domingo, 21 de outubro de 2018

Breve tratado dos chatos de eleição, Elio Gaspari, FSP

Conversar sobre política exige um mínimo de intimidade, alguma educação e, acima de tudo, um propósito

Faltando pouco para o segundo turno, está à solta o chato eleitoral. É um personagem que tenta transformar qualquer conversa em discussão política para defender seu candidato. Assim como sempre haverá gente que enfia o dedo no nariz, não há como evitar que ele exista. Pode-se limitar o alcance de sua chateação cortando-se polidamente o assunto. O general Alfredo Malan tinha uma fórmula: “Política e jogo de cartas me dão sono”. (Não era verdade, mas funcionava.)
Há dois tipos de chatos eleitorais.
O primeiro, benigno, é o militante. Ele supõe que sua palavra iluminada pode conseguir um voto para seu candidato. Esse chato pode ser neutralizado com uma simples mudança de assunto. O melhor remédio é deixá-lo falar o tempo que quiser. Interrompê-lo será estimulá-lo.
Ilustração da coluna de Elio Gaspari - Folhapress
O segundo chato eleitoral, maligno, quer vender seu candidato, mas há nele algum tipo de insegurança. Fez sua escolha mas busca apoio, cumplicidade.
Esse é o tipo mais desagradável e perigoso, porque precisa de uma discussão. Afinal, só assim poderá se convencer que fará o certo, pois mais gente decidiu como ele. Quanto mais corda recebe, mas enfático ou radical se torna. Nesse caso o culpado pela chateação será quem lhe deu corda. (Trocar ideias com um eleitor de Bolsonaro tem uma complicação exclusiva, pois o candidato não quer debater as suas.
Se nenhum recurso der certo, pode-se recorrer ao truque do deputado Temperani Pereira. Depois de ouvir uma exposição de um colega ele lhe disse: “Sua opinião me deixa incorrobúvel e imbafefe”.
Depois comentou: “Quero ver ele achar essas palavras no dicionário”. 

MEDO MÚTUO

O pior sinal do tamanho do ódio e do medo que se espalharam pela política pode ser comprovado nas ruas. Não há carros com adesivos dos candidatos.

OLGA BENÁRIO

Chegou ao mercado um lote de uma centena de cartas de Olga Benário, a mulher de Luís Carlos Prestes. Há algumas fechadas, outras lhe eram endereçadas e muitas que teriam sido manuscritas por ela.
Olga foi presa com Prestes em 1936. Meses depois Getúlio Vargas deportou-a para a Alemanha. Grávida, ela teve um pedido de habeas corpus negado pelo Supremo Tribunal Federal. Em 1942, Olga foi mandada para a câmara de gás no campo de Bernburg.

RETROVISOR

Diante do desempenho do empresário Romeu Zema na disputa do pelo governo de Minas fica uma pergunta inútil para quem está assustado com a situação do Rio de Janeiro.
O que aconteceria se o partido Novo tivesse lançado o economista Gustavo Franco e se ele topasse disputar o palácio Guanabara?
O ex-presidente do Banco Central deixou o PSDB e filiou-se ao Novo quando ele era apenas uma ideia.

GENERALÔMETRO

Como os generais voltaram ao noticiário, vale a pena usar um filtro para medir o peso de suas opiniões junto à tropa.
As posições de generais que estão na reserva geralmente valem pouco. Muitas vezes, nada.
Generais da ativa, quando falam, é bom prestar atenção. É difícil, mas deve-se ouvir sobretudo o silêncio dos generais da ativa que não falam.

1968, 1978

Faltou sorte a Jair Bolsonaro na quinta-feira, dia 11, quando ele disse numa entrevista que seu objetivo é trabalhar para criar um “Brasil semelhante àquele que tínhamos 40, 50 anos atrás”.
Há 50 anos, no mesmo dia 11 de outubro, no Superior Tribunal Militar, o general Pery Bevilaqua votou pela concessão de um habeas corpus para o estudante Honestino Guimarães. Ele sustentava que juízes militares não deviam julgar atos políticos de civis e disse o seguinte: “Quando a política entra por uma porta do quartel, a disciplina sai pela outra —tal desvirtuamento da finalidade das Forças Armadas (...) está comprometendo seriamente a disciplina”. 
A anarquia militar prevaleceu em 1968, e o general Pery foi tirado do STM. Honestino desapareceu em 1971. Em 1978, o general lançou o Comitê Brasileiro pela Anistia.

