domingo, 13 de outubro de 2019

A tutela do Estado, Ruy Castro, FSP

Só resta à cultura se reinventar e voltar a contar consigo mesma

RIO DE JANEIRO
A história é mestra. Para os que não viveram aquele tempo, eis como funcionava a supressão do pensamento na ditadura. Sob as ordens do Planalto, havia o SNI, Serviço Nacional de Informações. Era o grande olho, com milhares de agentes encarregados de “analisar” pessoas, empresas e instituições, visando à segurança do Estado. Mas todos os órgãos públicos também tinham o seu serviço próprio.
Os mais pesados eram os das três armas e, destes, o mais temido era o da Marinha, o Cenimar, palco de torturas e desaparecimentos. A eles se somava o velho Dops (Departamento de Ordem Política e Social), superado desde 1969 pelos ferozes e quase clandestinos Oban (Operação Bandeirantes) e DOI-Codi, subordinados ao ministro do Exército. E só então, no pé da escada, vinha a Censura Federal. Esse apanhado está no livro “Herói Mutilado”, de Laura Mattos, recém-lançado pela Companhia das Letras. 
Era um enorme aparato para impor o pensamento único. Pois nem assim eles conseguiram. Contra tudo isso, entre 1964 e 1985 o Brasil produziu coisas fabulosas em música popular, teatro, cinema, literatura, artes plásticas. O Estado podia tentar impedi-las de circular, mas não que fossem feitas —porque, em boa parte, a produção cultural vivia do mercado, não dos favores oficiais. 
A partir de 1986, no entanto, a cultura se deixou tutelar pelo Estado, através de ministério próprio, agências de fomento, mecenatos estatais e leis de isenção. Menos ou mais, todos os governos seguintes quiseram se aproveitar dessa tutela. Mas nenhum era hostil à cultura, hidrófobo e vingativo como o de Jair Bolsonaro. Ao cortar o dinheiro, como se este fosse dele, ele não deixa fazer, e pronto. É censura e é inconstitucional, mas não sei se poderemos contar sempre com os juízes para corrigir isso.
Resta à cultura se reinventar e voltar a contar consigo mesma. Eu sei, só é fácil de falar. 

Governo ignora alertas e manipula debate sobre pacote de Moro, FSP

Ministro contaminou projeto de combate ao crime com lei mais frouxa para policiais

BRASÍLIA
Sergio Moro disse que vai buscar “denominadores comuns” para aprovar seu pacote de projetos de combate ao crime. O anúncio conciliatório, depois de uma série de choques com a Câmara, foi seguido de um argumento traiçoeiro. O ministro afirmou que as propostas recebem críticas de pessoas que “se dão bem dentro desse sistema”.
O governo aposta na manipulação de uma sociedade polarizada para aplicar suas vontades. Ao insinuar que a resistência serve a corruptos e criminosos, Moro passa o recado de que a lei pode ignorar muita gente que vive o dia a dia da violência.
Na terça (8), Bruna Silva estendeu um uniforme escolar manchado de sangue na mesa do presidente da Câmara. Em junho do ano passado, Marcos Vinícius, de 14 anos, morreu com um tiro nas costas durante uma operação na favela da Maré, no Rio.
O presidente Jair Bolsonaro, acompanhado do ministro Sergio Moro, durante cerimônia de lançamento da campanha de divulgação do pacote Anticrimes
O presidente Jair Bolsonaro, acompanhado do ministro Sergio Moro, durante cerimônia de lançamento da campanha de divulgação do pacote Anticrimes - Pedro Ladeira - 3.out.2019/Folhapress
“Eu mandei meu filho impecável para a escola, e o Estado me devolveu ele assim”, disse a mãe. Ela diz que o disparo partiu da arma de um policial e pediu que os deputados não aprovem a proposta de imunidade para agentes que matam em serviço. “Vai ser muito sangue derramado.”
O projeto traz avanços que podem ajudar na elucidação de crimes, como a ampliação da coleta de DNA de criminosos, e que podem sufocar facções que controlam o tráfico de drogas, como o endurecimento de regimes de segurança máxima.
Moro, no entanto, abraçou uma obsessão de Jair Bolsonaro e contaminou o próprio pacote. Embora o ministro diga que não instituirá uma “licença para matar”, os itens que afrouxam punições nas mortes provocadas por policiais são um risco.
Na última semana, uma nota produzida pela Comissão Arns afirmou que esses tópicos deixam uma “porta aberta para que o agente, mesmo em legítima defesa, se exceda dolosamente”. Para o grupo de defesa dos direitos humanos, essas normas seriam uma ameaça para os cidadãos.
“Estamos diante de um arcabouço legislativo que, ao contrário de proteger a vida, estimula a sua destruição”, diz o texto.
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

No mundo dos sonhos, FSP


SÃO PAULO
É muito bom o livro de Sidarta Ribeiro sobre os sonhos. “O Oráculo da Noite” combina as doses certas de informação científica, “insights” filosófico-antropológicos e a livre especulação que é a marca dos bons textos.
Ribeiro, que é neurocientista e dirige o Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, nos coloca a par das últimas descobertas da ciência sobre o sono e o sonho, campo no qual há bastantes novidades que ainda não tiveram a difusão que merecem.
E, para resumir centenas de páginas em duas frases, sono e sonho têm um impacto muito maior do que o presumido para nossa saúde física e mental. Os sonhos em particular funcionariam como uma realidade paralela onde temos a oportunidade de adestrar nossas emoções, além de simular diferentes soluções para nossos problemas, correndo poucos riscos. Uma boa analogia são as brincadeiras de luta, universais entre filhotes de mamíferos.
O neurocientista Sidarta Ribeiro, professor e diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
O neurocientista Sidarta Ribeiro, professor e diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Jardiel Carvalho - 28.jun.19/Folhapress
A prosa de Ribeiro é cativante, e ele consegue manter a atenção dos leitores quer conte uma história sobre Touro Sentado (o que é relativamente fácil), quer faça uma descrição da anatomia do cérebro (o que é bem mais difícil).
Meu único senão ao livro é que acho que o autor, fã declarado de Freud, exagera um tantinho quando defende que resgatemos a centralidade de que o sonho já desfrutou em sociedades mais antigas. Não me parece, é claro, que interpretar sonhos e discuti-los à mesa (já não fazemos tantas fogueiras como no passado) seja um pecado, mas tampouco me parece ser algo tão fundamental. Eu diria que é mais uma escolha, tanto pessoal como societária.
Os sonhos, afinal, fazem sua mágica em nossas mentes quer nos lembremos deles, quer não, quer os interpretemos, quer os dispamos de qualquer significação especial. Sabemos disso porque boa parte do mundo animal também sonha, mas não consegue discutir seus enredos oníricos com um psicanalista.
 
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".