Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo
22 de março de 2020 | 05h00
Testar, testar e testar é a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para os países em que a crise do novo coronavírus está no inicio. E foi testando que China, Hong Kong e Cingapura controlaram suas epidemias. No Brasil o governo insiste que somente vai testar os casos graves. Vou tentar explicar porque os cientistas acreditam que testar é essencial.
Na prática médica um teste de laboratório é solicitado para confirmar um possível diagnóstico. E confirmar o diagnóstico é essencial para escolher o tratamento adequado. A lógica do governo federal no caso do coronavírus é a mesma. Como 80% dos casos não precisam tratamento hospitalar, e as pessoas se curam sozinhas em casa, por que gastar dinheiro e fazer um enorme esforço para montar um sistema robusto e ágil de testes? É jogar dinheiro fora. Essa é a lógica de médicos ou infectologistas que não entendem de epidemiologia. Ainda bem que nem todos os médicos que estão lidando com a pandemia pensam assim.
Os países que tiveram sucesso testaram muito e continuam testando todas pessoas que suspeitam estar com o novo coronavírus. A primeira razão para essa avalanche de teste é identificar rapidamente as pessoas infectadas e garantir que essas, e todos que tiveram contato com elas, fiquem realmente isolados, até a doença passar. Além dessas pessoas, as que tiveram contato com elas também são testadas para descobrir se foram infectadas e, se o resultado for positivo, elas também são isoladas. Na verdade, é exatamente isso que foi feito com toda a comitiva do presidente que voltou infectada. Todos os membros da comitiva parecem estar sem sintomas, mas estão devidamente testados e os positivos e suas famílias isoladas. Se vale para o presidente e sua comitiva, tem de valer para qualquer brasileiro. Uma pessoa está com febre e sintomas de coronavírus: testa. Pessoas que não estão com sintomas mas tiveram contato: teste neles. Tem febre: teste. É assim hoje na China, em Hong Kong e em Cingapura.
Mas para que testar todo esse mundo de gente? A primeira vantagem é a descrita acima, o isolamento radical dessas pessoas e seus contatos, que se soma ao distanciamento que está sendo imposto à toda a população. Essas pessoas também têm sido monitoradas por telefone e instruídas para pedir ajuda se os sintomas se agravarem.
A segunda razão é que uma onda de testes positivos prevê, com uma ou duas semanas de antecedência, onde vão aparecer mais casos graves e logo depois as mortes. Se hoje tivéssemos à mão os dados de, por exemplo, Campinas e Ribeirão Preto, e o número de testes positivos em uma dessas regiões começasse a crescer, seria possível prever que o próximo surto seria lá e medidas restritivas mais intensas poderiam ser implementadas nessas cidades.
Em São Paulo, a quantidade de testes no inicio da crise foi grande, mas isso ocorreu porque pessoas ricas que voltaram do exterior resolveram ser testadas mesmo sem sintomas ou com sintomas leves, desobedecendo o governo federal. E logo apareceram os casos positivos, as internações e agora as mortes. Mas isso não esta ocorrendo no restante de São Paulo ou do País. Será que se estivéssemos testando não descobriríamos que casos positivos estão surgindo no sul da cidade ou em alguma comunidade específica? Sem esses dados, como disse o diretor da OMS, estamos entrando e, uma guerra de olhos vendados. Sem essa testagem massiva só vamos detectar o surto em uma região da cidade ou do País quando as mortes começarem a aparecer.
A terceira vantagem de testar o maior número de casos possíveis é que saberemos com melhor precisão quantos positivos temos no Brasil (lembre que uma grande parte dos casos apresenta sintomas leves e se cura sozinho), poderemos calcular a fração dos casos graves em função de um número mais confiável do total e também determinar a partir dos casos graves as mortes. Ou seja, o denominador de todas essas contas passa a ser mais confiável. Veja bem, se testamos somente os casos sérios hospitalizados, o nosso número total de casos será baixo, mas grande parte das pessoas testadas vai ser entubada e muitos vão morrer, o que está longe a realidade dessa doença. Novamente, sem muitos testes não teremos dados para saber como o vírus e a doença se comporta em um país tropical como o Brasil.
Uma quarta vantagem de testar um enorme número de pessoas é que ao longo dos meses seguintes teremos uma proporção enorme de pessoas (mais de 80%) que vão poder dizer: “olha, testei positivo, fiquei em casa e já estou bom, estou livre dessa praga”. E assim as pessoas vão aos poucos perceber que realmente não são só os cientistas que dizem que 80% dos casos são leves. Eles vão perceber isso entre seus amigos. Agora se todos os testados positivos forem internados o pânico será maior.
Agora a última razão. Se as medidas de distanciamento social que estamos tomando funcionarem como na China, os casos cairão a zero em alguns meses, o que será ótimo, mas somente uma pequena parte da população (os infectados e curados) estará protegida do vírus. Na China essa proporção é menor que 0,01%. Aí, ao diminuir lentamente as medidas de isolamento social, o governo precisará ficar atento, pois os casos podem reaparecer em qualquer lugar, ou porque ainda existem pessoas infectadas ou porque foram trazidos por pessoas que chegam do exterior. Esse é o problema que a China enfrenta hoje. E para garantir que isso não resulte em uma nova epidemia os testes precisam se aumentados ainda mais. É a única maneira de proteger a população até o aparecimento de uma vacina ou um tratamento.
Parece que aos poucos alguns líderes estão entendendo isso e se distanciando das recomendações do governo federal. Isso é ótimo. Agora montar um sistema robusto de testes é difícil, caro (cada teste custa cerca de R$ 100) e logisticamente complicado, mas se o governo está pedindo sacrifícios enormes da população não devemos esperar dele nada menos que um esforço monumental, sobre-humano, ininterrupto e infatigável para aumentar o número de testes. E nisso nenhuma desculpa é aceitável. Mapas diários de números de testes feitos e número de casos positivos por município ou região do Estado é o que eu gostaria de ver todos os dias. Mão à obras senhor presidente, senhor governador e senhor prefeito. É nessa hora que os líderes serão separados dos demagogos.
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