MORO SE EXPLICA

Pode-se fazer tudo pelo juiz Sergio Moro, menos papel de bobo.
Explicando ao Conselho Nacional de Justiça por que divulgou um petisco da colaboração do ex-comissário Antônio Palocci seis dias antes do primeiro turno, ele ofereceu três pérolas.
Numa disse que “o conteúdo do depoimento sequer se revestiu de grande novidade”. Tem toda a razão.
Noutra informou que “caso fosse intenção influenciar nas eleições teria divulgado a gravação o vídeo do depoimento, muito mais contundente do que as declarações escritas e que seria muito mais amplamente aproveitada para divulgação na imprensa televisiva ou na rede mundial de computadores”. Se não havia o propósito, resta saber qual a intenção dessa frase a esta altura do campeonato, mesmo sabendo-se que as malfeitorias do detento Palocci são notórias.
Na terceira, informou: “Não foi, ademais, o Juízo quem inventou o depoimento de Antônio Palocci Filho ou os fatos nele descritos”. Ainda bem.

DUAS JOIAS

Chegaram à livrarias americanas dois grandes livros. Um é “Capitalism in America”, de Alan Greenspan, o famoso ex-presidente do Fed, em parceria com o jornalista Adrian Wooldridge. O outro é “These Truths” (“Essas Verdades”), da professora Jill Lepore, de Harvard.
Ambos contam a história dos Estados Unidos, de Cristóvão Colombo a Donald Trump. Greenspan e Wooldridge produziram uma monumental descrição do que vem a ser a “destruição criadora” do capitalismo americano. Lidam com estatísticas com a clareza dos santos. Uma frase que só Greenspan poderia assinar, vale o livro. Referindo-se a Alexander Hamilton, o formulador das bases da economia americana diz seguinte: “Ele era um gênio nato do calibre de Mozart e Bach”.
“Capitalism in America” é uma cantata à construção (e destruição) do andar de cima. “These Truths”, da professora Lepore, conta a mesma história, olhando para o andar de baixo, com os pobres, os negros, os índios e as mulheres.
Os dois livros têm desfechos semelhantes.
Greenspan e Wooldridge: “Donald Trump é a coisa mais próxima de um populista latino-americano produzida nos Estados Unidos”.
Lepore: “A eleição de Trump trouxe uma onda. Vários comentaristas anunciaram o fim da República. A retórica de Trump foi apocalíptica e absoluta”.
Muita gente do “mercado” deveria ler pelo menos o livro de Greenspan. Ele diz: “No Brasil neofeudal, o governo deu imensos pedaços de terra aos grandes proprietários. Na América capitalista, ele deu terras às pessoas comuns, com a condição de que irrigassem o solo com seu trabalho”.

PISQUE PARA NEIL

Está nos cinemas e nas livrarias “O Primeiro Homem”, com a história do piloto Neil Armstrong, o americano que pisou na Lua em 1969. Grande sujeito, exemplo das virtudes do homem simples. Foi uma celebridade modesta e fria. Pouco antes de seguir viagem, um jornalista perguntou-lhe o que gostaria de levar para a Lua. “Mais combustível”, respondeu.
Quando ele morreu, em 2012 aos 82 anos, sua família pediu: “Quando você sair à noite, vendo a Lua sorrir, pense em Neil Armstrong e mande-lhe uma piscadela”. 
Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Caríssimo general, o senhor é um macaco (como eu, meu filho, minha filha e todos nós), FSP

Coordenador do grupo de educação de Bolsonaro defende que o criacionismo seja ensinado nas escolas

Caríssimo general, o senhor é um macaco.
Não, por favor, não me entenda mal: a frase acima não é um insulto. Eu também sou um macaco. Meu filho e minha filha, as coisas que mais amo neste mundo, idem. Nosso Senhor, quando se fez homem por amor a nós, assumiu um plano corporal que é basicamente o de um grande macaco africano, ainda que bípede. (Digo "Nosso Senhor" sem ironia alguma —sou tão cristão quanto os apoiadores do seu candidato.)
Toco no assunto porque, alguns dias atrás, o senhor andou conversando com nosso concorrente sobre seus planos para a educação pública no país. Aliás, gostei da sua proposta de valorizar o professor e fazer com que os alunos o respeitem em sala de aula (sou filho de professora do ensino fundamental, sabe como é).
Aléssio Ribeiro Souto, coordena o grupo de educação, ciência e tecnologia; na campanha de Bolsonaro
Aléssio Ribeiro Souto, coordena o grupo de educação, ciência e tecnologia; na campanha de Bolsonaro - Reprodução
 
