quinta-feira, 19 de março de 2020

Março de 2020 e a Arca de Noé Crise , Roberto Dias, FSP


Em junho de 2013, não eram só os 20 centavos. Em março de 2020, não é só o coronavírus. O caldeirão chamado Brasil se põe a ferver, com todos os problemas borbulhando juntos, sem que ninguém esteja perto de controlar o fogo.
A crise atual se desenha muito, muitíssimo mais grave do que a de 2013. Há agora um vírus bem difícil de conter, uma economia doméstica paralisada, um mundo lá fora também derretendo —matéria-prima de sobra para caos social do tamanho do das revoluções.
Bolsonaro durante coletiva para falar sobre coronavírus - Pedro Ladeira/Folhapress
O problema mal começou e baratas já voam em velocidade supersônica. Quem antes batia panela agora bate panela; quem antes não batia panela agora toca apito. Liberais pedem intervenção do Estado; gente que vive da Bolsa pede que a Bolsa feche as portas.
O presidente que falava que o coronavírus era fantasia passou a se fantasiar de máscara (sim, fantasia, porque o uso que faz não tem nada de saudável). As palavras que ele profere já nascem com raquitismo. Seu exército de redes sociais vai perdendo divisões dia a dia. Bolsonaro conclama seguidamente "o povo", mostrando que perdeu mesmo a noção do que ocorre fora do cercadinho do Alvorada.
O governo ontem prometia gerar empregos e hoje corta salários. A economia que deveria crescer mais de 2% passou a ser objeto de contas que começam com o sinal de negativo à frente. A precariedade do mercado informal cobra seu preço: falta caminho para o dinheiro do governo chegar rapidamente às pessoas que não terão o que comer.
Quando o coronavírus entrar para o livro de história das epidemias, nada estará como antes. Muita gente não sobreviverá à doença, como já se vê. Quem continuar por aqui precisará reconstruir a economia sobre novas fundações —vários líderes estarão soterrados embaixo delas. A miséria social terá piorado muito. Se junho de 2013 foi uma chuva fora de época, março de 2020 mais parece o dilúvio da Arca de Noé.
Roberto Dias
Secretário de Redação da Folha.

Eduardo Bolsonaro ‘envergonha brasileiros’ com declaração sobre China, diz Doria, OESP

Bruno Nomura, O Estado de S.Paulo
19 de março de 2020 | 11h04

O governador de São PauloJoão Doria (PSDB), chamou de “lamentável” e “irresponsável” a postagem em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) culpa a China pela pandemia do coronavírus. A afirmação foi feita na quarta-feira, 18, pelo Twitter do deputado. As críticas de Doria foram publicadas na mesma rede social nesta quinta-feira, 19.
João Doria
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB) Foto: Tiago Queiroz/ESTADÃO
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“Além do absurdo de minimizar a pandemia e convocar manifestações, ignorando protocolos mundiais de saúde, colocando em risco milhares de vidas, agora ele envergonha os brasileiros com declaração preconceituosa”, afirmou Doria, reforçando que o país asiático é o principal parceiro comercial do Brasil. Só no ano passado, a China comprou US$ 65,4 bilhões em produtos brasileiros.
As declarações do governador de São Paulo fazem referência à convocação, por parte do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, às manifestações pró-governo realizadas no domingo, 15. O presidente foi alvo de críticas depois de manter contato físico com manifestantes no Palácio do Planalto e chamar a crise provocada pelo avanço do coronavírus de “histeria”.
A afirmação de Eduardo Bolsonaro repercutiu depois que o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, publicou um tuíte repudiando as palavras do deputado e cobrando um pedido de desculpas ao povo chinês. Logo na sequência, o perfil oficial da embaixada chinesa disse que Eduardo, ao voltar dos Estados Unidos, contraiu um “vírus mental” que está “infectando a amizade” entre os povos.
Em nome da Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Rodrigo Maia, publicou na madrugada desta quinta-feira, 19, um pedido de desculpa a Wanming e à China “pelas palavras irrefletidas" de Eduardo Bolsonaro.

Vítimas de coronavírus na Itália enfrentam a morte sem direito a funerais, OESP

Jason Horowitz e Emma Bubola, The New York Times
17 de março de 2020 | 13h00

ROMA - Por volta da meia-noite de quarta-feira, 11, Renzo Carlo Testa, 85 anos, morreu do novo coronavírus em um hospital na cidade italiana de Bergamo, no norte da Itália. Cinco dias depois, seu corpo ainda estava em um caixão e era apenas um entre as dezenas de caixões alinhados aos pés da igreja do cemitério local, que está fechada ao público.
Sua esposa por 50 anos, Franca Stefanelli, gostaria de lhe dar um funeral adequado. Mas os serviços funerários tradicionais tornaram-se ilegais em toda a Itália agora, o que faz parte das restrições nacionais contra aglomerações e saídas que foram adotadas para tentar impedir a propagação do pior surto de coronavírus na Europa. De qualquer forma, ela e os filhos não poderiam comparecer, porque estão doentes e em quarentena.
"É uma coisa estranha", disse Franca, de 70 anos, com dificuldades para explicar o que ela estava sentindo. "Não é raiva. É impotência diante desse vírus. "
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Tenda montada fora de hospital em Brescia, na Itália. País vem sendo castigado pela pandemia do novo coronavírus Foto: Alessandro Grassani/The New York Times
A epidemia de coronavírus que assola a Itália já deixou ruas vazias e lojas fechadas, já que 60 milhões de italianos estão essencialmente em prisão domiciliar. Médicos e enfermeiros exaustos estão trabalhando dia e noite para manter as pessoas vivas. Crianças estão pendurando desenhos de arco-íris em suas janelas e famílias começaram a cantar em suas varandas.
Mas a métrica final de pandemias e pragas são os corpos que ficam para trás. Na Itália, com a população mais velha da Europa, o preço pago está sendo pesado, já que o país tem o maior número de mortes depois da China. Só na segunda-feira, mais de 300 pessoas morreram.
E os corpos estão se acumulando na região norte da Lombardia, especialmente na província de Bergamo. Com 3.760 casos registrados na segunda-feira, um aumento de 344 casos em relação ao dia anterior, segundo as autoridades, a região está no centro do surto.
 

