quarta-feira, 11 de setembro de 2019

O conto do grafeno, FSP

Um descobridor do material citado por Bolsonaro dá singela lição sobre a ciência

O prêmio Nobel Konstantin Novoselov, que recebeu a láurea em 2010 por pesquisas sobre o grafeno - Jardiel Carvalho/Folhapress
Nem mesmo Konstantin Novoselov, um dos descobridores do grafeno, está mais tão interessado no material que lhe rendeu o Prêmio Nobel em Física de 2010. Não porque o feito tenha deixado de ser promissor para novas tecnologias, mas porque a ciência se move por curiosidade e ineditismo.
Eis aí um resumo razoavelmente fiel da entrevista que o pesquisador russo deu a esta Folha. Em 2004, com pouco mais que um bloco de grafite e fita adesiva, mas sem ideia de suas futuras aplicações, ele separou a folha de átomos de carbono que hoje equipa telefones celulares para que não superaqueçam. 
“Os cientistas precisam explicar às pessoas que a ciência não traz benefícios no curto prazo, mas no longo prazo ela é absolutamente vital”, diz Novoselov. Seu achado abriu todo um campo de pesquisa com materiais bidimensionais (a camada de grafeno tem só um átomo de espessura), sobretudo no âmbito da eletrônica.
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O físico, que se mudou para Singapura, estuda hoje as propriedades desses outros materiais e de arranjos em que são sobrepostos observando ângulos diferentes, em busca de efeitos físico-químicos impensados e eventualmente úteis. O grafite da descoberta laureada tornou-se coisa menos importante em sua trajetória.
Num vídeo de 2017, o hoje presidente Jair Bolsonaro (PSL) mostra afloramento de grafite no Vale do Ribeira (SP) e diz que a matéria-prima dos lápis é rica em grafeno. Segundo ele, 1 kg de grafite poderia render US$ 15 mil do material.
O então deputado federal pelo PP tratava do assunto para atacar a demarcação de terras indígenas onde há jazidas minerais, obsessão que levou para o Planalto.
Por outro lado, em seu governo o setor de pesquisa passa por estrangulamento financeiro —isso quando não é atacado pelo presidente, como no caso do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Verdade que a penúria de recursos, fruto do descontrole nos gastos orçamentários em gestões passadas, não atinge só ciência e tecnologia. Mas estas parecem sofrer adicionalmente com o viés anti-intelectual da atual administração.
Assim como nada circula em viadutos que ligam nada a lugar nenhum e ferrovias desprovida de trilhos, sem um entendimento que valorize a inteligência sobre a matéria o grafite não transitará para inimaginadas aplicações de grafeno —e menos ainda de materiais que nem sequer foram inventados.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Paus e pedras, João Pereira Coutinho, FSP

Maioria das pessoas é mais sensata do que a minoria que tenta reeducar massas

Para cada revolução, há uma contrarrevolução. A história moderna, desde 1789, nos ensina isso. Por que motivo haveria de ser diferente agora?
E, no entanto, há boas almas que ainda se espantam. No Financial Times, Janan Ganesh escreve sobre o mais recente show de Dave Chappelle para a Netflix. Intitula-se “Sticks & Stones” e, segundo o colunista, tem classificações diferentes no site Rotten Tomatoes.
Para os críticos profissionais, a média de aprovação é 33%. Para o público em geral, é 99%. À primeira vista, nada de original: a história da arte é pródiga nessas discrepâncias de gosto.
O ponto, porém, é que as diferenças de opinião não expressam apenas diferenças de gosto. A política, aqui, é mais importante do que a estética porque o show de Dave Chappelle é um exemplo extremo de politicamente incorreto em ação. Será por isso que o sucesso popular é tão grande?
Ilustração de Ângelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 10.set.2019.
Ângelo Abu/Folhapress
Assisti ao show. Confirmo. Piadas sobre as vítimas de Michael Jackson, a comunidade LGBT e até os americanos (brancos) viciados em opioides cumprem todos os parâmetros da transgressão.
E o auditório delira. Não porque as piadas são boas (algumas são) mas porque todas elas são explicitamente transgressivas.
Era inevitável. Quando falamos de politicamente correto, não estamos apenas a defender a importância da civilidade no trato social —as boas maneiras de que falavam as nossas avós.
O politicamente correto vai mais longe: pretende vigiar e punir qualquer palavra, expressão ou pensamento que não esteja adequado a uma cartilha progressista previamente estabelecida por um qualquer comitê.
Para sermos rigorosos, o politicamente correto é a antítese da civilidade. Esta emerge da interação livre entre sujeitos morais livres —é, digamos, uma relação horizontal.
O politicamente correto se exerce por pressão vertical: é uma imposição cultural que pretende transformar a realidade pela supressão, ou negação, dessa mesma realidade.
Nesse sentido, concordo com o filósofo Angelo Codevilla, da Universidade de Boston, para quem o politicamente correto, ao se apropriar da noção de “hegemonia cultural” de Gramsci, na verdade atraiçoa a mensagem gramsciana.
Se é preciso conquistar as massas para a causa da revolução, é importante não declarar guerra aos seus sentimentos e pensamentos, defendia Gramsci. A persuasão inteligente —e maquiavélica, no duplo sentido da palavra— era mais importante do que a violência leninista. Gramsci sabia que optar pela revolução aberta teria como resultado a contrarrevolução aberta.
É essa contrarrevolução que observamos nas democracias do Ocidente —em shows de comédia ou na eleição de populistas vários. Até porque os estudos disponíveis, pelo menos para os Estados Unidos, já apontavam no mesmo sentido: a maioria da população deplora o politicamente correto.
Foi o cientista político Yascha Mounk quem me chamou a atenção para um desses estudos, realizado pela organização More in Common. Com o título “Hidden Tribes: A Study of America’s Polarized Landscape” (tribos escondidas: um estudo da paisagem americana polarizada), os números são impressionantes.
Para começar, 80% dos americanos acreditam que o politicamente correto é um problema. Isso é transversal entre brancos (79%), asiáticos (82%), hispânicos (87%), nativos americanos (88%) e negros (75%). Mas não só: se os conservadores devotos hipervalorizam o problema (97%), os liberais tradicionais não lhe são indiferentes (61%).
Por outras palavras: o politicamente correto só não é um problema para uma “tribo” em particular —os ativistas progressistas, ou seja, 8% da população total.
De resto, e tal como apontado por Mounk, não é apenas o politicamente correto que os americanos desprezam. O discurso de ódio também preocupa a maioria (82%). Sim, o exato discurso que o politicamente correto diz combater. Uma contradição?
Não creio. Antes a confirmação de que a maioria é mais sensata do que a minoria iluminada que tenta reeducar as massas com arrogância e hostilidade. As pessoas comuns, quando deixadas em liberdade, tendem a se afastar dos extremos. Pelo contrário: quando as pessoas são acossadas por um dos extremos, elas procuram abrigo e compensação no extremo oposto.
Se o politicamente correto não fosse percebido como um problema real, tenho a certeza que Dave Chappelle jamais teria 99% de aprovação nesse site de tomates podres.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Vera Iaconelli Qual a escola dos mais privilegiados?, FSP

