16.jan.2021 às 23h15
Um dos mais conhecidos crimes da ditadura militar, o assassinato do ex-deputado Rubens Paiva por agentes do regime completa 50 anos nesta semana com a Justiça ainda discutindo se há a possibilidade de punir acusados envolvidos.
O STF (Supremo Tribunal Federal) travou em 2014 a tramitação de ação penal aberta na Justiça Federal no Rio naquele ano contra cinco pessoas por entender que havia violação à Lei da Anistia, que veda sanções a acusados de crimes políticos durante o regime.
Em 20 de janeiro de 1971, Paiva, engenheiro e parlamentar que tinha sido cassado após o golpe de 1964, teve a sua casa no Rio invadida, foi levado a uma unidade militar para depoimento e desapareceu.
Documentos do Exército atestam sua entrada no DOI (Destacamento de Operações de Informações), e até seu carro chegou a ser devolvido à família semanas depois. Testemunhas o viram ferido e agonizando no local.
Depoimentos e apurações da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2012 para apurar crimes do regime, e do Ministério Público Federal apontam que os militares montaram uma farsa para encobrir o assassinato sob tortura e a ocultação do corpo, ocorrida provavelmente no dia seguinte.
O Exército à época divulgou que guerrilheiros interceptaram uma viatura na qual Paiva era transportado para reconhecer uma casa onde poderia estar um foragido e que, nesse confronto, ele havia fugido.
Essa versão, nunca aceita pela família, incluiu até a simulação de tiroteio em uma estrada na zona oeste do Rio onde o automóvel ficou metralhado e incendiado.
Nos anos 1990, o Estado brasileiro oficializou a inclusão de Rubens Paiva em uma lista de desaparecidos em razão de atividades políticas no regime, e a família recebeu uma certidão de óbito. Também obteve na Justiça uma indenização.
Os trabalhos da Comissão da Verdade, de 2012 a 2014, jogaram luz sobre alguns aspectos que não eram conhecidos da história. Mesmo escudados pela Lei da Anistia, houve depoimentos de militares que relataram detalhes.
O à época capitão Raymundo Ronaldo Campos, hoje com 85 anos, disse que recebeu ordem para montar uma operação e simular a fuga do deputado. "Era um Fusca. Paramos num lugar ermo, saltamos do carro, metralhamos o carro, tocamos fogo no carro, e chamamos os bombeiros e a polícia."
Também falou que cumpriu as determinações por receio de retaliações.
O coronel reformado Paulo Malhães, que morreu em 2014, afirmou que restos mortais foram enterrados na praia, na região da Barra da Tijuca, e posteriormente retirados.
O Ministério Público cita depoimentos de dois militares ao afirmar que o militar Antonio Hughes de Carvalho, integrante da equipe de interrogatórios que morreu em 2005, participou da sessão de tortura.
Paiva, à época com 41 anos, não tinha atuação na luta armada. O pretexto de sua prisão foi o envio, por exilados no Chile, de cartas para o Brasil endereçadas a ele. As correspondências tinham sido apreendidas por militares no mesmo dia da prisão com duas mulheres em um voo vindo de Santiago, também detidas.
A esposa de Paiva, Eunice, que morreu em 2018, ficou presa por 12 dias. Após o desaparecimento, a mobilização dela pelo paradeiro do marido se tornou simbólica da resistência da sociedade ao regime.
Em maio de 2014, procuradores do Rio apresentaram denúncia contra o hoje general reformado José Antônio Nogueira Belham, 86, e o coronel reformado Rubens Paim Sampaio, 86, sob acusação de homicídio triplamente qualificado.
Belham, à época major, era chefe do DOI. Contra Sampaio, há relato de outro militar que diz que o acusado o impediu de tomar qualquer iniciativa em benefício do preso.
Raymundo Campos e outros dois militares foram acusados de fraude processual.
Os cinco alvos do Ministério Público também foram denunciados sob acusação de associação criminosa e ocultação de cadáver.