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Os necrotérios do hospital estão superlotados. O prefeito de Bergamo, Giorgio Gori, emitiu um decreto que fechou o cemitério local esta semana pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, contudo ele garantiu que o necrotério ainda aceitaria caixões. Muitos deles foram enviados para a Igreja de Todos os Santos em Bergamo, localizada no cemitério fechado, onde dezenas de caixões de madeira encerados formam uma linha macabra para cremações.
"Infelizmente, não sabemos onde colocá-los", disse Marco Bergamelli, um dos sacerdotes da igreja. Ele disse que, com centenas morrendo a cada dia, e com cada corpo levando mais de uma hora para ser cremado, havia um atraso terrível. "Leva tempo e são muitos mortos."
Uma lei nacional de emergência publicada na semana passada proibiu cerimônias civis e religiosas, incluindo funerais, para impedir a propagação do vírus. As autoridades permitiram que os padres fizessem uma oração nos enterros assistidos por apenas alguns dos enlutados. Em suas breves orações aos familiares, que usavam máscaras, Bergamelli disse que tentou dar consolo e esperança e pediu que as pessoas se tornassem mais próximas, se estivessem autorizadas, daqueles que estavam sozinhos. "Essa tragédia nos lembra de amar a vida", disse ele.
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Área da lavanderia em hospital em Brescia, na Itália. Necrotérios das instituições de saúde estão lotados de corpos de vítimas da doença  Foto: Alessandro Grassani/The New York Times
O aviso de morte de Testa apareceu na sexta-feira em um jornal local, L'Eco di Bergamo. O jornal geralmente tem uma única página para o obituário. Na sexta-feira, havia 10 páginas e o restante foi dedicado ao vírus devastador em Bergamo.
"Para nós, é um trauma, um trauma emocional", disse Alberto Ceresoli, que edita o jornal. “São pessoas que morrem sozinhas e que são enterradas sozinhas. Elas não tiveram alguém segurando sua mão, e os funerais precisam ser breves, com apenas uma rápida oração do padre. Muitos dos parentes próximos estão em quarentena.”
Giorgio Valoti, prefeito de Cene, cidade próxima de Bergamo, morreu na última sexta-feira. Ele tinha 70 anos. Seu filho, Alessandro, disse que 90 pessoas morreram no mesmo dia no principal hospital de Bergamo. O vírus “está massacrando este vale; todas as famílias estão perdendo alguém querido”, disse ele. "Em Bergamo, são tantos corpos se acumulando que já não se sabe o que fazer com eles".
Em Fiobbio, um povoado nos arredores de Bergamo, uma ambulância veio buscar o pai de Luca Carrara, 86 anos, no sábado. No domingo, outra veio buscar a mãe, de 82 anos. Carrara, de 52 anos, não pôde visitá-los no hospital e ficou em casa em quarentena, onde começou a mostrar sintomas do vírus. Na terça-feira, 10, seus pais morreram. Seus corpos são mantidos no necrotério do hospital e aguardam a cremação.
"Sinto muito por eles ainda estarem lá", disse ele. "Ainda mais sozinhos."
Luca di Palma, de 49 anos, disse que seu pai, Vittorio, de 79 anos, morreu na noite de quarta-feira e que a funerária para a qual ele ligou disse que não havia espaço para o corpo. Em vez disso, os trabalhadores entregaram em sua casa um caixão, algumas velas, uma cruz e uma geladeira mortuária para que ele pudesse deixar o pai na sala de estar. Ele disse que ninguém veio prestar homenagem, por medo de contágio, embora seu pai tivesse morrido antes de ter sido confirmado como um caso de coronavírus, e os médicos se recusaram a realizar um teste de cotonete post mortem.
No sábado, di Palma seguiu um carro fúnebre carregando o corpo do pai até um cemitério em Bergamo, onde um zelador os deixou entrar e trancou os portões. Um padre chegou para fazer uma breve oração sobre o carro fúnebre, com o bagageiro levantado. Di Palma disse que seu pai queria ser cremado, mas a espera foi longa. "É doloroso", disse ele.
Em um país onde muitos aprendem na escola sobre o temido Monatti, que, precedido pelo toque de um pequeno sino, buscava cadáveres em carroças durante a praga de Milão do século 17, a acumulação de cadáveres parece uma cena de outra época.
Alessandro Bosi, secretário da Federação Nacional de Casas Funerárias, disse que o vírus também pegou a indústria mortuária de surpresa, tendo que lidar com os mortos sem máscaras ou luvas suficientes. Enquanto as autoridades de saúde dizem que não acreditam que o vírus possa ser transmitido postumamente, Bosi disse que os pulmões de um cadáver frequentemente liberam ar ao serem movidos.
"Temos que considerá-los da mesma maneira que tratamos indivíduos infecciosos e tomar o mesmo cuidado", disse ele.
"Se não formos nós que recolhermos os mortos", acrescentou, "eles terão que chamar o exército". / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA