sábado, 18 de julho de 2020

Leia trecho do livro inédito ‘Decadência e Reconstrução’, OESP

Redação, O Estado de S.Paulo

18 de julho de 2020 | 03h00

Abaixo, trecho do livro Decadência e Reconstrução, ainda inédito, de autoria de Carlos Melo e Milton Seligman, professores do Insper, e da jornalista Malu Delgado.  

INTRODUÇÃO – UM ESTADO SEM LEI

Um anúncio publicado nos jornais convidou toda a população a reagir. Era novembro de 1999 e a sensação de medo havia deixado a sociedade do Espírito Santo abatida e paralisada: o governo local já não conseguia mais dar conta das atribuições básicas de um Estado, a Segurança Pública. Algo precisava ser feito, ainda que uma reação simbólica. Ou, de fato, medidas efetivas. O importante era sair da prostração, romper o clima de perplexidade e medo. 

A reunião foi marcada para 15h. Até as 14h50, ninguém ainda havia chegado ao auditório da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Vitória. Faltando poucos minutos para o horário pontual do encontro, o arcebispo metropolitano, Dom Silvestre Scandian, acompanhado de pastores presbiterianos, luteranos e batistas, atravessa o auditório e se une ao advogado Agesandro da Costa Pereira, o presidente seccional da OAB e autor do convite, numa trajetória sem volta. O “doutor Agesandro”, como era conhecido pela sociedade capixaba, animou-se. Pelo menos os líderes religiosos haviam atendido ao chamado. Melhor que nada — pelo menos, por enquanto. 

Segundos depois, líderes sindicais, comunitários e professores universitários também ocupam as cadeiras. Políticos que contavam com a simpatia daqueles segmentos chegam posteriormente, mais discretos, de mansinho. A postura dos presentes ainda era tímida, medrosa, temerária diante do perigo do crime organizado que todos conheciam e reconheciam o poder. Em momentos assim, não é fácil tomar atitude. Muito está em jogo, a começar pela segurança pessoal e, pior, das famílias. A precaução e a desconfiança são compreensíveis. 

No entanto, aos poucos, o auditório fica lotado, em que pese o relativo ceticismo causado pela frustração com autoridades eleitas, envolvidas diretamente com crimes e com o crime organizado. Mexer com aquilo a que os religiosos e a OAB se propunham não era apenas arriscado, significava uma aposta em algo fundamentado quase que exclusivamente na esperança e no caráter dos presentes. Todos sabiam que o jogo era pesado e poderia acabar — como, até ali, invariavelmente acabava — em morte. Havia descrença nos recursos disponíveis para reverter o quadro. Com que força e com quais aliados se poderia contar?

O telefone da OAB não para de tocar. Ligações anônimas tentavam intimidar os representantes de segmentos da sociedade que ali se uniam. “Colocamos bombas aí na sede da OAB. Todos vão morrer”, diziam anônimos, em incansáveis ameaças. O ar pesa na atmosfera de receio que se expande. Dom Silvestre esbraveja: “Não vamos sair daqui. Eles que nos explodam”. 

Dom Silvestre Luiz Scandian comandou a arquidiocese da capital, Vitória, por 20 anos. A capacidade com que conciliava serenidade e firmeza contribuiu para que se tornasse um grande líder não apenas religioso, mas social. Era do tipo que falava de política sem temor nas homilias na igreja, visitava constantemente as regiões pobres do estado e, com frequência, participava de atos de movimentos sociais, como o Grito dos Excluídos, organizado pelo MST. A ação e a atuação de Dom Silvestre no movimento Reage Espírito Santo foram fundamentais para dar credibilidade e confiança ao grupo, conquistar o apoio da sociedade capixaba e, sobretudo, conter, em parte, a ousadia do crime organizado no estado, normalmente, acostumado à liberdade de movimentos e à desfaçatez. 