O juiz federal que abriu a ação, Caio Taranto, considerou que o homicídio qualificado por tortura não prescreve porque o Brasil é signatário de convenção internacional que barra a extinção da punição a esse tipo de delito.
A acusação também apresentou a tese de que a prescrição e a anistia não abarcam o crime de ocultação de cadáver, considerado de caráter permanente, já que o corpo nunca foi encontrado.
Os militares suspeitos foram então ao STF barrar a tramitação da ação citando que o processo afrontaria a Lei da Anistia. Em setembro de 2014, o ministro Teori Zavascki decidiu suspender, por meio de liminar, a tramitação do caso.
A pedido da Procuradoria-Geral da República, porém, concordou em autorizar a produção antecipada de provas por causa da idade avançada das testemunhas arroladas.
Com a morte de Teori, em 2017, o procedimento a respeito do caso chegou a ser arquivado por engano, de acordo com o Ministério Público Federal, já que nunca ocorreu um julgamento por um conjunto de ministros no STF a respeito.
Sob a relatoria de Alexandre de Moraes, que ocupou a vaga de Teori na corte, não houve mais andamento relevante nesse recurso. O gabinete do ministro informou que não há previsão para julgamento do tema.
Paralelamente, os cinco acusados também recorreram ao TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região) e ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) para trancar o andamento da ação.
Em 2019, ministros do STJ decidiram que o caso está sob guarida da Lei da Anistia e determinaram o trancamento. Em setembro passado, também rejeitaram a tese de que a ocultação do corpo, nesse caso, representaria um crime permanente. Esse recurso, porém, ainda não teve sua tramitação esgotada na corte.
Nos últimos anos, procuradores apresentaram denúncias de teor parecido relacionadas a outros crimes do regime, mas de pouco efeito prático.
O advogado Rodrigo Roca, que defende os cinco militares acusados, diz que a denúncia está "absolutamente errada quanto a datas e fatos" e que isso seria demonstrado se a ação prosseguisse.
"Antes de se decidir sobre o mérito, há questões processuais intransponíveis, dentre elas, a Lei da Anistia. Depois disso, eventual prescrição."
O general Belham sustenta que estava de férias no período em que ocorreu o crime. Mas, para a acusação, um documento oficial informa que ele estaria em deslocamento em caráter sigiloso no dia da prisão.
Rubens Sampaio afirmou em depoimento em 2014 que na época da morte lhe foi dito que houve um "teatrinho para ocultar o corpo" de Paiva.
Mas negou ter participado de assassinatos, tortura ou interrogatórios em sua trajetória no Exército.
ASSASSINATO É 'MANCHA NA HISTÓRIA' DO PAÍS, DIZ FILHO
O escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva, que tinha 11 anos na época da morte do pai, considera o assassinato uma "mancha na história" do país e diz que o crime é uma "história que não termina".
"É uma história inacabada, é uma história que todo ano tem uma novidade. É uma morte que não se encerra, que não é enterrada", disse ele à Folha.
Papéis que registravam a prisão, por exemplo, só foram revelados quando morreu um coronel reformado do Exército, em 2012, que guardava os documentos em seu arquivo particular, em Porto Alegre.
Sobre o desfecho das apurações na Justiça Federal, Marcelo diz achar curioso como o país avançou em uma série de leis de direitos individuais nas últimas décadas, enquanto a "Lei da Anistia é intocada".
"Parece uma cláusula pétrea da Constituição."
"Quando é uma lei que foi assinada por um Congresso completamente amarrado, com senadores indicados."
A Folha procurou o Exército e questionou qual é o posicionamento oficial da instituição a respeito do crime atualmente, mas não houve resposta.
A psicóloga e professora Vera Paiva, 67, também filha do ex-deputado, afirma que as investigações da década passada foram fundamentais para reconstituir os acontecimentos que resultaram na morte do pai.
"Nós seguimos a vida, como a minha mãe também nos ensinou a seguir a vida. Mas vamos continuar marcando essa injustiça. Quando pune os responsáveis, se evita que isso se repita. Quando não pune, abre espaço para a repetição."
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