domingo, 22 de março de 2020

Samuel Pessôa Estamos em uma economia de guerra, FSP

Todos terão que compartilhar parte da queda da renda

  • 10
Para evitar que a mortalidade com a Covid-19 seja muito elevada, a sociedade decidiu cortar a produção. Ficaremos em casa reduzindo a velocidade de difusão do vírus para não sobrecarregar o sistema de saúde. Não temos a menor ideia de como enfrentar uma crise dessa natureza.
A perda de produto será grande. Suponha uma economia que cresça 2% ao ano. Suponha que nos próximos três meses se trabalhe metade do tempo. Se, nos três trimestres seguintes, a economia voltar ao normal e se, adicionalmente, por meio de horas extras, metade da perda do trimestre for devolvida nos trimestres seguintes, a queda da economia será de 8,5%.
Há várias prioridades. Primeiro, políticas para manter todas as atividades ligadas à produção e distribuição de alimentos, bens de higiene pessoal e energia em pleno funcionamento.
O ministro de Economia, Paulo Guedes, durante anúncio de medidas contra efeitos do coronavírus na atividade
O ministro de Economia, Paulo Guedes, durante anúncio de medidas contra efeitos do coronavírus na atividade - Pedro Ladeira - 18.mar.19/Folhapress
Segundo, medidas clássicas para a manutenção da demanda, principalmente que visem sustentar a renda, que, de fato, cairá muito. A prioridade aqui devem ser as famílias que operam na informalidade, que são as mais desassistidas.
Terceiro, será necessário haver uma série de medidas de sustentação dos mercados. Principalmente dos contratos. Além de prover ampla liquidez para que as empresas consigam rolar capital de giro, manter seus empregados e pagar seus compromissos, haverá necessidade de programas para a manutenção do emprego.
Para alguns setores, como o aeroviário, por exemplo, o setor público poderá ter que garantir parte da demanda.
Os bancos públicos, BNDES, CEF e BB, terão que trabalhar em estreita associação com os bancos privados para prover a liquidez e garantir o capital de giro dos negócios. Adicionalmente, o BNDES terá papel de prover liquidez ao mercado de debêntures.
dívida pública elevar-se-á, e, portanto, parte do custo da parada da atividade produtiva será socializada.
No curto prazo, o choque é fortemente desinflacionário. A taxa Selic deve cair mais.
Em prazos maiores, aparecerá o efeito sobre a produção. A produção irá cair muito por um ou dois trimestres. É natural que a renda gerada se reduza. Ou seja, apesar de as medidas necessárias de sustentação da renda fazerem todo o sentido, também faz sentido que todos os salários, aluguéis e lucros sejam reduzidos de alguma forma. Parte não será reduzida e irá para a dívida pública.
Não sei como implementar esse mecanismo. Mas, se 100% da renda monetária for garantida, na forma de salários, lucros, juros, aluguéis etc., toda a queda de produção será socializada por meio de
aumento da dívida pública.
O governo sinaliza que permitirá que o setor privado reduza a jornada de trabalho e os salários até a metade. A mesma medida deveria ser estendida ao setor público.
O fato de a dinâmica da dívida pública não ser prioritária agora não elimina o fato de termos de distribuir os custos de forma mais justa entre toda a sociedade. Os servidores, principalmente a elite do funcionalismo, encontram-se entre o 1% mais rico de nossa sociedade.
Finalmente, é necessário nos prepararmos para adotar a médio prazo outra estratégia.
Nada garante que a epidemia foi contida na China. É possível que a proporção de pessoas imunizadas seja relativamente baixa e, com a normalização da atividade, a epidemia volte.
Se esse for o caso, a prioridade será elevar a capacidade do sistema de saúde em lidar com essa doença. Mais leitos hospitalares com respiradores e treinamento de pessoal da saúde para lidar com a epidemia.
Até o desenvolvimento de um remédio mais definitivo, teremos que aprender a conviver com o vírus.
Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor

No mundo da epidemia, há surto de ideias impensáveis, FSP

  • 11
Pensar o impensável, essa frase velha de exagero retórico cafona, se tornou um problema muito prático e cotidiano no mundo da pandemia. Fazer o inimaginável talvez seja agora mera prudência.
Trancar cidadãos em casa era coisa possível apenas nos despotismos asiáticos, dizia-se. Imprimir dinheiro e doá-lo a fim de evitar falências e fomes era ideia de esquisitos incompetentes em economia. O próximo passo será discutir uma reviravolta socioeconômica, para o bem ou para o mal, pacífica ou não, consequência da situação de quase guerra que é o combate ao coronavírus.
Cédulas e moedas de dólares
Cédulas e moedas de dólares - Mike Segar - 6.mar.20/Reuters
Faz menos de dois meses, a China confinou em suas casas os cidadãos de Hubei, onde explodiu a doença do corona. A Organização Mundial da Saúde observou que essa medida, “inédita na história da saúde pública”, não era uma de suas recomendações, mas demonstrava o compromisso dos chineses de controlar a epidemia.
A reação no chamado “Ocidente” foi antipática. Tal coisa jamais seria prática ou legalmente possível no mundo democrático, diziam líderes e publicistas do mundo (cada vez menos) livre, dominado por tantos demagogos autoritários.
Tal coisa agora acontece na Itália ou na Espanha, sob controle policial, ou na Califórnia, onde cidades compram drones chineses (voilà!) para vigiar seus cidadãos.
Imprimir dinheiro para ressuscitar uma economia deprimida era um plano da esquerda dita socialista americana ou uma caricatura das ideias de fato controversas de economistas como André Lara Resende, no Brasil.
Agora, o debate está nas páginas do liberal Financial Times, voz do establishment global. Seria um meio de evitar depressão inimaginável —e os riscos decorrentes de convulsão social, embora tal perspectiva não esteja explícita no jornal britânico.
Como assim, imprimir dinheiro? Os governos podem gastar mais fazendo mais dívida, pelo que pagam juros. Embora as taxas de juros estejam baratinhas, as dívidas públicas são tidas como altas (pois foi preciso pagar o custo da grande lambança da finança depois de 2008).
A fim de evitar o horror econômico e social da depressão do corona, seria preciso aumentar a dívida pública americana em 10% do PIB (quase US$ 2 trilhões, mais que o PIB brasileiro). É o cálculo de economistas como Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, do “mainstream” de esquerda, digamos, que parecem agora quase moderados. O governo seria o “comprador de última instância”, pagando salários ou o faturamento perdido de empresas paralisadas pela crise da epidemia.
Tal endividamento extra, porém, seria caro e desnecessário, ao menos no caso de uma depressão, há quem diga. Por que não “imprimir” dinheiro e pagar as contas de modo a evitar falências em massa, a destruição de boas empresas, desemprego e desespero? Ao menos enquanto durar a depressão.
Os bancos centrais de Estados Unidos, Europa e Japão na prática imprimiram dinheiro depois da crise de 2008. Assim financiaram indiretamente seus próprios governos e subsidiaram empresas. O BC americano começou a fazê-lo outra vez, na semana passada.
Inflação? Não haveria, durante recessão tal como a que se prevê. Inflação depois da crise? Não aconteceu depois de 2008, argumentam os defensores da medida.
A ideia de imprimir dinheiro ainda parece a história de um vírus que brotou no mercado de Wuhan, um caso que era apenas estranho, embora ligeiramente inquietante, em janeiro. Mas se tornou uma ideia que começa a escapar da quarentena.
Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Bruno Boghossian Em dias decisivos, teimosia de Bolsonaro se torna mais perigosa, FSP

Até o início da semana, o governo britânico recomendava que os cidadãos mantivessem a rotina. A ideia era permitir que a população desenvolvesse imunidade ao coronavírus e evitar prejuízos graves à economia. O cenário mudou. Na sexta (20), o primeiro-ministro anunciou o fechamento de pubs e a cobertura de até 80% dos salários de quem tiver que parar de trabalhar.
A estação de trens Waterloo, em Londres, na sexta (20) - Joe Newman/Xinhua
Governantes de todo o mundo já foram atropelados pelos fatos, mas alguns deles insistem em ficar vendados no meio da estrada. Nos dias em que a curva de casos no Brasil atingiu a faixa do milhar e as projeções econômicas chegaram à recessão, Jair Bolsonaro optou por uma teimosia cada vez mais perigosa.
O presidente afirmava, há pouco mais de dez dias, que a emergência que se desenhava era "muito mais fantasia". Disfarçou uma mudança de tom quando a explosão da Covid-19 no país se mostrou inevitável, mas terminou a semana chamando a doença de "uma gripezinha".
Bolsonaro falava sobre a possibilidade de ter sido infectado e usou o diminutivo para comparar o vírus à facada da campanha de 2018. Queria demonstrar força, mas deu mais um sinal de desgoverno e crueldade. Para valorizar a própria imagem, mandou um recado de menosprezo sobre uma doença que matou milhares.
O governo conseguiu reforçar seu comportamento inconsequente mesmo diante dos desafios crescentes da crise. Bolsonaro repetiu que a economia não pode parar, mas escalou sua provocação aos governadores em vez de coordenar um planejamento cuidadoso das restrições aplicadas nos estados, como o fechamento do comércio e de estradas.
Para piorar, enquanto o país se preparava para pedir à China o empréstimo de equipamentos para enfrentar o surto, o filho do presidente atacava os governantes do país e mobilizava o Itamaraty para fazer uma comovente defesa de sua honra.
O país atravessa dias decisivos no enfrentamento aos efeitos do coronavírus. De novo, Bolsonaro provou que não está à altura da missão.
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).