E, assim, ainda que houvesse razão suficiente para ter medo e ceder às ameaças, ninguém saiu. E o encontro deu origem ao Fórum Reage Espírito Santo, a união da sociedade civil organizada para debater e combater a escandalosa onda de corrupção no estado, a calamidade social, a sensação de impunidade e insegurança, a violência exacerbada. O Estado e suas instituições — o governo e o comando de polícia; a Assembleia Legislativa e a maioria de seus deputados; o Judiciário e parte de seus juízes — estavam comprometidos. Desaparecimentos, assassinatos e execuções eram tão frequentes que assumiam ares de banalidade no estado. 

Apesar da sua dimensão diminuta e do insignificante protagonismo político no cenário nacional, o Espírito Santo passou a ocupar manchetes na grande mídia. Todas elas 10 negativas. O Congresso Nacional investigava as relações do narcotráfico com a política e o Judiciário, a chamada CPI do Narcotráfico, onde o Espírito Santo aparecia com papel de destaque nas páginas e na televisão. Ao final do ano 2000, o relatório final da CPI pedia o indiciamento de aproximadamente 800 pessoas no estado, incluindo políticos, magistrados e policiais. Claro que não custa recordar que, naquele tempo, isso era tão impensável quanto praticamente inédito. Só bem mais tarde autoridades públicas passaram a ser presas com maior frequência e a relativa naturalidade que há hoje. 

O fato é que o então presidente da Assembleia Legislativa do Estado, José Carlos Gratz, era apontado como um dos comandantes do crime organizado no estado e, por isso, ganhou notoriedade nacional. O tempo revelou indícios do envolvimento de uma teia política nos esquemas de corrupção: um grupo de parlamentares, secretários de Estado, policiais, juízes e até o governador de então, José Ignácio Ferreira, do PSDB. 

Há farta documentação na mídia daquele tempo, se não apontando, pelo menos mencionando um amplo rol de personalidades do mundo político envolvidas com denúncias e processos, dos quais muitos vieram a dar em condenações e mandados de prisão. Além disso, a totalidade dos que concordaram em conceder entrevistas para este trabalho confirma o quadro e a precariedade da situação. Na avaliação unânime destes entrevistados, o crime teria se infiltrado em diversas esferas, atingindo os três poderes do estado do Espírito Santo. 

Em 2003 José Carlos Gratz afastou-se à força e em definitivo da Assembleia, quando teve a cassação política confirmada pelo Tribunal Superior Eleitoral — por abuso de poder econômico e político (compra de votos dos colegas deputados, para eleger-se presidente) — e foi finalmente preso, em 28 de fevereiro. O ex-parlamentar ficou detido até junho daquele mesmo ano. Saiu da prisão graças a um recurso deferido por tribunais superiores, mas voltaria à cela, mais uma vez, em setembro. A detenção duraria poucos dias, uma novela que resume a batalha judicial envolvendo Gratz. O ex-parlamentar, de acordo com a mídia, já respondeu a mais de 200 ações penais. Em dezembro de 2004, voltou à prisão, condenado por corrupção, apropriação de dinheiro público, usurpação de função pública, formação de quadrilha e fraude em licitação por superfaturamento em um seguro predial para a assembléia. Cumpriu quase 14 meses de pena. Conseguiu um habeas corpus em 2006, mas, mais uma vez, retornou à cadeia naquele mesmo ano, condenado em outro processo, referente à compra de sentenças judiciais no estado. Gratz encarou novamente o cárcere em abril de 2015. A prisão, desta vez, ocorreu em sua casa, na Praia do Canto, bairro nobre de Vitória. Também se referia a um mandado por condenação eleitoral ocorrida em 2005, transitado em julgado. Como a punição veio após a prescrição, Gratz livrou-se logo em seguida da prisão. Foi abatido mais uma vez no mesmo mês de abril, em 2017, surpreendido por um novo mandado de prisão expedido pela 1a Vara Federal Criminal de Vitória, condenado por peculato e lavagem de dinheiro. Ironicamente, descobriu-se, na ocasião, que o ex-presidente da Assembleia já estava cumprindo condenação a quatro anos de prisão em regime aberto desde 30 de março de 2017, sendo obrigado a permanecer em casa todas as noites, de 22h às 5h. 

