segunda-feira, 23 de março de 2020

O que mudou da gripe espanhola para a pandemia do coronavírus?, FSP


Já passamos por uma calamidade de proporções ciclópicas. O testemunho ocular de um parlamentar durante a gripe espanhola (1918), na capital da República, aponta para a magnitude da tragédia: "A gripe desembarcara de Dakar uma semana antes, e apoderara-se logo da cidade, espalhando sem dificuldade sobre ela sua dominação assombradora. Quanta gente que não devia morrer tão cedo, moços fortes, moças bonitas quantos não tinham já partido".
"Cada dia, cada hora chegava uma notícia... noivas com enxovais prontos, esperando o dia do casamento, enroladas as pressas no vestido de noivado e atiradas num montão de outros cadáveres que aguardavam cova no cemitério", (Gilberto Amado, em suas memórias).
O presidente Jair Bolsonaro e ministros do governo, todos usando máscara de proteção no rosto, durante coletiva de imprensa para falar sobre a crise do coronavírus - Pedro Ladeira - 18.mar.2020/Folhapress
Mas são muitas as diferenças entre a gripe espanhola e a atual crise do coronavírus. Trato aqui apenas de uma delas: dada a intervenção massiva do Estado no setor e seu impacto econômico avassalador, a crise atual é crise total.
A política de atenção à saúde tal qual a conhecemos hoje em quase todas as democracias (os EUA é a grande exceção) é recente e só se desenvolveu no pós-Guerra. No Brasil, em 1918, nem sequer tínhamos algo chamado Ministério da Saúde, mas apenas campanhas sanitárias esporádicas, com forte participação internacional (Fundação Rockfeller). Em 1930, foi criado um Ministério da Educação e Saúde Pública, mas a saúde só ganha um ministério autônomo em 1953.
A atenção à saúde pública curativa e não emergencial só se desenvolveu de forma incipiente para os associados dos institutos de aposentadoria e pensões (Iapi, IAPC etc.) até a fusão dos institutos no INPS, em 1966. Seus departamentos de saúde foram amalgamados no Inamps, cujos hospitais continuaram fechados e inacessíveis a não membros até 1985, quando o Suds —rebatizado SUS, em 1990— foi criado. Foi nesse período que se desenvolveu o modelo de planos de saúde privados, produzindo a segmentação público/privada no setor.
Hoje a área da saúde corresponde ao segundo maior orçamento e ao segundo maior contingente de força de trabalho setorial federal; além de ser a mais complexa, por que tem uma dimensão de provisão de serviços (inexistente na Previdência Social).
A escala dramática da crise e o cataclismo econômico convertem-na em crise do Estado, crise total. Daí decorrem consequências políticas cruciais. A mais importante é que o ambiente institucional muda radicalmente, o que tem implicações decisivas para lideranças populistas e iliberais. Neste novo ambiente, não há espaço para a política adversarial e "campanhas perpétuas": aumenta brutalmente a demanda por lideranças que tenham capital moral e que promovam coordenação e consenso.
Marcus André Melo
Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

