O brasileiro rico não deve ter vergonha do que tem
Duas crianças pequenas chegam à portaria de um prédio de classe média alta em Salvador nos anos 1970.
Um menino branco, morador do prédio, vem acompanhado de seu coleguinha negro para brincar em casa.
O porteiro —negro— pede desculpas, mas a criança negra deverá subir pelo elevador de serviço. Sem se dar conta do descalabro e acostumados com a situação, fazem uma aposta para ver quem chega primeiro no apartamento.
Detalhe: o convívio de ambos só era possível porque a escola em que estudavam tinha cotas gratuitas para crianças pobres —decisão dos jesuítas que a dirigiam. Esse é o relato de um filósofo que hoje luta contra o racismo.
Nasci em São Paulo e nunca vivi nada parecido com isso em minha infância, pois não tive amigos negros na escola, no clube, na rua.
Se você pegar a linha 4-amarela do metrô em direção ao centro, vai se deparar com o contraste entre a beleza das estações e o entorno da região da Luz.
Você terá a sensação de que passou por alguma alfândega sem perceber. É a viagem de um país limpo, seguro, com gente saudável e bem vestida em direção a uma cidade decadente, imunda e perigosa.
Seguindo pela rua Mauá encontrará um antigo hotel abandonado, ocupado há mais de 12 anos por famílias pobres. Se tiver conhecidos lá, poderá entrar e conversar com pessoas que vivem uma vida surreal.
Na Ocupação Mauá, os cidadãos se organizam, cuidam dos filhos, trabalham, estudam, fazem arte e lutam contra o risco iminente de perderem suas casas, seus bens e de verem a família na rua da noite para o dia.
Quando as reintegrações de posse são feitas, as crianças perdem o acesso à escola que frequentavam, ao tratamento que faziam no posto de saúde, aos amigos que tinham. Os moradores não se vitimizam, eles lutam para ter onde morar.
Há iniciativas que tentam atravessar o muro entre os diferentes países nos quais vivemos. Uma amiga me conta que seus netos estudam no Instituto Acaia, uma escola com período integral, de altíssimo nível educacional no “chantilly” da zona oeste.
Qualquer família de classe média alta em São Paulo pode imaginar o custo estratosférico de um serviço desses.
No entanto, trata-se de uma instituição cujos alunos são crianças pobres, de maioria negra e parda (como é a população brasileira) inteiramente gratuita, criada pela artista plástica Elisa Bracher, que começou oferecendo uma oficina de artes para crianças socialmente carentes. Como era de se desejar, muitos professores também são negros e pardos.
Recentemente essa instituição abriu algumas poucas vagas para crianças pagantes, ampliando o espectro de representatividade da população no seu quadro discente.
Não existe situação mais privilegiada do que uma criança receber educação de altíssimo nível fora da bolha branca de São Paulo —seja ela branca ou negra, ambas têm a ganhar. Mas se assumirmos que boa educação deveria ser para todos, então, trata-se de direito.
O mesmo vale para moradia, saúde e segurança. O brasileiro rico não deve ter vergonha do que ele tem, mas de não criar condições para que todos tenham.
Afinal, que fantasia insistente é essa de que se começarmos a pensar nos demais seremos tragados para o terrível mundo dos despossuídos —que passou a atender pelo nome de “vai pra Cuba ou Venezuela”?
Não é o medo de perder direitos, mas de perder privilégios, aquilo que se tem em detrimento do outro, na condição de deixar o outro sem. Trata-se de continuarmos indo sozinhos no elevador social, sem a desculpa de sermos crianças.
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