A despeito dos reveses no Judiciário, em 2016 o Tribunal de Justiça do Espírito Santo extinguiu 18 ações cíveis de improbidade administrativa contra Gratz que tramitavam na 3a Vara da Fazenda Pública de Vitória, sob a alegação de nulidade das provas, obtidas a partir de quebra de sigilo bancário sem autorização judicial. 

Inúmeras condenações, decretações de prisão, julgamentos e recursos depois, em que conseguiu responder a vários processos em liberdade, Gratz voltou à prisão em novembro de 2017 por decisão do Superior Tribunal de Justiça, e ao lado do ex- conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, Valci Ferreira, ambos condenados por irregularidades na administração estadual, entre os anos de 1997 e 2001. Para se ter uma ideia da saga jurídica do polêmico ex-parlamentar, há registros no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 52 recursos envolvendo o nome de Gratz, de 1997 até o início de 2018. São pedidos de habeas corpus com liminar, recursos a pedidos de habeas corpus indeferidos, embargos, petições, entre outros. Um currículo repleto de fatos assim, de algum modo, confirma relatos colhidos a respeito de seu envolvimento e importância no contexto de crimes e irregularidades denunciados desde então. 

Com quase cinco mil seguidores no Facebook, mas à margem do processo, José Carlos Gratz, até a última detenção, dava sinais de que não desistiria e seguiria tentando influenciar a política capixaba. Segundo relatos ouvidos em depoimentos para este livro, até recentemente o ex-parlamentar circulava sem constrangimento pelas ruas de Vitória, sendo visto em restaurantes famosos, buscando demonstrar proximidade com políticos e empresários. 

O governador, José Ignácio, foi também acusado de corrupção, enriquecimento ilícito, desvio de verbas. Deixou o cargo, em janeiro de 2003, com a reputação política destruída. Sobreviveu ao mandato graças à ajuda de Gratz, que em 2001 enterrou seu pedido de impeachment na Assembleia Legislativa. Em 2008, foi condenado pela Justiça Federal a cinco anos de prisão em regime semiaberto e ao pagamento de multa no valor de 180 salários mínimos por crime de gestão temerária no Banestes (Banco do Estado do Espírito Santo), quando era candidato ao governo estadual, em 1998, numa transação bancária que teria envolvido um empréstimo a descoberto de R$ 2,6 milhões. O Superior Tribunal de Justiça o inocentou neste caso, em 2013, seguindo decisão já tomada pelo Tribunal Regional Federal (TRF-2) em 2010. Outra condenação, porém, surgiu em 2009, por apropriação indébita, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha pela 7a Vara Criminal de Vitória. Declarou-se inocente e cumpriu a sentença, a nove anos de reclusão, em liberdade. A condenação foi confirmada em 2015 pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo, e ele e a esposa, Maria Helena Ferreira, foram condenados a cumprir três anos de pena alternativa. 

Embora mencionados fartamente por nossos entrevistados e, por consequência, ao longo deste livro, não se pode dar a exclusividade deste processo a José Carlos Gratz e a José Inácio Ferreira. É certo que se tratam de ninguém menos que o presidente da Assembleia Legislativo e o governador do Estado, autoridades máximas em seus poderes e, por isso, centrais. Mas, é claro que, antes, ambos foram símbolos de um sistema, expressões de uma lógica patrimonialista, de ocupação do Estado e usurpação de seus recursos. É preciso enfatizar que não estavam sós. Correspondiam a um processo e a uma dinâmica política que, infelizmente, nem sequer é exclusiva do estado do Espírito Santo. 