O brasileiro rico não deve ter vergonha do que tem

Duas crianças pequenas chegam à portaria de um prédio de classe média alta em Salvador nos anos 1970.
Um menino branco, morador do prédio, vem acompanhado de seu coleguinha negro para brincar em casa.
O porteiro —negro— pede desculpas, mas a criança negra deverá subir pelo elevador de serviço. Sem se dar conta do descalabro e acostumados com a situação, fazem uma aposta para ver quem chega primeiro no apartamento. 
Detalhe: o convívio de ambos só era possível porque a escola em que estudavam tinha cotas gratuitas para crianças pobres —decisão dos jesuítas que a dirigiam. Esse é o relato de um filósofo que hoje luta contra o racismo.
Nasci em São Paulo e nunca vivi nada parecido com isso em minha infância, pois não tive amigos negros na escola, no clube, na rua.
Se você pegar a linha 4-amarela do metrô em direção ao centro, vai se deparar com o contraste entre a beleza das estações e o entorno da região da Luz.
Artista plástica e escritora, Elisa Bracher
Artista plástica e fundadora do Instituto Acaia, Elisa Bracher - 21.11.2017 - Eduardo Anizelli/Folhapress
Você terá a sensação de que passou por alguma alfândega sem perceber. É a viagem de um país limpo, seguro, com gente saudável e bem vestida em direção a uma cidade decadente, imunda e perigosa. 
Seguindo pela rua Mauá encontrará um antigo hotel abandonado, ocupado há mais de 12 anos por famílias pobres. Se tiver conhecidos lá, poderá entrar e conversar com pessoas que vivem uma vida surreal. 
Na Ocupação Mauá, os cidadãos se organizam, cuidam dos filhos, trabalham, estudam, fazem arte e lutam contra o risco iminente de perderem suas casas, seus bens e de verem a família na rua da noite para o dia.
Quando as reintegrações de posse são feitas, as crianças perdem o acesso à escola que frequentavam, ao tratamento que faziam no posto de saúde, aos amigos que tinham. Os moradores não se vitimizam, eles lutam para ter onde morar.
Há iniciativas que tentam atravessar o muro entre os diferentes países nos quais vivemos. Uma amiga me conta que seus netos estudam no Instituto Acaia, uma escola com período integral, de altíssimo nível educacional no “chantilly” da zona oeste. 
Qualquer família de classe média alta em São Paulo pode imaginar o custo estratosférico de um serviço desses.
No entanto, trata-se de uma instituição cujos alunos são crianças pobres, de maioria negra e parda (como é a população brasileira) inteiramente gratuita, criada pela artista plástica Elisa Bracher, que começou oferecendo uma oficina de artes para crianças socialmente carentes. Como era de se desejar, muitos professores também são negros e pardos. 
Recentemente essa instituição abriu algumas poucas vagas para crianças pagantes, ampliando o espectro de representatividade da população no seu quadro discente.
Não existe situação mais privilegiada do que uma criança receber educação de altíssimo nível fora da bolha branca de São Paulo —seja ela branca ou negra, ambas têm a ganhar. Mas se assumirmos que boa educação deveria ser para todos, então, trata-se de direito.
O mesmo vale para moradia, saúde e segurança. O brasileiro rico não deve ter vergonha do que ele tem, mas de não criar condições para que todos tenham.
Afinal, que fantasia insistente é essa de que se começarmos a pensar nos demais seremos tragados para o terrível mundo dos despossuídos —que passou a atender pelo nome de “vai pra Cuba ou Venezuela”?
Não é o medo de perder direitos, mas de perder privilégios, aquilo que se tem em detrimento do outro, na condição de deixar o outro sem. Trata-se de continuarmos indo sozinhos no elevador social, sem a desculpa de sermos crianças.
Vera Iaconelli
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.