportado para reconhecer uma casa onde poderia estar um foragido e que, nesse confronto, ele havia fugido.

Essa versão, nunca aceita pela família, incluiu até a simulação de tiroteio em uma estrada na zona oeste do Rio onde o automóvel ficou metralhado e incendiado.

Nos anos 1990, o Estado brasileiro oficializou a inclusão de Rubens Paiva em uma lista de desaparecidos em razão de atividades políticas no regime, e a família recebeu uma certidão de óbito. Também obteve na Justiça uma indenização.

Os trabalhos da Comissão da Verdade, de 2012 a 2014, jogaram luz sobre alguns aspectos que não eram conhecidos da história. Mesmo escudados pela Lei da Anistia, houve depoimentos de militares que relataram detalhes.

O à época capitão Raymundo Ronaldo Campos, hoje com 85 anos, disse que recebeu ordem para montar uma operação e simular a fuga do deputado. "Era um Fusca. Paramos num lugar ermo, saltamos do carro, metralhamos o carro, tocamos fogo no carro, e chamamos os bombeiros e a polícia."

Também falou que cumpriu as determinações por receio de retaliações.

Mulher em pé exibe documento
Em 1996, Eunice Paiva, acompanhada do filho Marcelo Rubens Paiva, recebe a certidão de óbito de Rubens Paiva, desaparecido desde 1971 - Eduardo Knapp - 23.fev.96/Folhapress

O coronel reformado Paulo Malhães, que morreu em 2014, afirmou que restos mortais foram enterrados na praia, na região da Barra da Tijuca, e posteriormente retirados.

O Ministério Público cita depoimentos de dois militares ao afirmar que o militar Antonio Hughes de Carvalho, integrante da equipe de interrogatórios que morreu em 2005, participou da sessão de tortura.

Paiva, à época com 41 anos, não tinha atuação na luta armada. O pretexto de sua prisão foi o envio, por exilados no Chile, de cartas para o Brasil endereçadas a ele. As correspondências tinham sido apreendidas por militares no mesmo dia da prisão com duas mulheres em um voo vindo de Santiago, também detidas.

A esposa de Paiva, Eunice, que morreu em 2018, ficou presa por 12 dias. Após o desaparecimento, a mobilização dela pelo paradeiro do marido se tornou simbólica da resistência da sociedade ao regime.

Em maio de 2014, procuradores do Rio apresentaram denúncia contra o hoje general reformado José Antônio Nogueira Belham, 86, e o coronel reformado Rubens Paim Sampaio, 86, sob acusação de homicídio triplamente qualificado.

Belham, à época major, era chefe do DOI. Contra Sampaio, há relato de outro militar que diz que o acusado o impediu de tomar qualquer iniciativa em benefício do preso.

Raymundo Campos e outros dois militares foram acusados de fraude processual.

Os cinco alvos do Ministério Público também foram denunciados sob acusação de associação criminosa e ocultação de cadáver.

O juiz federal que abriu a ação, Caio Taranto, considerou que o homicídio qualificado por tortura não prescreve porque o Brasil é signatário de convenção internacional que barra a extinção da punição a esse tipo de delito.

A acusação também apresentou a tese de que a prescrição e a anistia não abarcam o crime de ocultação de cadáver, considerado de caráter permanente, já que o corpo nunca foi encontrado.

Os militares suspeitos foram então ao STF barrar a tramitação da ação citando que o processo afrontaria a Lei da Anistia. Em setembro de 2014, o ministro Teori Zavascki decidiu suspender, por meio de liminar, a tramitação do caso.

A pedido da Procuradoria-Geral da República, porém, concordou em autorizar a produção antecipada de provas por causa da idade avançada das testemunhas arroladas.

Com a morte de Teori, em 2017, o procedimento a respeito do caso chegou a ser arquivado por engano, de acordo com o Ministério Público Federal, já que nunca ocorreu um julgamento por um conjunto de ministros no STF a respeito.