A política capixaba parecia totalmente entregue às entranhas da corrupção. Outras revelações, desta vez do setor privado, aumentaram a sensação de incredulidade sobre o caos do Espírito Santo. Em 2001, a multinacional Xerox denunciou publicamente a cobrança de propina por agentes públicos e anunciou que deixaria o estado. O caso puxou um outro longo novelo histórico de degradação política e moral, relações promíscuas entre o setor privado e o setor público, as cobranças de propina, os negócios escusos. 

Enquanto os nomes de lideranças expressivas da sociedade capixaba apareciam associados à corrupção, sabia-se que a Scuderie Le Cocq, fundada no estado em 1984, reunia gente graúda da sociedade, misturava Jogo do Bicho, crime organizado e influência política. A organização fora denunciada como um braço armado e extensão do Esquadrão da Morte, o grupo que levou milhares ao extermínio no Rio de Janeiro. 

Se a Le Cocq estaria por trás de todo o processo de violência e corrupção que se abateu sobre o Espírito Santo uma década mais tarde, a maioria de nossos interlocutores não soube ou preferiu não afirmar com precisão. Há, em outros trabalhos, questões levantadas em torno disto (ver SOARES, LEMOS e MIRANDA, 2009). O fato é que havia no ambiente algo mais do que um magote de corruptos assaltando o Estado e corroendo as instituições. Sentia-se claramente a presença de uma organização criminosa sofisticadamente articulada em vários setores, e nos diversos poderes — Legislativo, Executivo e Judiciário. 

No fundo do poço, uma terra sem lei 

No início dos anos 2000, os escândalos eram tantos que a mídia brasileira e local passou a se referir ao Espírito Santo como “o Estado sem lei”. Se, a partir da coragem do grupo de religiosos e da OAB, a sociedade civil organizava-se, formando o Movimento Reage Espírito Santo, também um movimento de empresários, ciente da inviabilidade do ambiente de negócios no estado, articulava outra frente de reação, batizada de Espírito Santo em Ação. 

Inicialmente, era um grupo pequeno, com três ou quatro CEOs e presidentes de grandes empresas, que passou a se reunir e a confidenciar exemplos de achaques e chantagens que sofriam de agentes do poder público, em especial da Assembleia Legislativa, aos quais não queriam ceder. Também para esse grupo, o quadro era insuportável, debilitava a competição e comprometia o ambiente de negócios, inibindo investimentos e destruindo postos de trabalho. Caso nada fosse feito, a permanência dessas empresas no Espírito Santo seria impraticável, inviabilizando, por fim, o próprio Estado e a sociedade. 

Os encontros desses executivos ocorriam geralmente aos sábados de manhã, nas próprias empresas, alternadamente. O grupo cresceu e chegou a 16 empresários. As chantagens narradas eram variadas e criativas. A partir de 2000, quando Gratz tomou conta do Legislativo, os empresários eram convocados a prestar depoimentos em sucessivas e inusitadas audiências nas comissões especiais e sofriam constrangimentos públicos. Também eram constantemente ameaçados com a abertura de Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIs). Para agravar o cerco de intimidação,, os parlamentares criavam legislações esdrúxulas para prejudicar empresas exportadoras. 

Pipocavam também, segundo nos relataram investidores e empreendedores do estado, “notificações” por algum descumprimento fiscal ou ambiental inusitado, por parte das empresas. Antecipadamente, os empresários recebiam emissários que pudessem lhes garantir que, da mesma forma como multas milionárias apareciam, também sumiriam como "truques" de mágica. Bastava pagar o que os representantes do Legislativo exigiam. Outro aspecto interessante, de acordo com relatos que ouvimos de empresários capixabas, é que profissionais da imprensa conheciam valores da multa e seus detalhes bem antes de as empresas serem oficialmente notificadas, comprovando o ato premeditado de agentes públicos envolvidos com corrupção e achaques ao setor empresarial. 

