Pensar o impensável, essa frase velha de exagero retórico cafona, se tornou um problema muito prático e cotidiano no mundo da pandemia. Fazer o inimaginável talvez seja agora mera prudência.
Trancar cidadãos em casa era coisa possível apenas nos despotismos asiáticos, dizia-se. Imprimir dinheiro e doá-lo a fim de evitar falências e fomes era ideia de esquisitos incompetentes em economia. O próximo passo será discutir uma reviravolta socioeconômica, para o bem ou para o mal, pacífica ou não, consequência da situação de quase guerra que é o combate ao coronavírus.
Faz menos de dois meses, a China confinou em suas casas os cidadãos de Hubei, onde explodiu a doença do corona. A Organização Mundial da Saúde observou que essa medida, “inédita na história da saúde pública”, não era uma de suas recomendações, mas demonstrava o compromisso dos chineses de controlar a epidemia.
A reação no chamado “Ocidente” foi antipática. Tal coisa jamais seria prática ou legalmente possível no mundo democrático, diziam líderes e publicistas do mundo (cada vez menos) livre, dominado por tantos demagogos autoritários.
Tal coisa agora acontece na Itália ou na Espanha, sob controle policial, ou na Califórnia, onde cidades compram drones chineses (voilà!) para vigiar seus cidadãos.
Imprimir dinheiro para ressuscitar uma economia deprimida era um plano da esquerda dita socialista americana ou uma caricatura das ideias de fato controversas de economistas como André Lara Resende, no Brasil.
Agora, o debate está nas páginas do liberal Financial Times, voz do establishment global. Seria um meio de evitar depressão inimaginável —e os riscos decorrentes de convulsão social, embora tal perspectiva não esteja explícita no jornal britânico.
Como assim, imprimir dinheiro? Os governos podem gastar mais fazendo mais dívida, pelo que pagam juros. Embora as taxas de juros estejam baratinhas, as dívidas públicas são tidas como altas (pois foi preciso pagar o custo da grande lambança da finança depois de 2008).
A fim de evitar o horror econômico e social da depressão do corona, seria preciso aumentar a dívida pública americana em 10% do PIB (quase US$ 2 trilhões, mais que o PIB brasileiro). É o cálculo de economistas como Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, do “mainstream” de esquerda, digamos, que parecem agora quase moderados. O governo seria o “comprador de última instância”, pagando salários ou o faturamento perdido de empresas paralisadas pela crise da epidemia.
Tal endividamento extra, porém, seria caro e desnecessário, ao menos no caso de uma depressão, há quem diga. Por que não “imprimir” dinheiro e pagar as contas de modo a evitar falências em massa, a destruição de boas empresas, desemprego e desespero? Ao menos enquanto durar a depressão.
Os bancos centrais de Estados Unidos, Europa e Japão na prática imprimiram dinheiro depois da crise de 2008. Assim financiaram indiretamente seus próprios governos e subsidiaram empresas. O BC americano começou a fazê-lo outra vez, na semana passada.
Inflação? Não haveria, durante recessão tal como a que se prevê. Inflação depois da crise? Não aconteceu depois de 2008, argumentam os defensores da medida.
A ideia de imprimir dinheiro ainda parece a história de um vírus que brotou no mercado de Wuhan, um caso que era apenas estranho, embora ligeiramente inquietante, em janeiro. Mas se tornou uma ideia que começa a escapar da quarentena.
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