domingo, 22 de março de 2020

Zeina Latif Cuidado com as fórmulas prontas- OESP

As batalhas na defesa contra o Covid-19 foram perdidas e o rápido aumento do número de pessoas infectadas leva a um cenário de amplo confinamento social.
Na decisão de confinamento, os condutores de políticas públicas enfrentam um conhecido e difícil dilema: quanto maior ele for, menor o número de vítimas fatais, porém maior a contração da economia e do emprego. No Brasil, como a economia brasileira está ainda muito frágil, o custo associado será certamente elevado. 
No estágio atual da epidemia, certamente a dúvida não é sobre promover ou não o isolamento, mas sim sua abrangência e duração. Não é uma avaliação simples, inclusive porque há uma dificuldade adicional. É preciso incluir nesse cálculo o drama social e suas consequências, que poderão, ao final, agravar o custo econômico da decisão.
Em um país com tantos desafios sociais, situações extremas de sofrimento e desespero das camadas mais populares terão reflexo na segurança das cidades – implicando mais custos para preservar a ordem -, prejudicando o abastecimento de alimentos e bens essenciais. Importante mencionar que os varejistas de pequeno porte trabalham com estoques baixos, o que poderá comprometer o abastecimento dessa população - fora o risco de remarcações abusivas de preços. Há relatos de falta de mercadorias em algumas regiões. Nesse cenário, o impacto na economia será maior do que o esperado pelo gestor público na sua tomada de decisão.
As fórmulas de países mais ricos para lidar com a epidemia precisam, portanto, ser adaptadas à realidade brasileira, principalmente na periferia dos centros urbanos.
Essa reflexão é particularmente pertinente na decisão de fechar escolas públicas de ensino fundamental de forma indiscriminada, abrangendo a todos, como realizado nos demais países afetados pela pandemia. Uma medida tomada diante do desastre iminente, mas com efeitos colaterais perversos em um país com parcela importante da população em situação vulnerável.
Para as camadas mais populares, onde a fertilidade das mulheres é mais elevada, é particularmente dramático as crianças ficarem em casa por período que poderá ser prolongado.
O impacto do fechamento de escolas tem sido grande. Interessante citar relatos de líderes comunitários com quem tive a oportunidade de conversar nestes últimos dias: “As famílias têm muita dificuldade em fazer isolamento, por questões estruturais: as casas são pequenas e sem ventilação, e as famílias numerosas.” “Muitas crianças ficam nas ruas.”
A elevada densidade demográfica em muitas comunidades e a falta de saneamento é combinação perigosa.
As escolas poderiam ser preparadas para cuidar das crianças, sendo um local mais seguro do que os próprios lares, muitos insalubres, e certamente, as ruas. Não é uma tarefa tão fácil, inclusive pelo treinamento dos funcionários e do corpo docente, mas possivelmente mais efetiva para conter a epidemia nas comunidades. As crianças, se bem cuidadas nas escolas, talvez sejam potencialmente menos transmissoras do vírus.
Não menos importante, as crianças ficariam menos vulneráveis à insegurança alimentar decorrente da queda brutal de renda de chefes de família, muitos em ocupações informais. Além disso, o maior estresse familiar poderá alimentar a violência doméstica contra crianças e mulheres - preocupação de líderes comunitários.
As comunidades nos centros urbanos são particularmente vulneráveis. Políticas focalizadas são urgentes para evitar situações extremas nesses grupos. Ocorre que a implementação de políticas de transferência de renda para aqueles que não estão no bolsa-família é difícil e leva tempo. Até lá - se é que essas políticas, se conduzidas, serão suficientes para a subsistência das famílias - a alimentação das crianças estará ameaçada. Crise social contratada.
Talvez seja necessário introduzir escolas em tempo integral para o ensino fundamental de regiões mais carentes. Garantir a continuidade das aulas seria algo importante, mas secundário neste momento. O objetivo é cuidar da saúde da comunidade e da alimentação das nossas crianças mais carentes.
O confinamento poderá ser prolongado. Convém repensar o papel das escolas públicas.
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    Testar, testar, testar - Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo

    Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo
    22 de março de 2020 | 05h00