Tão cansados quanto gradativamente sem alternativas, os empresários decidiram agir. Sabiam que o ponto de partida para escapar daquela situação seria mudar a representação no Legislativo. Um integrante do grupo Espírito Santo em Ação nos confidenciou que o clamor geral nas reuniões que antecederam as eleições de 2003, era: “Temos que descobrir como a gente pode mexer nesta Assembleia e colocar gente melhor lá”. 

Sim, foi com financiamento de campanhas eleitorais que o setor empresarial decidiu influenciar o resultado do pleito, tentando isolar o segmento político que considerava “contaminado”. As doações de empresas, ainda permitidas por lei naquela época, se submetiam a um filtro qualitativo simples: favorecer candidatos que não fizessem parte dos "esquemas”, àquela altura facilmente detectados e identificados. Assim, o grupo convenceu os conselhos das empresas a doar, formalmente, para alguns poucos candidatos. 

E que candidatos? De quais partidos? As escolhas, obviamente, foram subjetivas. Mas o apoio foi suprapartidário. O grau de putrefação do sistema político era tão visível que não era atividade complexa pinçar alguns poucos candidatos que tivessem "ficha limpa", não apenas no sentido formal e jurídico da expressão. Além disso, buscava-se reputação honesta e algum compromisso público visível. 

O engajamento do setor privado na busca de renovação da política, sozinho, era certamente pouco e, talvez, não tivesse tido resultados tão significativos não houvesse alinhamento e simbiose com outros setores. Houve, naquele momento, a consciência coletiva do significado de sociedade, ou sejam o entendimento de que , isoladamente, todos são fracos. As circunstâncias impunham a cooperação. 

O que ocorreu no Espírito Santo foi resultado de uma conjunção de fatores: a corrupção se tornava cada vez mais exposta, a sociedade cada vez mais indignada e organizada, e parte relevante do setor empresarial mostrou-se disposto a dar um basta no galopante processo de corrupção e declínio do Estado. 

Mesmo assim, o caldo já estava entornando quando, em abril de 2002, o advogado Joaquim Marcelo Denadai foi morto a tiros numa praia em Vila Velha. Denadai pretendia encaminhar, um dia após a sua morte, queixa-crime em que apontaria o envolvimento de empresas em fraudes de processos licitatórios e concorrências para serviços públicos nas 78 prefeituras no Espírito Santo e outras no Rio de Janeiro. O “caso Denadai” ganhou repercussão nacional e levou a OAB a pedir ao Ministério da Justiça uma intervenção federal no Espírito Santo. 

O então ministro da Justiça do governo de Fernando Henrique Cardoso, Miguel Reale Júnior — curiosamente o mesmo advogado que, quase uma década e meia mais tarde, atuou no pedido de impeachment de Dilma Rousseff — era favorável à intervenção e exigiu isto do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Porém, a ideia foi abortada pelo governo — intervir num estado não é simples, não pode ser ato de vontade da Presidência da República, tampouco depende do voluntarismo de agentes políticos. 

A possibilidade de intervenção federal está prevista desde a Constituição de 1891, mas desde a publicação da Constituição de 1988, nenhuma medida assim havia sido decretada no Brasil. A exceção ocorreu exatamente em fevereiro de 2018, quando pela primeira vez na história o governo federal decretou intervenção militar no estado do Rio de Janeiro. 

O artigo 60 da Constituição, no seu inciso primeiro, veda a possibilidade de o Congresso votar emendas constitucionais enquanto um ente federado estiver sob intervenção, o que é um desincentivo significativo — e prudente — de modo a não tornar a prática corriqueira e banal. Ainda assim, contrariado, Reale deixou o governo FHC e fez com que o caso sacudisse o Palácio do Planalto. 

O ministro da Justiça que sucedeu a Reale, Paulo de Tarso Ribeiro, decidiu, então, nomear uma Missão Especial para atuar no estado, com presença da Polícia Federal, Ministério Público, Polícia Rodoviária Federal, Congresso e representantes do governo federal, de modo a acelerar investigações e assegurar punições. Era a resposta mais efetiva que o governo FHC podia dar à crise institucional no estado naquele momento. Não se pode negar que a situação era delicada e politicamente incômoda porque José Ignácio, o governador, era do mesmo partido que o presidente da República, o PSDB. 

