Maioria das pessoas é mais sensata do que a minoria que tenta reeducar massas
Para cada revolução, há uma contrarrevolução. A história moderna, desde 1789, nos ensina isso. Por que motivo haveria de ser diferente agora?
E, no entanto, há boas almas que ainda se espantam. No Financial Times, Janan Ganesh escreve sobre o mais recente show de Dave Chappelle para a Netflix. Intitula-se “Sticks & Stones” e, segundo o colunista, tem classificações diferentes no site Rotten Tomatoes.
Para os críticos profissionais, a média de aprovação é 33%. Para o público em geral, é 99%. À primeira vista, nada de original: a história da arte é pródiga nessas discrepâncias de gosto.
O ponto, porém, é que as diferenças de opinião não expressam apenas diferenças de gosto. A política, aqui, é mais importante do que a estética porque o show de Dave Chappelle é um exemplo extremo de politicamente incorreto em ação. Será por isso que o sucesso popular é tão grande?
Assisti ao show. Confirmo. Piadas sobre as vítimas de Michael Jackson, a comunidade LGBT e até os americanos (brancos) viciados em opioides cumprem todos os parâmetros da transgressão.
E o auditório delira. Não porque as piadas são boas (algumas são) mas porque todas elas são explicitamente transgressivas.
Era inevitável. Quando falamos de politicamente correto, não estamos apenas a defender a importância da civilidade no trato social —as boas maneiras de que falavam as nossas avós.
O politicamente correto vai mais longe: pretende vigiar e punir qualquer palavra, expressão ou pensamento que não esteja adequado a uma cartilha progressista previamente estabelecida por um qualquer comitê.
Para sermos rigorosos, o politicamente correto é a antítese da civilidade. Esta emerge da interação livre entre sujeitos morais livres —é, digamos, uma relação horizontal.
O politicamente correto se exerce por pressão vertical: é uma imposição cultural que pretende transformar a realidade pela supressão, ou negação, dessa mesma realidade.
Nesse sentido, concordo com o filósofo Angelo Codevilla, da Universidade de Boston, para quem o politicamente correto, ao se apropriar da noção de “hegemonia cultural” de Gramsci, na verdade atraiçoa a mensagem gramsciana.
Se é preciso conquistar as massas para a causa da revolução, é importante não declarar guerra aos seus sentimentos e pensamentos, defendia Gramsci. A persuasão inteligente —e maquiavélica, no duplo sentido da palavra— era mais importante do que a violência leninista. Gramsci sabia que optar pela revolução aberta teria como resultado a contrarrevolução aberta.
É essa contrarrevolução que observamos nas democracias do Ocidente —em shows de comédia ou na eleição de populistas vários. Até porque os estudos disponíveis, pelo menos para os Estados Unidos, já apontavam no mesmo sentido: a maioria da população deplora o politicamente correto.
Foi o cientista político Yascha Mounk quem me chamou a atenção para um desses estudos, realizado pela organização More in Common. Com o título “Hidden Tribes: A Study of America’s Polarized Landscape” (tribos escondidas: um estudo da paisagem americana polarizada), os números são impressionantes.
Para começar, 80% dos americanos acreditam que o politicamente correto é um problema. Isso é transversal entre brancos (79%), asiáticos (82%), hispânicos (87%), nativos americanos (88%) e negros (75%). Mas não só: se os conservadores devotos hipervalorizam o problema (97%), os liberais tradicionais não lhe são indiferentes (61%).
Por outras palavras: o politicamente correto só não é um problema para uma “tribo” em particular —os ativistas progressistas, ou seja, 8% da população total.
De resto, e tal como apontado por Mounk, não é apenas o politicamente correto que os americanos desprezam. O discurso de ódio também preocupa a maioria (82%). Sim, o exato discurso que o politicamente correto diz combater. Uma contradição?
Não creio. Antes a confirmação de que a maioria é mais sensata do que a minoria iluminada que tenta reeducar as massas com arrogância e hostilidade. As pessoas comuns, quando deixadas em liberdade, tendem a se afastar dos extremos. Pelo contrário: quando as pessoas são acossadas por um dos extremos, elas procuram abrigo e compensação no extremo oposto.
Se o politicamente correto não fosse percebido como um problema real, tenho a certeza que Dave Chappelle jamais teria 99% de aprovação nesse site de tomates podres.
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