sábado, 28 de março de 2020

Alvaro Costa e Silva A alma encantadora dos janelaços, FSP

De boné, roupas coloridas, cordões no pescoço, Erisvaldo Correia dos Santos, um cearense do Crato, incorporou-se à paisagem da Glória, do Catete e do Flamengo, com seu sorriso largo e voz potente: "Três reais para comer a minha rosca! Gente, a minha rosca é larga e doce!".
Nem todo mundo acha graça, e ele já levou umas bolsadas, num ataque de senhoras que saíam da igreja no largo do Machado. Mas jamais eu tinha visto o Homem da Rosca tão triste como nos últimos dias. Ele continua acordando às cinco da manhã, para preparar a iguaria com açúcar e canela. Antes da quarentena, chegava a vender 400 roscas. Hoje, nem 10.
Avenida vazia no centro do Rio de Janeiro - Código 19
Exemplo de empreendedorismo estudado nas escolas de marketing, Erisvaldo integra um setor de trabalhadores dos mais penalizados com a crise: os informais. Oficialmente eles são cerca de 40 milhões (mas a impressão é que há muitos mais). Destes, 33% estão no grupo de maior risco: têm acima de 60 anos e sofrem de males crônicos. A Câmara dos Deputados aprovou um projeto que prevê o pagamento de uma renda emergencial de R$ 600 aos informais --o governo queria dar R$ 200.
O pregão fescenino do Homem da Rosca corta o silêncio e a solidão no Flamengo. De certa maneira, a insistente presença dele representa a normalidade dentro da anomalia. Com o isolamento social, o prazer de se perder na multidão da cidade desapareceu. Está vazia a rua do Ouvidor. Como las ramblas de Barcelona, a Times Square de Nova York, a avenida del Libertador em Buenos Aires, a praça São Pedro no Vaticano, o bairro de Shibuya em Tóquio. Sem as pessoas, a alma encantadora de que falava o João do Rio se desprendeu das ruas.
E no entanto ela volta, pontual, a cada noite de janelaço: a algaravia, o bater de panelas e frigideiras, as cantorias, as buzinas, o som de um berrante desgarrado, os xingamentos, o grito de "Fora, Bolsonaro".
Alvaro Costa e Silva
Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".
  • 4

Mesmo em tempos de guerra, cortar salário de servidor permanece tabu, FSP

Cúpula do Judiciário e parlamentares são principal entrave à proposta

  • 29
A cúpula do Judiciário e uma ala fisiológica de parlamentares dentro do Congresso encarnam hoje o principal entrave à proposta de reduzir salários do funcionalismo em resposta ao caos econômico-fiscal gerado pela pandemia do coronavírus.
Enquanto o governo prepara uma medida provisória para permitir o corte de até 65% da remuneração e jornada de trabalhadores do setor privado —com uma ajuda federal para recompor os ganhos, a depender da renda—, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, já fez circular seu recado: uma proposta de emenda constitucional para reduzir vencimentos de servidores pode ser barrada pela corte.
Deputados e senadores do bloco de partidos conhecido como centrão também resistem à ideia, embora o "primeiro-ministro", Rodrigo Maia, seja um dos principais entusiastas da medida. Ele defende cortar em até 20% os holerites do funcionalismo, o que incluiria os salários de parlamentares.
Pelos cálculos de Maia, seria possível economizar até R$ 3,6 bilhões/mês, preservando funcionários de menor remuneração e os que trabalham na linha de frente do combate ao vírus. Outra hipótese prevê redução de até 30% nos altos contracheques.
A "Justiça", em frente à sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Wagner Pires/Futura Press/Folhapress
No jogo de forças de Brasília, o poderoso corporativismo estatal tem levado a melhor —vide o destino da reforma administrativa e da chamada PEC emergencial. Mesmo em tempos de guerra como o que vivemos, permanecem como tabu iniciativas para extinção de privilégios e redução da desigualdade.
No mais, há a quem se aplique a abjeta declaração do presidente Bolsonaro, para quem o brasileiro merece ser estudado. "Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele."
O Senado aprovou a medida provisória do contribuinte legal e derrubou o jabuti enxertado pela Câmara com o bônus de eficiência dos fiscais da Receita —teria sido um aumento salarial escamoteado.
Julianna Sofia
Jornalista, secretária de Redação da Sucursal de Brasília.

Mais que um paliativo, FSP

Taxas de ocupação nas UTIs do país são muito elevadas

  • 4
Mesmo antes da epidemia, uma falha da medicina brasileira era a pouca atenção dada aos cuidados paliativos. Todo o mundo sabe que vai morrer um dia, mas, por uma série de fatores, esse é um assunto que preferimos evitar, inclusive nos hospitais. O resultado é o prolongamento de esforços terapêuticos para além do razoável, muitas vezes aumentando o sofrimento do paciente e incorrendo em gastos difíceis de justificar.
O que a experiência brasileira e internacional mostra é que, quando equipes de cuidados paliativos se engajam em estabelecer uma comunicação honesta e empática com os pacientes e seus familiares, explicando o que se pode esperar nas próximas fases da doença, mesmo os piores prognósticos tendem a ser recebidos com menos angústia. Isso permite traçar estratégias mais humanas e realistas de tratamento, seja o paliativo exclusivo ou proporcional.
Se paliar mais já era uma necessidade antes da Covid-19, tornou-se agora questão de sobrevivência —de pessoas e do sistema.
O grande gargalo são as UTIs. O Brasil tinha, antes da crise, 47 mil leitos de UTI, mas mal distribuídos e com taxas de ocupação elevadas —95% no SUS e 80% na rede particular. Há grande esforço para ampliar essa capacidade. A ocupação será reduzida com a restrição de cirurgias eletivas, mas é preciso fazer mais.
Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, em Campinas (SP) - Denny Cesare/Código 19/Folhapress
Pacientes paliados que já não tenham como se beneficiar de internação devem, até para reduzir o risco de contrair nova moléstia, ser transferidos para casa ou unidades de retaguarda.
Se os piores cenários se materializarem e a infecção atingir com força também as cidades menores, milhares de pacientes poderão ficar sem acesso a UTIs. Só 10% dos municípios do país contam com esse tipo de leito. A impossibilidade de proporcionar um tratamento efetivo não desobriga médicos de oferecer conforto a esses pacientes. Como estão os estoques e a distribuição de morfina?
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".