A Missão Especial foi crucial para inibir a ousadia dos corruptos e corruptores que consideravam o Espírito Santo um estado já capturado, “um Estado sem lei”. A reação da sociedade, o basta de parte expressiva dos empresários e a união política de setores sociais, reconhecidamente limpos, criava constrangimentos ao crime e um ambiente com alguma esperança. A eleição do então senador Paulo Hartung ao governo do Estado em outubro de 2002, numa disputa bastante concorrida e também fruto da divisão do próprio Fórum Reage Espírito Santo, finaliza uma etapa de escuridão no estado. A crise institucional, porém, não se esgotaria ali. Iniciaram-se novos obstáculos de governança num ambiente deteriorado.  

O objetivo deste livro é tentar explicar, a partir de relatos — muitos sob a condição de anonimato —, de empresários, políticos e lideranças que viveram de perto o caos no Espírito Santo, por que a corrupção atingiu esse grau de institucionalização e como foi possível traçar uma rota de recuperação política e econômica para o Estado. Histórias que farão o leitor encontrar, em tempos de Lava Jato e de falência fiscal dos estados brasileiros, muitas semelhanças com o Brasil de hoje. Um caso que gera um misto de frustração e esperança. 

É possível que o relato desta dinâmica política, que se deu no estado do Espírito Santo, possa servir como uma espécie de microcaso para o que veio a ocorrer em outros estados — mormente, o Rio de Janeiro — e o Brasil dos anos recentes. E, sendo assim, talvez, seja possível compreender a dinâmica mais ampla da política nacional e ousar pensar em encontrar saídas para o labirinto que parece nos envolver nesta segunda década do século XXI. 

Tudo o que sabemos sobre:
Paulo HartungEspírito Santo [estado]

O que o Brasil tem de melhor, João Gabriel de Lima, O Estado de S.Paulo


18 de julho de 2020 | 03h00

As eleições presidenciais de 2002, que opuseram Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e José Serra (PSDB), foram sacudidas por dois crimes – e cada um incomodou uma candidatura. O assassinato do prefeito Celso Daniel, em janeiro, chamou atenção para a cidade paulista de Santo André, um foco de corrupção petista. O outro crime ocorreu num Estado, o Espírito Santo, cujo governador havia sido eleito pelo PSDB. O advogado Marcelo Denadai, que investigava crimes de corrupção, foi morto em abril com três tiros, na Praia da Costa, em Vila Velha.

O assassinato de Denadai foi o auge de um processo de deterioração das instituições capixabas. A corrupção generalizada afastou empresas como a Xerox, que decidiu se retirar do Espírito Santo em 2001. A criminalidade atingiu níveis alarmantes. Os dois principais líderes políticos locais, o governador José Ignácio e o presidente da Câmara, José Carlos Gratz, acabaram condenados pela Justiça numa infinidade de processos. 

Passados 18 anos, o Espírito Santo é um Estado com dinheiro em caixa e criminalidade em queda, e foi a unidade da Federação que mais avançou no Ideb, o Índice de Desenvolvimento de Educação Básica, entre 2013 e 2017. Qual a razão do milagre?

A resposta está no livro, ainda inédito, Decadência e Reconstrução, de autoria de Carlos Melo e Milton Seligman, professores do Insper, e da jornalista Malu Delgado. Se fosse possível resumi-la em duas palavras, elas seriam: sociedade civil. Cidadãos capixabas de diferentes áreas e correntes políticas se uniram para resgatar o Estado. Professores universitários e líderes sindicais criaram o fórum Reage Espírito Santo, liderado pelo advogado Agessandro Pereira, da OAB local, e pelo arcebispo de Vitória d. Silvestre Scandian. A eles se juntaram empresários locais, que formaram o movimento Espírito Santo em Ação. (Um trecho do livro inédito está disponível na versão digital da coluna).