Sob a relatoria de Alexandre de Moraes, que ocupou a vaga de Teori na corte, não houve mais andamento relevante nesse recurso. O gabinete do ministro informou que não há previsão para julgamento do tema.

Paralelamente, os cinco acusados também recorreram ao TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região) e ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) para trancar o andamento da ação.

Em 2019, ministros do STJ decidiram que o caso está sob guarida da Lei da Anistia e determinaram o trancamento. Em setembro passado, também rejeitaram a tese de que a ocultação do corpo, nesse caso, representaria um crime permanente. Esse recurso, porém, ainda não teve sua tramitação esgotada na corte.

Nos últimos anos, procuradores apresentaram denúncias de teor parecido relacionadas a outros crimes do regime, mas de pouco efeito prático.

O advogado Rodrigo Roca, que defende os cinco militares acusados, diz que a denúncia está "absolutamente errada quanto a datas e fatos" e que isso seria demonstrado se a ação prosseguisse.

"Antes de se decidir sobre o mérito, há questões processuais intransponíveis, dentre elas, a Lei da Anistia. Depois disso, eventual prescrição."

O general Belham sustenta que estava de férias no período em que ocorreu o crime. Mas, para a acusação, um documento oficial informa que ele estaria em deslocamento em caráter sigiloso no dia da prisão.

Rubens Sampaio afirmou em depoimento em 2014 que na época da morte lhe foi dito que houve um "teatrinho para ocultar o corpo" de Paiva.

Mas negou ter participado de assassinatos, tortura ou interrogatórios em sua trajetória no Exército.

ASSASSINATO É 'MANCHA NA HISTÓRIA' DO PAÍS, DIZ FILHO

O escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva, que tinha 11 anos na época da morte do pai, considera o assassinato uma "mancha na história" do país e diz que o crime é uma "história que não termina".

"É uma história inacabada, é uma história que todo ano tem uma novidade. É uma morte que não se encerra, que não é enterrada", disse ele à Folha.

Papéis que registravam a prisão, por exemplo, só foram revelados quando morreu um coronel reformado do Exército, em 2012, que guardava os documentos em seu arquivo particular, em Porto Alegre.

Sobre o desfecho das apurações na Justiça Federal, Marcelo diz achar curioso como o país avançou em uma série de leis de direitos individuais nas últimas décadas, enquanto a "Lei da Anistia é intocada".

"Parece uma cláusula pétrea da Constituição."

"Quando é uma lei que foi assinada por um Congresso completamente amarrado, com senadores indicados."

Folha procurou o Exército e questionou qual é o posicionamento oficial da instituição a respeito do crime atualmente, mas não houve resposta.

A psicóloga e professora Vera Paiva, 67, também filha do ex-deputado, afirma que as investigações da década passada foram fundamentais para reconstituir os acontecimentos que resultaram na morte do pai.

"Nós seguimos a vida, como a minha mãe também nos ensinou a seguir a vida. Mas vamos continuar marcando essa injustiça. Quando pune os responsáveis, se evita que isso se repita. Quando não pune, abre espaço para a repetição."

Marcos Lisboa - Não existe boca-livre, FSP

 A última coluna criticou a reação de alguns setores à proposta do governo de São Paulo de reduzir em média 20% os benefícios tributários concedidos pelo estado.

A longa lista de bens com tratamento favorecido pode ser encontrada nas páginas 369-373 da lei aprovada pela Assembleia e inclui itens como aviões, areia e insumos utilizados na agricultura.

O problema não é de pouca monta. Os benefícios tributários do ICMS em São Paulo reduzem a arrecadação em R$ 43 bilhões por ano, bem mais do que o governo federal gasta com o Bolsa Família, como escrevi.

Lideranças do setor privado, sobretudo do agronegócio, discordaram da coluna, argumentando que os demais países concedem subsídios. Preservar os benefícios seria importante para garantir a competitividade do setor.

Não é bem assim.

As exportações continuam sem incidência de ICMS, refletindo a boa prática internacional de tributar no destino e não na origem (local de produção). A medida de São Paulo apenas reduz o benefício tributário no consumo doméstico, o que nada tem a ver com a competitividade do agronegócio no comércio exterior.

