Trapaça é um livro sobre as relações entre jornalismo e política da era do “pager”. Só os acima dos 40 anos vão se lembrar. Antes do celular e do Whatsapp, o “pager” era o meio mais rápido para mandar uma mensagem a quem estava se deslocando ou se encontrava no meio da rua. Era um dispositivo eletrônico, carregado na cintura por muitos, que, nos modelos mais primitivos, soava um sinal sonoro de bip quando havia um recado urgente para o portador. O destinatário então telefonava para uma central de telefone para saber o conteúdo da mensagem. O “pager” era o meio preferencial de comunicação entre as chefias das redações de veículos da imprensa e repórteres em campo no começo dos anos 90 do século passado, quando o autor de Trapaça, o jornalista Luís Costa Pinto, realizou sua maior façanha profissional.
Em maio de 1992, aos 23 anos, recém-chegado a Brasília de Recife, Costa Pinto fez a célebre entrevista com Pedro Collor, em que o irmão do então presidente Fernando Collor revelou as traficâncias no governo cometidas por Paulo César Farias, ex-tesoureiro da campanha presidencial. Publicada pela revista Veja, a entrevista levou à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso, que culminou com o primeiro impeachment da história da República brasileira. Em retrospectiva, o episódio pode ser visto também como um marco da influência do jornalismo impresso no Brasil. Depois de ajudar a ascensão política de Collor, com uma capa sobre O Caçador de Marajás que governava Alagoas, Veja, com uma circulação superior a 1 milhão de exemplares na época, acionou as engrenagens que levaram à deposição do poder do primeiro presidente eleito pelo voto popular após o regime militar instaurado no País entre 1964 e 1985.
Costa Pinto, que se afastou das redações em 2002 para trabalhar como consultor de comunicação em Brasília, conta em Trapaça suas experiências com o jornalismo e o poder, entremeadas por passagens, algumas delicadas, de sua vida pessoal. Ambicioso (jovem, dizia que as pessoas têm até os 24 anos para suas principais realizações), naturalmente espaçoso (tem 1,85 metro e 112 quilos) e grandiloquente, “Lula”, como é conhecido pela alcunha tipicamente pernambucana, resolveu espichar suas memórias por uma trilogia. O primeiro volume, publicado no ano passado, se concentra no curto mandato de Collor, até o seu impeachment. O segundo volume, recém-lançado, se inicia com a substituição de Collor por Itamar Franco e vai até o começo do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, marcado pela desvalorização do Real e pelo escândalo dos bancos Marka-Fonte Cindam. Um terceiro volume deverá tratar do final do governo FHC e dos anos do PT no poder.
Mais enxuto, sem algumas digressões, o livro ganharia em fluência. Mas a narrativa é envolvente e nunca perde o pique de romance despreocupado com a precisão, com o qual Costa Pinto quis embalar suas memórias. O primeiro volume se inicia com o seu surreal início profissional em Veja, em que ele teve de se envolver com a autópsia do corpo do jornalista a quem sucedera no comando da sucursal de Recife e que falecera num acidente de trânsito. A história da perseguição do furo com a entrevista com Pedro Collor é contada em ritmo de thriller.
O segundo volume se inicia igualmente com uma cena fúnebre: a descrição do velório de PC Farias, em Maceió. “Lula”, como repórter do jornal O Globo, foi o último jornalista a entrevistar o ex-tesoureiro de Collor, antes de ele ser assassinado, num caso que permanece, até hoje, envolto em mistério. Menos frenética a partir do governo Itamar, a narrativa é apimentada pelas histórias de assédio às mulheres pelo então presidente, que era divorciado. O caso mais rumoroso rendeu a famosa foto em que a modelo Lilian Ramos apareceu ao seu lado, sem calcinha, no sambódromo do Rio durante um Carnaval. Costa Pinto conta também um episódio, até aqui desconhecido, revelado por um executivo de uma empresa, de como Itamar teria assediado uma oficial de Marinha que trabalhava no gabinete presidencial. Tornado público em tempos de #MeToo, seria motivo para outro impeachment.
Trapaça pode atrair a atenção de quem se interessa por história da imprensa no Brasil e suas relações com o poder, mas enseja também reflexões sobre o papel do jornalismo numa democracia. O livro narra episódios de um momento de esplendor do poder e da influência do jornalismo impresso no Brasil, em que jornais e revistas contavam com grandes orçamentos e equipes e eram os mediadores, por excelência, do debate público. Ele coincide com os primeiros anos em vigor da Constituição de 1988, que instaurou um regime democrático no País. Apesar dos problemas, havia confiança na democracia e no futuro do País – o que também explica como o impeachment de Collor foi aprovado sem causar grandes traumas institucionais.
“Havia um sol luminoso nas bancas de revista”, escreve, com as tintas da melancolia, Costa Pinto, na epígrafe do primeiro volume. Após a explosão das redes sociais, os orçamentos e as equipes dos veículos de imprensa “mainstream” diminuíram. A esfera do debate público se estilhaçou. A imprensa e o jornalismo profissional estão sob ataque e forças obscuras tentam minar sua influência e credibilidade. As instituições erigidas pela Constituição de 1988 estão vivendo um teste de estresse. Não é por acaso que também há menos confiança no futuro do País.
Mas nem tudo antes era luminoso, nem tudo agora é pior. Trapaça relata em vários episódios como jovens repórteres (e seus chefes) agiam arrogantemente como detentores do poder livres de escrutínio público. Hoje, sob maior vigilância, jovens repórteres, como foi Costa Pinto, contam com mais recursos para obter informações, contar boas histórias e fazer um jornalismo melhor. O “pager” foi aposentado. O mundo mudou e se tornou certamente mais desafiador. Cabe ao jornalismo profissional,com as novas ferramentas tecnológicas, se reinventar para continuar a ser uma força a favor da democracia
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