Apoiado pelos movimentos, Paulo Hartung foi eleito governador. Sua habilidade política foi essencial para trazer paz a um Estado conflagrado. A capacidade de fazer acordos é inerente ao bom político, assim como a habilidade com as mãos é essencial ao pianista – um político que não gosta de acordos é como um músico que acha melhor tocar piano com os pés. 

Na ocasião, Hartung, oriundo do PSDB, pelo qual se elegera prefeito de Vitória, passou por cima da polarização nacional e convidou Lula para uma visita ao Espírito Santo. Lula aceitou, e a parceria entre Estado e governo federal foi essencial no combate à criminalidade e à corrupção.

Hartung, personagem do mini-podcast da semana, hoje está envolvido com outra causa. Ele é um dos coordenadores da mobilização de CEOs para reverter a tragédia na Amazônia, onde o índice de desmatamento aumentou 34% entre agosto de 2018 e julho de 2019. “É necessário combater com firmeza as irregularidades e os crimes ambientais”, diz Hartung, diante de uma queda de 25% dos autos de infração contra tais crimes. Os empresários se juntaram a organizações de defesa da floresta, como o Imazon e o Instituto Clima e Sociedade, e receberam na terça-feira a adesão de ex-ministros da Fazenda de todo o espectro político.

A sociedade civil é o que o Brasil tem de melhor. Cabe a ela inspirar e pressionar o poder público em momentos – como o da crise no Espírito Santo, ou o da tragédia amazônica – em que parece faltar vontade, competência ou senso de urgência.

Memórias de Luís Costa Pinto lançam luz sobre relação entre o jornalismo e o poder, Guilherme Evelyn OESP (definitivo)

Trapaça é um livro sobre as relações entre jornalismo e política da era do “pager”. Só os acima dos 40 anos vão se lembrar. Antes do celular e do Whatsapp, o “pager” era o meio mais rápido para mandar uma mensagem a quem estava se deslocando ou se encontrava no meio da rua. Era um dispositivo eletrônico, carregado na cintura por muitos, que, nos modelos mais primitivos, soava um sinal sonoro de bip quando havia um recado urgente para o portador. O destinatário então telefonava para uma central de telefone para saber o conteúdo da mensagem. O “pager” era o meio preferencial de comunicação entre as chefias das redações de veículos da imprensa e repórteres em campo no começo dos anos 90 do século passado, quando o autor de Trapaça, o jornalista Luís Costa Pinto, realizou sua maior façanha profissional. 

FHC
Posse do presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995 Foto: Silvio Ribeiro/Estadão

Em maio de 1992, aos 23 anos, recém-chegado a Brasília de Recife, Costa Pinto fez a célebre entrevista com Pedro Collor, em que o irmão do então presidente Fernando Collor revelou as traficâncias no governo cometidas por Paulo César Farias, ex-tesoureiro da campanha presidencial. Publicada pela revista Veja, a entrevista levou à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso, que culminou com o primeiro impeachment da história da República brasileira. Em retrospectiva, o episódio pode ser visto também como um marco da influência do jornalismo impresso no Brasil. Depois de ajudar a ascensão política de Collor, com uma capa sobre O Caçador de Marajás que governava Alagoas, Veja, com uma circulação superior a 1 milhão de exemplares na época, acionou as engrenagens que levaram à deposição do poder do primeiro presidente eleito pelo voto popular após o regime militar instaurado no País entre 1964 e 1985.

