A Gerdau, a Ambev e o hospital Albert Einstein deram uma lição ao grande empresariado nacional.
Anunciaram a doação de um centro de tratamento da Covid-19 com cem leitos à Prefeitura de São Paulo. Em duas semanas entregarão 40 leitos e até o fim de abril estarão prontos os outros 60. A unidade atenderá pacientes do SUS.
O pavilhão ficará anexo ao hospital M'Boi Mirim, na periferia da cidade. A Gerdau doará a estrutura do prédio, a Ambev bancará o custo e o Einstein cuidará dos pacientes. Nenhum grande acionista da Gerdau ou da Ambev ficará mais pobre com a doação. Nas últimas semanas nenhum deles saiu por aí dizendo tolices demófobas em eventos teatrais. Sem espetáculo, fizeram o que acharam que deviam.
Empregada da Ambev na linha de produção de álcool gel fabricado para o combate à transmissão do coronavírus - Amanda Perobelli /Reuters
O Albert Einstein, nascido da filantropia da comunidade judaica de São Paulo, aderiu à iniciativa num momento em que as grandes empresas de medicina privada (inclusive algumas que se dizem filantrópicas) oferecem aos brasileiros um virótico silêncio. Quando celebridades e ministros adoecem, é comum ver-se o logotipo desses hospitais na telinha. Agora que a emergência sanitária chegou ao andar de baixo, sumiram. (O ministro Luiz Henrique Mandetta queixou-se de que um desses potentados sequer devolveu seu telefonema.)
Coisas boas também acontecem. O colégio Miguel de Cervantes, situado nas proximidades do Einstein, abriu 300 vagas para filhos de enfermeiros, técnicos e médicos do hospital. A escola ocupa uma área de 60 mil metros quadrados e as crianças ficarão lá durante os turnos dos pais, assistidos por voluntários, sem contato físico. O hospital fornecerá a alimentação da garotada. Outro colégio da cidade, o Porto Seguro, aderiu à iniciativa.
Em Manaus uma rede de lojas Bemol doou ao governo do estado seu estoque de mil colchões e máscaras. (Repetindo, doou o estoque.) No Rio de Janeiro, pizzarias continuam mandando refeições aos profissionais de saúde da cidade. Alguns deles trabalham em turnos de 24 horas.
José Eduardo Barella / ESPECIAL PARA O ESTADO, O Estado de S.Paulo
29 de março de 2020 | 05h00
Acostumados a fazer dos adversários inimigos mortais e desprezar o que chamam de elite política, acadêmica, científica e cultural, muitos líderes populistas estão experimentando o próprio veneno. Pegos de surpresa pelo novo coronavírus, eles reagiram tarde à pandemia e estão às voltas com o aumento de casos e mortes, além da expectativa de uma gravíssima crise econômica.
Steven Levitsky: pandemia desafia líderes populistas (Jesika Theos / The New York Times)
Para o cientista político Steven Levitsky, coautor do livro Como as Democracias Morrem, que mostra as razões da expansão populista nos últimos anos, o desprezo pela ciência e pela elite caiu por terra com o avanço da pandemia. Pegos de surpresa pelo surgimento do coronavírus, líderes populistas como Donald Trump, nos EUA, Jair Bolsonaro, no Brasil, e Andrés Manuel López Obrador, no México, correm risco de isolamento e de perder mais popularidade em razão da crise econômica.
A pandemia, segundo Levitsky, é o maior desafio dos populistas. Primeiro, porque corrói a popularidade que os sustentam. Sem popularidade, fica mais difícil tomar medidas autocráticas para ameaçar a democracia. Em segundo lugar, por colocar a própria sobrevivência desses líderes em risco. “A pandemia está mostrando que o desprezo desses populistas pela ciência e pelos especialistas vai custar caro”, disse. A seguir, trechos da conversa com Levitsky.
Por que populistas como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson foram lentos ao reagir à pandemia?
Líderes populistas costumam se eleger atacando o establishment, dizendo ao povo que, uma vez no poder, varrerão a elite. Mas parte dessa elite é formada por especialistas – economistas, cientistas, técnicos, profissionais de saúde, como os que lideram agora o combate ao coronavírus. E a primeira resposta dos populistas à pandemia foi rejeitar os conselhos dos especialistas, recorrendo a pessoas próximas que não são do ramo. Bolsonaro preferiu ouvir conselhos dos filhos. Trump, do genro. Não é por acaso que Trump, Bolsonaro e (Andrés Manuel) López Obrador (presidente do México) demoraram a reagir. Já o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, é um caso à parte. Embora tenha demorado, ele acabou aceitando os conselhos de especialistas e foi mais rápido em adotar medidas. Mas ficou evidente que a inação inicial deve trazer consequências trágicas, como estamos vendo.
Se fosse possível formar um ranking, quem levaria a medalha de ouro em performance populista na reação ao coronavírus?