No entanto, foi difícil evitar certo espasmo de vergonha alheia ao ler estas suas declarações: "Escolas orientadas ideologicamente querem mudar a opinião que a criança traz de casa. Cabe citar o criacionismo, o darwinismo, mas não cabe querer dizer que criacionismo não existe. (...) Houve Darwin? Houve. Não é para concordar, tem de saber que existiu."
Bem, diz o Evangelho que Deus faz cair a chuva imparcialmente sobre os justos e os injustos, mas não diz que o homem que recebe as gotas no nariz pode discordar da existência da dita chuva. Essa continua caindo, independentemente dos desejos do homem.
Assim é com Darwin —aliás, com a teoria da evolução, que avançou a passos largos depois do britânico. O DNA em cada uma das suas células dá testemunho de que o senhor é um grande símio, assim como os fósseis, a anatomia, o comportamento humano.
O que me preocupa, general, é a impressão de que vocês têm certos probleminhas com fatos (conforme sugere a sua relutância de chamar o regime ditatorial de 1964 de, ora bolas, ditadura). Mas fiquemos só na seara evolucionista: um professor que disser aos seus alunos que tanto faz como tanto fez se eles se reconhecem como primatas ou acham que o Universo tem 6.000 anos de idade não está respeitando as crenças da garotada e de seus pais. Está apenas mentindo para eles, o que é bem diferente. 
Repare que explicar aos estudantes o porquê de os fatos apoiarem a teoria da evolução está longe de ser doutrinação ateísta. 
A ciência, por definição, tem pouco ou nada a dizer acerca da existência de Deus. Mas estudar as evidências da evolução pode ajudar um bocado a entender como se constrói uma teoria com base no estudo cuidadoso e humilde do mundo ao nosso redor. 
É o tipo de disciplina mental sem a qual não se criam novas tecnologias, por exemplo —aquelas que hoje fazem a riqueza de um país no longo prazo, e não no ciclo curto e comezinho dos mandatos presidenciais. 
General, o senhor e seus companheiros de armas merecem todo o crédito pelo comportamento exemplar que tiveram nos últimos 30 e tantos anos de história brasileira. Acredito firmemente que a imagem do futuro que vocês desejam não é a de um coturno pisoteando um rosto humano para sempre (Orwell, general; se não leu ainda, vale a pena).
Algumas coisas, porém, pisam bem mais fundo que coturnos. Os fatos da natureza, por exemplo (como as mudanças climáticas, aquelas coisas inexistentes que ameaçam tragar as praias de Angra onde seu candidato gosta de pescar em condições duvidosas). Se eu fosse o senhor, não arriscaria levar uma botinada deles. 
Reinaldo José Lopes
Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

O povo contra a democracia,Hélio Schwartsman. FSP

Para autor, tendências ajudam a explicar cisão entre vontade popular e preservação de direitos

Povo e democracia podem opor-se um ao outro? Por mais paradoxal que pareça —“democracia” significa “governo do povo”—, podem. Essa ao menos é a tese do cientista político Yascha Mounk (Harvard), desenvolvida nas páginas de “The People vs. Democracy”.
Lançado pouco depois do best-seller “Como as Democracias Morrem”, dos colegas harvardianos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, o livro de Mounk também procura explicações para a onda de sobressaltos que a democracia vem experimentando globalmente. Embora “The People vs. Democracy” tenha feito aqui no Brasil menos barulho do que “Como as Democracias Morrem”, seus insights não são menos valiosos.
Para Mounk, fica mais fácil compreender fenômenos populistas como Trump e Erdogan (aos quais poderíamos acrescentar Bolsonaro), se deixarmos de pensar a democracia como a união indivisível da soberania popular com a preservação de um núcleo de direitos fundamentais.
Yascha Mounk, autor de 'The People vs. Democracy'
Yascha Mounk, autor de 'The People vs. Democracy' - Leonardo Cendamo/Leemage/AFP
Temos, afinal, assistido a uma proliferação de democracias iliberais, que são governos autoritários e que vão contra os direitos de minorias, chancelados pelo voto popular. O contraponto disso é o liberalismo não democrático, presente em estruturas como a União Europeia, que asseguram um núcleo de direitos cada vez mais robusto, mas que são cada vez mais percebidas como insensíveis à vontade dos eleitores.
Para Mounk, uma série de tendências recentes, como o crescimento das mídias sociais, a ressurgência de nacionalismos e a percepção de que o futuro econômico das próximas gerações não será tão promissor, ajuda a explicar a cisão entre vontade popular e preservação de direitos.
Tentar resgatar a boa e velha democracia liberal, diz Mounk, é um desafio, mas não chega a ser impossível. E aqui não existem medidas mágicas. É preciso dar às pessoas propósitos comuns em torno dos quais possam unir-se e oferecer melhores perspectivas para todos, não apenas para grupos específicos.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".