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Costa Pinto, que se afastou das redações em 2002 para trabalhar como consultor de comunicação em Brasília, conta em Trapaça suas experiências com o jornalismo e o poder, entremeadas por passagens, algumas delicadas, de sua vida pessoal. Ambicioso (jovem, dizia que as pessoas têm até os 24 anos para suas principais realizações), naturalmente espaçoso (tem 1,85 metro e 112 quilos) e grandiloquente, “Lula”, como é conhecido pela alcunha tipicamente pernambucana, resolveu espichar suas memórias por uma trilogia. O primeiro volume, publicado no ano passado, se concentra no curto mandato de Collor, até o seu impeachment. O segundo volume, recém-lançado, se inicia com a substituição de Collor por Itamar Franco e vai até o começo do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, marcado pela desvalorização do Real e pelo escândalo dos bancos Marka-Fonte Cindam. Um terceiro volume deverá tratar do final do governo FHC e dos anos do PT no poder.

Mais enxuto, sem algumas digressões, o livro ganharia em fluência. Mas a narrativa é envolvente e nunca perde o pique de romance despreocupado com a precisão, com o qual Costa Pinto quis embalar suas memórias. O primeiro volume se inicia com o seu surreal início profissional em Veja, em que ele teve de se envolver com a autópsia do corpo do jornalista a quem sucedera no comando da sucursal de Recife e que falecera num acidente de trânsito. A história da perseguição do furo com a entrevista com Pedro Collor é contada em ritmo de thriller. 

O segundo volume se inicia igualmente com uma cena fúnebre: a descrição do velório de PC Farias, em Maceió. “Lula”, como repórter do jornal O Globo, foi o último jornalista a entrevistar o ex-tesoureiro de Collor, antes de ele ser assassinado, num caso que permanece, até hoje, envolto em mistério. Menos frenética a partir do governo Itamar, a narrativa é apimentada pelas histórias de assédio às mulheres pelo então presidente, que era divorciado. O caso mais rumoroso rendeu a famosa foto em que a modelo Lilian Ramos apareceu ao seu lado, sem calcinha, no sambódromo do Rio durante um Carnaval. Costa Pinto conta também um episódio, até aqui desconhecido, revelado por um executivo de uma empresa, de como Itamar teria assediado uma oficial de Marinha que trabalhava no gabinete presidencial. Tornado público em tempos de #MeToo, seria motivo para outro impeachment.

Trapaça pode atrair a atenção de quem se interessa por história da imprensa no Brasil e suas relações com o poder, mas enseja também reflexões sobre o papel do jornalismo numa democracia. O livro narra episódios de um momento de esplendor do poder e da influência do jornalismo impresso no Brasil, em que jornais e revistas contavam com grandes orçamentos e equipes e eram os mediadores, por excelência, do debate público. Ele coincide com os primeiros anos em vigor da Constituição de 1988, que instaurou um regime democrático no País. Apesar dos problemas, havia confiança na democracia e no futuro do País – o que também explica como o impeachment de Collor foi aprovado sem causar grandes traumas institucionais. 

“Havia um sol luminoso nas bancas de revista”, escreve, com as tintas da melancolia, Costa Pinto, na epígrafe do primeiro volume. Após a explosão das redes sociais, os orçamentos e as equipes dos veículos de imprensa “mainstream” diminuíram. A esfera do debate público se estilhaçou. A imprensa e o jornalismo profissional estão sob ataque e forças obscuras tentam minar sua influência e credibilidade. As instituições erigidas pela Constituição de 1988 estão vivendo um teste de estresse. Não é por acaso que também há menos confiança no futuro do País. 

Mas nem tudo antes era luminoso, nem tudo agora é pior. Trapaça relata em vários episódios como jovens repórteres (e seus chefes) agiam arrogantemente como detentores do poder livres de escrutínio público. Hoje, sob maior vigilância, jovens repórteres, como foi Costa Pinto, contam com mais recursos para obter informações, contar boas histórias e fazer um jornalismo melhor. O “pager” foi aposentado. O mundo mudou e se tornou certamente mais desafiador. Cabe ao jornalismo profissional,com as novas ferramentas tecnológicas, se reinventar para continuar a ser uma força a favor da democracia