Todos cometeram erros, mas vale citar o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, cuja resposta à pandemia foi péssima – mas eu não chamaria ele de líder populista. Portanto, ele fica de fora dessa disputa. Sem sombra de dúvida, a medalha de ouro vai para Bolsonaro. Ele continua a desdenhar da crise. A maior parte do seu discurso (do dia 24) na TV continha inverdades que refletem um nível de ignorância que vai além da demonstrada por Trump. Vale notar que o desprezo do presidente brasileiro pelas recomendações de especialistas, parte da estratégia populista de rejeitar a elite, não tem precedentes na história recente do País. Políticos tradicionais, independentemente se eram de direita ou de esquerda, como José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula, tiveram ajuda de técnicos com experiência de governo.
No seu livro, o senhor afirma que parte da estratégia dos populistas é ignorar o respeito mútuo e a tolerância. Numa crise profunda, adotar essa estratégia autoritária tende a levar os populistas ao isolamento?
Depende do líder populista. Situações de emergência nacional, como guerras, desastres naturais e pandemias, exigem cooperação entre a classe política, entre o presidente e o Congresso, entre presidente, governadores e prefeitos, e entre governo e oposição. Os populistas costumam fazer de seus oponentes inimigos ferozes, o que dificulta esse tipo de cooperação durante uma crise.
Essa disputa costuma levar o líder populista ao isolamento?
Normalmente, o populista cria uma espécie de ambiente tóxico na política entre ele e seus oponentes. Isso não torna impossível reunir a classe política para responder a uma crise, mas certamente é mais difícil. Muitas vezes, durante situações do tipo, é comum uma união em torno do presidente. Aparentemente, isso não está acontecendo com Bolsonaro, que parece ser um caso claro de isolamento.
Tanto Trump quanto Bolsonaro culparam a China pela crise e evitaram adotar medidas drásticas, com medo de afetar a economia. Isso configura uma estratégia política populista?
Não sei se essa reação similar é coincidência ou o quanto Bolsonaro está copiando Trump. Mas não acredito que se trata de um movimento ideológico. Um dos mentores do trumpismo, Steve Bannon, foi defensor de uma resposta de saúde pública mais agressiva. Ou seja, neste aspecto, Bolsonaro agiu de forma diferente da preconizada pelo cérebro do trumpismo. Já Obrador, um populista de esquerda, agiu de forma semelhante à de Bolsonaro, criticando a paralisia da economia. Portanto, não acho que seja uma questão ideológica, e sim uma atitude intuitiva de um político personalista, nacionalista e, mais importante, antielitista. Um político com uma grossa camada narcisística, que acredita que ele mesmo, sozinho, sabe mais que os especialistas.
A gravidade da crise pode estimular os populistas a acumular mais poder?
É provável que líderes autoritários respondam a essa crise com medidas para ampliar seu poder. Mas não está claro quantos serão bem-sucedidos se começarem a tomar essas medidas. Um político isolado, como Bolsonaro, tentar aproveitar a situação para acumular poder tem menos chance de obter sucesso. O mesmo vale para Trump.
Mesmo numa situação especial como essa?
Sim. Se um líder não tem confiança do povo durante uma crise, deve evitar criar mais problemas para ele mesmo. É o que estamos começando ver no Brasil. Os brasileiros não estão respondendo bem a esse grande poder que o Bolsonaro tem para lidar com a pandemia.
Então o temor de que Bolsonaro se aproveite da crise para obter mais poder é exagerado?
Se você imaginar o cenário daqui a seis meses, com a economia em situação mais delicada do que hoje, Bolsonaro provavelmente terá menos apoio do que tinha, o que torna arriscado tentar algum movimento fora do jogo democrático.
É possível que o pronunciamento de Bolsonaro, no dia 24, tenha sido uma manobra para forçar uma situação que justifique medidas autoritárias?
Na crise em que o Brasil se encontra, não há nenhuma garantia de que Bolsonaro se comportará democraticamente. Precisamos nos preocupar todos os dias com o fato de Bolsonaro tentar quebrar as regras do jogo democrático. O fato de estar perdendo popularidade, e também porque muitos atores da política e da sociedade brasileira se recusam a apoiar uma aventura por parte dele, me leva a crer que, caso tente quebrar a ordem democrática, Bolsonaro fracassará.
Por que os populistas sempre buscam a polarização, mesmo em uma crise grave como agora?
Líderes populistas tendem a usar a mesma estratégia que funcionou para eles no passado. Se você chegar ao poder como populista, provavelmente continuará usando essa estratégia no poder.
Você ficou surpreso com o pronunciamento de Bolsonaro, indo na contramão das medidas de isolamento?
O que me impressionou mais foi como ele está copiando Trump. O pronunciamento foi consistente com seu comportamento desde que comecei acompanhar sua trajetória. Fiquei chocado com seu grau de ignorância – e, para ser sincero, não sei se ele é de fato tão ignorante quanto demonstra, como quando afirma acreditar que 90% dos jovens não serão contaminados pelo coronavírus e, portanto, devem voltar às aulas. Mas é arrepiante ver os dois maiores países do hemisfério, Brasil e EUA, governados por presidentes que vivem mentindo, respondendo a essa crise dessa maneira ignorante e irresponsável. Infelizmente, é o custo que temos de pagar por tê-los escolhido. O mundo estará olhando para a eleição presidencial nos EUA deste ano com atenção redobrada.