    Testar, testar e testar é a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para os países em que a crise do novo coronavírus está no inicio. E foi testando que China, Hong Kong e Cingapura controlaram suas epidemias. No Brasil o governo insiste que somente vai testar os casos graves. Vou tentar explicar porque os cientistas acreditam que testar é essencial.
    Na prática médica um teste de laboratório é solicitado para confirmar um possível diagnóstico. E confirmar o diagnóstico é essencial para escolher o tratamento adequado. A lógica do governo federal no caso do coronavírus é a mesma. Como 80% dos casos não precisam tratamento hospitalar, e as pessoas se curam sozinhas em casa, por que gastar dinheiro e fazer um enorme esforço para montar um sistema robusto e ágil de testes? É jogar dinheiro fora. Essa é a lógica de médicos ou infectologistas que não entendem de epidemiologia. Ainda bem que nem todos os médicos que estão lidando com a pandemia pensam assim.
    Organização Mundial de Saúde
    Organização Mundial de Saúde Foto: Salvatore Di Nolfi/EFE
    Os países que tiveram sucesso testaram muito e continuam testando todas pessoas que suspeitam estar com o novo coronavírus. A primeira razão para essa avalanche de teste é identificar rapidamente as pessoas infectadas e garantir que essas, e todos que tiveram contato com elas, fiquem realmente isolados, até a doença passar. Além dessas pessoas, as que tiveram contato com elas também são testadas para descobrir se foram infectadas e, se o resultado for positivo, elas também são isoladas. Na verdade, é exatamente isso que foi feito com toda a comitiva do presidente que voltou infectada. Todos os membros da comitiva parecem estar sem sintomas, mas estão devidamente testados e os positivos e suas famílias isoladas. Se vale para o presidente e sua comitiva, tem de valer para qualquer brasileiro. Uma pessoa está com febre e sintomas de coronavírus: testa. Pessoas que não estão com sintomas mas tiveram contato: teste neles. Tem febre: teste. É assim hoje na China, em Hong Kong e em Cingapura.
    Mas para que testar todo esse mundo de gente? A primeira vantagem é a descrita acima, o isolamento radical dessas pessoas e seus contatos, que se soma ao distanciamento que está sendo imposto à toda a população. Essas pessoas também têm sido monitoradas por telefone e instruídas para pedir ajuda se os sintomas se agravarem.
    A segunda razão é que uma onda de testes positivos prevê, com uma ou duas semanas de antecedência, onde vão aparecer mais casos graves e logo depois as mortes. Se hoje tivéssemos à mão os dados de, por exemplo, Campinas e Ribeirão Preto, e o número de testes positivos em uma dessas regiões começasse a crescer, seria possível prever que o próximo surto seria lá e medidas restritivas mais intensas poderiam ser implementadas nessas cidades.
    Em São Paulo, a quantidade de testes no inicio da crise foi grande, mas isso ocorreu porque pessoas ricas que voltaram do exterior resolveram ser testadas mesmo sem sintomas ou com sintomas leves, desobedecendo o governo federal. E logo apareceram os casos positivos, as internações e agora as mortes. Mas isso não esta ocorrendo no restante de São Paulo ou do País. Será que se estivéssemos testando não descobriríamos que casos positivos estão surgindo no sul da cidade ou em alguma comunidade específica? Sem esses dados, como disse o diretor da OMS, estamos entrando e, uma guerra de olhos vendados. Sem essa testagem massiva só vamos detectar o surto em uma região da cidade ou do País quando as mortes começarem a aparecer.
    A terceira vantagem de testar o maior número de casos possíveis é que saberemos com melhor precisão quantos positivos temos no Brasil (lembre que uma grande parte dos casos apresenta sintomas leves e se cura sozinho), poderemos calcular a fração dos casos graves em função de um número mais confiável do total e também determinar a partir dos casos graves as mortes. Ou seja, o denominador de todas essas contas passa a ser mais confiável. Veja bem, se testamos somente os casos sérios hospitalizados, o nosso número total de casos será baixo, mas grande parte das pessoas testadas vai ser entubada e muitos vão morrer, o que está longe a realidade dessa doença. Novamente, sem muitos testes não teremos dados para saber como o vírus e a doença se comporta em um país tropical como o Brasil.
    Uma quarta vantagem de testar um enorme número de pessoas é que ao longo dos meses seguintes teremos uma proporção enorme de pessoas (mais de 80%) que vão poder dizer: “olha, testei positivo, fiquei em casa e já estou bom, estou livre dessa praga”. E assim as pessoas vão aos poucos perceber que realmente não são só os cientistas que dizem que 80% dos casos são leves. Eles vão perceber isso entre seus amigos. Agora se todos os testados positivos forem internados o pânico será maior.
    Agora a última razão. Se as medidas de distanciamento social que estamos tomando funcionarem como na China, os casos cairão a zero em alguns meses, o que será ótimo, mas somente uma pequena parte da população (os infectados e curados) estará protegida do vírus. Na China essa proporção é menor que 0,01%. Aí, ao diminuir lentamente as medidas de isolamento social, o governo precisará ficar atento, pois os casos podem reaparecer em qualquer lugar, ou porque ainda existem pessoas infectadas ou porque foram trazidos por pessoas que chegam do exterior. Esse é o problema que a China enfrenta hoje. E para garantir que isso não resulte em uma nova epidemia os testes precisam se aumentados ainda mais. É a única maneira de proteger a população até o aparecimento de uma vacina ou um tratamento.
    Parece que aos poucos alguns líderes estão entendendo isso e se distanciando das recomendações do governo federal. Isso é ótimo. Agora montar um sistema robusto de testes é difícil, caro (cada teste custa cerca de R$ 100) e logisticamente complicado, mas se o governo está pedindo sacrifícios enormes da população não devemos esperar dele nada menos que um esforço monumental, sobre-humano, ininterrupto e infatigável para aumentar o número de testes. E nisso nenhuma desculpa é aceitável. Mapas diários de números de testes feitos e número de casos positivos por município ou região do Estado é o que eu gostaria de ver todos os dias. Mão à obras senhor presidente, senhor governador e senhor prefeito. É nessa hora que os líderes serão separados dos demagogos.