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Os exportadores têm dificuldades em receber o crédito tributário devido. Mas a solução não pode ser deixar de pagar tributos sobre o consumo local.

Outros alegam que a desoneração dos alimentos beneficiaria as pessoas de baixa renda. De novo, não é bem assim. A redução de tributos sobre a venda de bens por vezes é mais vantajosa para os produtores do que para os consumidores, como mostram Benzarti e Carloni (2019).

Além disso, é mais eficaz transferir renda diretamente para quem precisa do que desonerar o consumo. Em 2017, o Ministério da Fazenda analisou o cenário alternativo de tributar a cesta básica e utilizar os recursos arrecadados para ampliar o Bolsa Família. O resultado impressiona: a desigualdade de renda cairia 12 vezes mais do que com a desoneração atual.

Cabe mencionar que a medida do governo paulista não aumentou as alíquotas sobre a cesta básica. As reclamações contra a reforma, que reduz em poucos pontos percentuais os benefícios atuais, vêm de setores como o de fertilizantes. E também dos que vendem automóveis e produtos eletrônicos, para citar outros exemplos.

Não há boca-livre. As renúncias tributárias implicam maiores impostos sobre o restante da sociedade. Os estados compensam tributando mais outras atividades. Em São Paulo, a energia elétrica paga 25% de ICMS, e a conta para o consumidor chega a mais de 40% quando se somam todos os tributos.

Alguns empresários acham-se no direito de pagar menos impostos do que os demais. Só não aceitam que se chame isso de privilégio.

Marcos Lisboa

Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Ainda mais fã de Zé Kéti, após ser seu vizinho, Ruy Castro, FSP

 

Zé Kéti, o sambista, faria 100 anos em 2021 e já começam as comemorações. Fui conferir e está lá —de nome verdadeiro José Flores de Jesus, nascido em 16 de setembro de 1921. Ainda um pouco longe para o centenário, mas Zé Kéti não deveria precisar de efemérides para ser comemorado.

E não apenas porque é o autor de um dos maiores sambas de todos os tempos: “A Voz do Morro”, de 1954. Você sabe: “Eu sou o samba/ A voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor/ Quero mostrar ao mundo que tenho valor/ Eu sou o rei dos terreiros...”. Foi lançado naquele ano por Jorge Goulart, e quem melhor do que Jorge, com seus plenos pulmões, para dar a “A Voz do Morro” o volume e alcance que aquelas frases longas mereciam?

Todos os grandes sambas de Zé Kéti, sozinho ou com parceiros, contam uma história do morro: “Malvadeza Durão”, “Nega Dina”, “Diz Que Fui Por Aí”, “Acender as Velas”, “Samba da Legalidade”, “Cicatriz”, “Mascarada” e, claro, “Opinião” —“Podem me prender, podem me bater/ Podem até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro eu não saio, não...”, que Nara Leão, em 1964, elevou a status de quase hino. Não sei se Zé Kéti morou algum dia num morro, mas, e daí? Dorival Caymmi não sabia nadar e ninguém falou do mar como ele. Artista é isso.

Em 1968, posso garantir que Zé Kéti não morava no morro —porque éramos vizinhos no lendário Solar da Fossa, um ex-convento colonial em Botafogo, habitado por estudantes, atores, músicos, jornalistas, todos românticos, boêmios e duros. Os quartos eram pequenos e o que se passava em um deles era escutado por todo mundo em volta.

Zé Kéti morava no quarto em cima do meu. E, se já era seu fã pela música, fiquei mais ainda ao ouvir suas performances a dois —de 6 da tarde às 6 da manhã, incansável, non stop, todas as noites e também a plenos pulmões. A voz do Solar era ele mesmo, sim, senhor.

 Programa do show “Opinião”, LP de Nara Leão e CDs com a música de Zé Kéti
Programa do show “Opinião”, LP de Nara Leão e CDs com a música de Zé Kéti - Heloisa Seixas
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.