Com o impacto do coronavírus na economia, uma derrota de Trump sinalizaria que a onda populista pode murchar?
É o que espero. Tudo que Trump pretende agora é reviver a economia para que possa ganhar a reeleição – é com isso que ele se importa. Não há como prever os efeitos que ocorrerão nos próximos meses. De qualquer forma, a tendência é termos uma eleição muito disputada.
Mesmo a economia tendo pouco tempo para se recuperar?
Antes do coronavírus, apesar de a economia estar indo bem e Trump tivesse boas chances de se reeleger, é importante lembrar que sua aprovação era de apenas 43%. Ele não é um presidente muito popular, mas tem uma base muito forte. Não sabemos o que vai acontecer com a economia. Mas há projeções que indicam uma forte queda no segundo trimestre, com recuperação ao fim do terceiro trimestre – o que ajudaria Trump. Mas os EUA são vistos como um modelo para o restante do mundo. Se um líder populista for tirado do poder aqui nos EUA, acho que será um duro golpe para o populismo. É o que espero.
Com a explosão da pandemia causada pelo novo coronavírus, o jornalismo cresce na preferência dos brasileiros. Para quando podemos esperar a vacina? Que medicamentos têm prognóstico positivo no combate aos sintomas? O confinamento é eficaz? Em que formatos? O que vai acontecer na economia? O tecido social vai se esgarçar? Enquanto o presidente da República aposta em sandices criminosas para desorientar a sociedade aflita e excitar suas falanges digitais (a última foi dizer que “brasileiro pula no esgoto e não acontece nada”), é na imprensa que as pessoas vão buscar respostas dignas de crédito.
As maiores redações profissionais no Brasil já perceberam que algo mudou. Ampliando os horários de seus telejornais, a Rede Globo colhe mais audiência (no Ibope, vem alcançando sozinha um índice maior do que a soma de todas as concorrentes). O Jornal Nacional virou um programa diário obrigatório para quem quer uma leitura responsável do que se passa. Aqui mesmo, no Estado, o aumento do número de assinaturas (no impresso e no digital) é relevante, no dizer dos editores. Uma pesquisa do Datafolha divulgada na segunda-feira, dia 23, revelou que os programas jornalísticos da TV, com 61%, e jornais impressos, 56%, lideram os índices de confiança do público para se informar sobre a pandemia. Quanto a Google e Facebook, ficam com apenas 12%.
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França. Mulher com máscara lê jornal em rua vazia: programas jornalísticos da TV, com 61%, e jornais impressos, 56%, lideram índices de confiança do público para se informar sobre pandemia Foto: REUTERS/Christian Hartmann
Em outro monitoramento, o Dapp (Diretoria de Análise de Políticas Públicas), da Fundação Getúlio Vargas, atestou que, entre os dias 12 e 24 de março, os vídeos mais vistos no YouTube e no WhatsApp sobre a covid-19 eram “quase todos” produzidos por veículos jornalísticos. No exterior, o quadro não é diferente. Um levantamento da agência Global de Comunicação Edelman, realizada em dez países (Brasil inclusive) entre os dias 6 e 10 de março, mostrou que, para 64% dos entrevistados, os jornais são os mais confiáveis entre todas as fontes de informação – num resultado que marca um forte crescimento em relação às pesquisas anteriores. De acordo com a Edelman, o Brasil ainda fica um pouco atrás da média global, mas acompanha a tendência favorável ao jornalismo registrada nos outros países.
Os números indicam uma revalorização do trabalho jornalístico. Na verdade, indicam mais do que isso. Essas cifras integram um universo de mudanças de atitude que sinalizam uma espécie de despertar, ainda tímido, da razão. A civilização que foi parar na enfermaria (e na UTI) parece tentar fazer as pazes com a sensatez e com a empatia. Ninguém aqui quer bancar o otimista, mas olhemos à nossa volta. Num mundo em que ninguém mais parecia disposto a se entender com ninguém, estabeleceu-se, em prezo recorde, um consenso surpreendente em torno da ideia de que os governos vão dar dinheiro para proteger os mais pobres. Algo realmente está mudando.
A mentira perde popularidade. Mesmo aqueles que se deliciavam em trabalhar de graça para o bolsonarismo espalhando fake news descobriram que, quando se trata da saúde da família, é na imprensa que podem confiar. Os cabos eleitorais da extrema direita são os que mais sabem do pacto com a fraude informativa patrocinada pelo presidente que aí está. Portanto, são os que mais sabem que não dá para se fiar no BolsoNero (para usar aqui o apelido que lhe foi conferido por Frei Betto e, esta semana, pela revista The Economist). Com o vírus à espreita de suas moradas, até os fascistinhas de WhatsApp buscam socorro em reportagens sérias.
Melhor assim. Que sejam bem-vindos. Uma sociedade sem imprensa, sem ciência, sem universidade, sem liberdade, sem apego à verdade dos fatos, sem compaixão e sem capacidade de diálogo não tem chances de sobreviver.
EUGÊNIO BUCCI É PROFESSOR DA ECA-USP E ARTICULISTA DO ‘ESTADO’