domingo, 8 de março de 2020

Rubem Alves — Do milho à pipoca: a transformação só acontece pelo fogo, Pensar Contemporâneo


Por Fernando Ferragino
Toda dificuldade traz sempre uma grande lição. Embora a gente procure remédio para as dores do mundo, é preciso coragem pra encarar o fogo (desafio ou dor) que algumas vezes se coloca à nossa frente. Nos momentos de medo, quando a oportunidade de sair do casulo se apresenta, é preciso humildade para admitir que não somos donos da verdade, coragem para libertar-se de velhos hábitos e dar um salto no vazio rumo à transformação… para que possamos nascer de novo para nossa verdadeira natureza… pra quem realmente somos. Conforme Rubem Alves relata no conto abaixo, somente milho duro que passa pelo fogo se transforma em flor branca macia.
“A transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer. Pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa – voltar a ser crianças!”, ensina o filósofo.
Por outro lado, milho que se recusa a sair da casca e estourar (mesmo sob fogo ardente) fica “piruá”, duro e triste, como as pessoas inflexíveis que se recusam a mudar e permanecem iguais a vida inteira, por terem a convicção de que o jeito delas é o melhor jeito de ser. Mais cedo ou mais tarde, todos passam pelo fogo. Cabe, no entanto, a você decidir viver como pipoca ou morrer como piruá. A escolha é sua. Veja o texto de Rubem Alves:
“…a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosas. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão – sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! – e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. “Morre e transforma-te!” – dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas “piruá” é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: “Fiquei piruá!” Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: “Quem preservar a sua vida perde-la-á.” A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira…”
Rubem Alves

sexta-feira, 6 de março de 2020

O Twitter ameaçado, Pedro Doria, OESP

Além de Trump e Bolsonaro, o Twitter é, já há muito tempo, a rede favorita de jornalistas e cientistas políticos. É lá que ocorre boa parte do debate público
05/03/2020 | 21h02
 Por Pedro Doria - O Estado de S. Paulo

Milton Hatoun Quatro bestas e seus idólatras- OESP

Quando os moradores da rua, do bairro e da cidade vão recuperar a liberdade de sonhar?

Milton Hatoum, O Estado de S. Paulo
06 de março de 2020 | 03h00
Nunca houve paz por aqui. Há muito tempo a cidade é barulhenta e violenta, mas neste e em outros bairros havia um pouco de sossego. Falo da década de 1950, quando muitos de vocês nem sequer tinham nascido, e eu, jovem, pedalava até Osasco, e voltava ileso, sem ser xingado pelos motoristas.
Mas hoje tudo mudou. Aos 89 anos, só saio de bicicleta às cinco da manhã: coloco o capacete, pedalo na ciclovia e volto à casinha da Sumidouro antes de amanhecer. 
Às vezes nem amanhece no meu bairro e no Brasil, parece que a madrugada corre sem transição rumo à noite, como se a gente vivesse numa escuridão eterna.
Ou amanhece com uma cena estranha, persistente e vil, e pouco se faz para atenuar o caos, o barulho, a ameaça. Ainda escuto a algaravia de um monstro e seu trio de filhotes, réplicas falsas de três terríveis tigres. Pensando bem, o pai e sua prole de machos formam uma família de bestas grotescas, amarradas ao tronco de uma goiabeira, iluminada pela última lâmpada da rua. Os quatro estão por ali há mais de um ano. 
Nos primeiros dias, os bons samaritanos do bairro jogavam-lhes pedaços de carne ensebada, que eles logo engoliam. 
Foi fácil perceber que essa família animalesca desconhece a arte de farejar e reconhecer a comida, antes de mastigá-la e ingeri-la; desconhece o justo agradecimento às mãos que lhes ofertaram o alimento; desconhecem a honra, a fidelidade, a sabedoria: atributos de cães amestrados, educados sem soberba e brutalidade; são atributos também de vira-latas, tão nobres quando saem do submundo e são acolhidos num lar piedoso. 
Alguma coisa estranha aconteceu na vida dessa besta e de seus três rebentos belicosos. Aos quase 90 anos, uma pessoa já passou por quase tudo na vida. Não poucas vezes me deparei com cães ferozes e perigosos, e deles me defendi com uma coragem altaneira. Em duas dessas agressões gratuitas fui escudado por uma pilha de livros que carregava ao sair de saudosas livrarias: a Mestre Jou e a Duas Cidades. Os livros me salvaram até naqueles embates. 
Mas esses monstros, mesmo acorrentados, apavoram e ameaçam muita gente do bairro. No entanto, muitos os idolatram, dia e noite. E são esses idólatras que agora os alimentam e repetem seus urros horrorosos. É como se todos eles (o ogro, os filhotes e os idólatras) estivessem num palácio fortificado, protegido por gente armada, e nós, pobres humanos brasileiros, numa imensa jaula diante daquele palácio. 
Estranho paradoxo: mesmo acorrentadas, as cavalgaduras sentem-se livres para ameaçar, tripudiar, humilhar, chantagear, rasgar a carne dos pacíficos passeantes. E nós, livres, nos sentimos acuados, sufocados, emparedados. 
Por quanto tempo vamos aturar ou aceitar esse paradoxo? Quando os moradores da rua, do bairro e da cidade vão recuperar a liberdade de dormir e sonhar, sem a perniciosa presença dessas bestas?