domingo, 21 de outubro de 2012

'O governo não gosta que o setor privado ganhe dinheiro'


RAQUEL LANDIM - O Estado de S.Paulo
Um dos economistas mais respeitados do País, Affonso Celso Pastore tem coragem de dizer em público o que muitos comentam reservadamente. "Este governo, no fundo, não pode ver o setor privado ganhar (dinheiro)", disse. "Ideologicamente, lembra muito o Brizola", referindo-se a Leonel Brizola, fundador do PDT e uma liderança de esquerda, morto em 2004, considerado herdeiro político de Getúlio Vargas.
Na sua opinião, ao limitar a taxa de retorno das empresas nas concessões de projetos de infraestrutura, a administração da presidente Dilma Rousseff atrai apenas "empresários de segunda categoria" e prejudica a conclusão dos projetos. Ele atribui o crescimento de 1,6% previsto para a economia este ano à falta de investimentos.
Para Affonso Celso Pastore, que comandou o Banco Central entre setembro de 1983 e março de 1985, no último governo militar, o tripé econômico hoje "só tem duas pernas", que são a meta de inflação e o superávit primário, porque o câmbio deixou de ser flutuante e se tornou fixo.
"Não é impossível manter a inflação em 5,5% a 6% com câmbio fixo, mas tem de ter controle de capitais, o que encarece os custos de financiamento das empresas", diz o ex-presidente do Banco Central.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O tripé econômico se mantém no governo Dilma?
O governo nega, mas, do meu ponto de vista, estamos num regime de câmbio fixo. Não sei por quanto tempo. Não é eterno, mas a minha impressão é de que vamos ficar por um extenso período. O custo operacional do câmbio fixo hoje é pequeno. Contrariamente ao discurso oficial, não estamos tendo um forte ingresso de capitais. Pelo contrário. Temos um fluxo cambial negativo na balança comercial. A balança é positiva fisicamente, mas negativa financeiramente, com os exportadores antecipando menos câmbio. Além disso, os investimentos em carteira - renda fixa e variável - caíram uma enormidade. Eram de US$ 70 bilhões por ano e hoje estão perto de US$ 10 bilhões. Na renda fixa, a queda é derivada dos controles de capitais implementados pelo governo. A transição para esse regime de câmbio fixo não aconteceu do dia para noite, mas foi preparada tijolo por tijolo. Na renda variável, os investidores reduziram suas aplicações em ações no mundo todo por conta do risco. No Brasil, as ações sofreram ainda mais, porque estamos tratando a bolsa como mulher de malandro. Foram diversas agressões contra Petrobrás, Vale, companhias elétricas e bancos. Além disso, o câmbio se tornou instrumento de política econômica para promover a competitividade da indústria. Neste caso, até posso entender a conduta. A indústria é muito aberta e sofre com a competição da importação.
O câmbio a R$ 2 é suficiente para ajudar a indústria?
O governo utilizou o câmbio no limite que é possível. O câmbio saiu de R$ 1,60 para R$ 2, o que gerou um pouco de competitividade para a indústria. Mas, se depreciar mais, vai bater de frente com a inflação. Há quem diga que o câmbio ideal para o Brasil é R$ 2,40. Todo empresário que visita o Ministério do Desenvolvimento volta com esse número e me pergunta se é isso mesmo. Uma depreciação para R$ 2,40 elevaria a inflação em, no mínimo, mais 0,5 ponto porcentual ao longo de 2013. A pesquisa Focus hoje já projeta para 2013 uma inflação perto de 5,5%. Com essa depreciação, chegaria a 6%. Se o Banco Central tiver juízo, vai lutar contra tentativas de mais depreciação. O câmbio hoje é fixo, portanto, o tripé só tem duas pernas e vamos ter de fazê-lo ficar em pé. Não é impossível manter a inflação com câmbio fixo, mas tem de ter controle de capitais. Não estou falando de uma inflação na meta de 4,5%, mas entre 5,5% e 6%.
O senhor está confortável com o câmbio fixo?
Não gosto de câmbio fixo. É um regime inferior. Mas não é incompatível com manter a inflação nesse nível mais alto. Se o governo tiver de subir os juros, vai pagar um custo brutal de controle de capitais para manter esse câmbio. Não estou confortável com o câmbio fixo, mas não destruiu o regime de metas. O economista Robert Mundell (Prêmio Nobel de 1999, autor de um dos primeiros planos de uma moeda comum)enunciou a trindade impossível: câmbio fixo, controle monetário e plena mobilidade capitais. O Brasil optou por não ter liberdade de capitais. Quando o Gustavo Franco era presidente do Banco Central, o controle de capitais era endógeno. Ele elevava os controles quando entrava muito capital e reduzia quando saía. Hoje estamos vivendo uma fase parecida com quando ele reduzia os controles de capital. Mas isso não é eterno. Uma hora o capital começa a entrar de novo e o Brasil vai ter de adotar mais controles, o que vai elevar os custos de capitalização das empresas e produzir efeitos negativos sobre o crescimento. A economia perde uma fonte de financiamento. Se o Brasil não fosse dependente de financiamento externo, podia passar batido por isso, mas não é.
Há críticos que dizem que o Banco Central tem hoje um triplo mandato - crescimento, câmbio e inflação. Qual é a sua opinião?
O Banco Central tem um mandato triplo, mas opera um instrumento só. O governo dispõe de três instrumentos - política fiscal, monetária e câmbio, que não são independentes entre si. Se o câmbio deprecia, a inflação avança e tem de subir os juros. Se a política fiscal se expande, tem mais inflação e tem de subir os juros. O Banco Central opera um desses instrumentos. O governo terceiriza à autoridade monetária a tarefa de manter o câmbio acima de R$ 2. O Banco Central está fazendo isso de forma competente, mas a tarefa não é dele. Se você perguntar ao BC, vão dizer que estou mentindo e que o câmbio é flutuante. O problema é que o câmbio não pode variar, o juro não pode variar e o crescimento tem de ser de 4%. Desculpe, mas tem um filme do Jack Nicholson que diz: "Something's gotta give" (Alguém tem de ceder, na versão em português). Não tem chance de esse negócio funcionar.
Será necessário elevar os juros no ano que vem?
O plano de voo do governo foi trazer o juro para 7,25% e deixar por um longo período. Seis meses, um ano, um ano e meio? Ninguém sabe. A inflação será mais alta em 2013, mas não ultrapassará o teto da meta, que é 6,5%. Na minha visão, o Banco Central não busca a meta de 4,5% de inflação. É claro que oficialmente sim. As declarações do presidente do BC (Alexandre Tombini) têm sido de que a convergência não é linear, mas chega. Em razão da crise ou da visão dos técnicos, o Banco Central hoje tolera mais desvios de inflação. O mundo não vai acabar, mas as inflações ficam persistentemente acima da meta. Se você conversar com investidores, eles vão te dizer que o Banco Central tem duas metas: a formal, que é 4,5%, e a de fato, que é 5% e pouco. É possível que, com esse tipo de tolerância à inflação, a taxa de juros não suba no ano que vem.
Está valendo a pena aceitar mais inflação?
Há um argumento de que isso está sendo feito em troca de um crescimento maior. Isso nos remete a outra discussão. Por que o crescimento é baixo? No começo deste ano, o governo repetia o mantra de que ia manter uma política fiscal apertada para dar espaço para o Banco Central baixar os juros, porque isso libertaria o espírito animal dos empresários. O coitado do espírito animal continua acorrentado e o investimento caiu. O que subiu foi o consumo. Era ingênua a noção de que baixar a taxa de juro real (descontada a inflação) era condição suficiente e necessária para fazer os empresários investirem. A projeção do Banco Central é que o Brasil vai crescer 1,6% este ano. É uma das piores performances da América Latina, só perdemos para o Paraguai. Reagimos de maneira diferente dos outros países e nosso crescimento foi menor. O que ocorreu é uma coisa que o governo não gosta de ouvir. Optaram pelo modelo de aumento do consumo e esqueceram do investimento. O governo não tem dinheiro para fazer investimentos em infraestrutura. É necessário convocar o setor privado, mas não pode ter vergonha da privatização. Não dá para limitar a taxa de retorno na hora de fazer uma estrada a 6%, porque não paga o risco. Por ideologia, é extremamente difícil para este governo ir fundo nesse modelo, que é mais neoliberal. Há países com inflação menor que a nossa, crescendo mais do que nós, porque não ficaram enredados nessa vedação ideológica. Este governo, no fundo, não pode ver o setor privado ganhar (dinheiro) e quer que o Estado seja grande. O governo chama o setor privado, mas limita a taxa de retorno. Se o retorno não cobre o risco, só vai entrar empresário de segunda categoria. Ideologicamente, esse governo lembra muito o Brizola.
A geração da década de 90 não sabe o que é hiperinflação. Ainda existe risco de descontrole inflacionário?
Não vejo risco. Para construir uma hiperinflação, tivemos de fazer erros muito maiores do que esses que estão sendo cometidos agora. Somos muito críticos em relação ao governo hoje, mas também tenho de ser crítico em relação ao governo do qual fiz parte, e que tinha inflação muito mais alta. As pessoas que estavam no governo, inclusive eu, não sabiam como tudo funcionava e tiveram de aprender depois. Também não fomos nós que fizemos a inflação alta, mas erros sucessivos ao longo dos anos. Uma hiperinflação não é produzida facilmente. Vejo inflações mais altas, mas nada que se assemelhe a isso.

Onda de blecautes coloca segurança do sistema nacional de transmissão em xeque


RENÉE PEREIRA - O Estado de S.Paulo
A sequência de blecautes que atingiu o Brasil nas últimas semanas levantou suspeitas sobre a segurança do sistema nacional de transmissão. Neste ano, já foram 63 cortes. Só entre os dias 15 de setembro e 15 de outubro, foram 14 desligamentos em várias regiões - na média, significa quase um corte a cada dois dias. Em 2011, no mesmo período, foram nove apagões e todos bem menores. Em termos de volume de energia desligada, os blecautes dos últimos 30 dias foram 153% maiores que os de 2011.
As informações, retiradas de relatórios diários do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), coincidem com a evolução dos desligamentos nos últimos anos. No ano passado, foram 97 ocorrências com cortes de eletricidade acima de 100 MW - número 29% superior ao de 2007.
Embora o governo garanta que o sistema nacional tenha alta confiabilidade, especialistas temem que os apagões sejam uma sinalização de falta de manutenção da rede. "Uma parte do sistema é cinquentão e deveria ter passado por um processo de manutenção e substituição. A indicação mais óbvia de que isso não ocorreu são os apagões", diz o professor da Universidade de São Paulo Ildo Sauer.
O diretor-geral do ONS, Hermes Chipp, discorda das suspeitas. "Não existe falta de investimento a ponto de caracterizar o problema (de blecaute). De 2001 para cá, os investimentos foram enormes." Ele explica que, no caso do sistema existente, os investimentos em manutenção e reforço precisam ser feitos de forma gradual, para não impactar a tarifa.
"Você não faz tudo ao mesmo tempo. Primeiro, você investe na rede básica, nas linhas de mais alta tensão, nas interligações inter-regionais, responsáveis pela transferência de energia entre as regiões, e nas linhas de escoamento das bacias das grandes usinas."
As explicações de Chipp, no entanto, não convencem totalmente os especialistas. Como engenheiro, que começou fazendo manutenções no sistema, Carlos Faria, hoje presidente da Associação Nacional dos Consumidores de Energia (Anace), sabe que um transformador não queima da noite para o dia - como ocorreu em alguns cortes recentes. "Você tem de fazer um acompanhamento. O equipamento dá sinais de que precisa ser trocado. Para mim está claro: estamos com problemas em manutenção", afirma.
Na avaliação do diretor executivo da Associação Brasileira das Grandes Empresas de Transmissão de Energia Elétrica (Abrate), Cesar de Barros Pinto, o sistema nacional pode ser considerado bom, mas tem problemas. Ele explica que muitos cortes ocorrem porque a proteção (os chamados relés) não consegue isolar a linha. "Em muitos casos tem havido desligamento em cascata. Pode ser problema no equipamento ou um ajuste inadequado", destacou o executivo.

Mudança no setor torna operação mais complexa

Usinas movidas a biomassa, painéis solares, parques eólicos e hidrelétricas distantes dos grandes centros de consumo elevam o número de ocorrências

21 de outubro de 2012 | 3h 08

RENÉE PEREIRA - O Estado de S.Paulo
As mudanças no perfil do setor elétrico, com a inserção de novas fontes de eletricidade, tornaram a operação do sistema de transmissão mais complexa. Estudo feito pelo Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP) mostra que a entrada de usinas a biomassa, painéis solares, parques eólicos e hidrelétricas distantes dos grandes centros de consumo ajuda a aumentar o número de ocorrências no sistema de transmissão.
No caso das fontes alternativas, a explicação está na quantidade de pequenas unidades que entram e saem do sistema com maior frequência, exigem mais manobras na operação e deixam o sistema mais exposto a falhas.
"No passado, tínhamos grandes hidrelétricas, grandes termoelétricas e grandes linhas de transmissão. Era mais fácil operar o sistema. De tempos pra cá isso mudou", avalia o professor da USP, Ildo Sauer, que acaba de criar na universidade o Centro de Inovação em Qualidade, Confiabilidade e Controlabilidade do Sistema de Energia Elétrica.
Ele conta que a construção das hidrelétricas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, no Norte do País, também vai exigir mais atenção do Operador Nacional do Sistema (ONS). A energia produzida por essas usinas terá de percorrer 2.500 quilômetros (km)de distância até chegar ao Sudeste. Se não houver controle rígido, os desligamentos na linha poderão provocar efeito cascata em todo o sistema, a exemplo do linhão de Itaipu. O diretor-geral do ONS, Hermes Chipp, destaca que, quando essas linhas começarem a funcionar, será necessário fazer "esquemas e dimensionar medidas de proteção, de forma que a perda não se propague".
De acordo com o trabalho da USP, outro fator que tem contribuído para mexer com o sistema elétrico é a mudança na natureza da carga. Equipamentos elétricos com novas tecnologias, e até mesmo as lâmpadas fluorescentes, produzem distorções na corrente e tensão elétrica. "Há uma mudança de paradigma no sistema que exigirá uma organização maior e uma atuação preventiva. Sem isso, os apagões vão continuar ou até mesmo aumentar", avalia o professor.

Política da ambiguidade, por Ivan Marsiglia, no Aliás


Tão logo a polêmica se mostrou "ruim para ambas as partes" - para usar o bordão do candidato derrotado Celso Russomanno -, ninguém quis assumir a iniciativa de tê-la posto em pauta. A discussão sobre materiais didáticos de combate à homofobia, os enviesadamente chamados "kits gays", começou a semana em altos decibéis na boca dos postulantes à Prefeitura de São Paulo José Serra e Fernando Haddad. Depois minguou diante da revelação de que ambos os haviam produzido em suas respectivas gestões à frente do governo do Estado e do Ministério da Educação, até resultar no silêncio obsequioso sobre o tema verificado quinta-feira, durante o primeiro debate televisivo do segundo turno das eleições. 

Na corrida presidencial de 2010, algo semelhante se verificou no Brasil: o tema do aborto, sempre controverso, entrou e saiu de cena assim que marqueteiros detectaram que a troca de acusações nesse terreno mais afugentava do que atraía eleitores. Ao sumiço pragmático, acrescentou-se quase um pacto republicano de não tocar mais no assunto. 

Também nos EUA os direitos das minorias voltaram ao noticiário essa semana, depois que uma corte de apelações de Manhattan pediu que fosse alterada a formulação federal que define o casamento como "união entre um homem e uma mulher". Os juízes de Nova York consideram-na discriminatória. Ao mesmo tempo, e em plena campanha eleitoral americana, o Pew Research Center divulgou pesquisa demonstrando que a imensa comunidade latina no país, vista tradicionalmente como machista, resiste cada vez menos ao casamento gay.


Foi dentro desse cenário que o caderno Aliás conversou com a filósofa americana Judith Butler, professora da Universidade da Califórnia, em Berkeley, autora da comentada Queer Theory, que sustenta que a identidade sexual ou de gênero é resultado de uma construção social e não de papéis biologicamente definidos. Judith falou sobre a intromissão do tema da homofobia na sucessão paulistana, dos limites à liberdade de expressão quando ela se traveste do discurso do ódio e dos avanços e recuos na luta pelos direitos sexuais nos EUA, na Europa e na América Latina. 

Quão inusitado é uma discussão sobre material didático de combate à homofobia entrar na pauta de eleições municipais?
Judith Butler - Depende de que parte do mundo se esteja falando. Vejo isso acontecendo em algumas cidades americanas, na Rússia, na Turquia e em outros lugares. O que levanta a questão sobre a necessidade de um compromisso político que considere efetivamente a homofobia e a transfobia como formas inaceitáveis de discriminação. Opor-se a políticas de combate ou à produção de material didático contra a homofobia significa defender a homofobia. O que me parece um tanto contraditório para qualquer partido político comprometido com a igualdade e a justiça. 

Representantes do movimento LGBT integram ambos os partidos, PT e PSDB, que disputam o 2º turno da eleição em São Paulo. O que esse ocultamento da 'agenda gay' revela sobre a democracia de nossos dias?
Judith Butler - Não conheço em profundidade a situação no Brasil, mas está claro que diversos partidos vivem a contradição de ostentar oficialmente políticas de combate à homofobia, num quadro mais amplo de defesa dos direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, solapá-las na tentativa de manter o apelo a eleitores religiosos ou conservadores. É uma forma de hipocrisia que acaba por minar as políticas antidiscriminatórias, fazendo delas mero jogo de aparências. 

Como superar essa hipocrisia eleitoreira?
Judith Butler - Se há cristãos que enxergam a homossexualidade como pecado ou algo antinatural, há também aqueles que enfatizam o fato de que todos são filhos de Deus, devem ser amados e respeitados. Então, é politicamente importante que os defensores do secularismo fortaleçam as alianças com grupos cristãos não homofóbicos para combater abertamente a estigmatização de minorias sexuais e de gênero.

Uma comunidade religiosa pode pregar contra a homossexualidade entre seus pares em nome da liberdade de expressão? 
Judith Butler - Em minha opinião, uma comunidade religiosa pode ter as visões mais tacanhas sobre as mulheres, os gays, as lésbicas, os bissexuais e transexuais. Mas não pode querer impor suas crenças na forma de políticas que contradigam princípios básicos dos direitos humanos. Acreditar é uma coisa; impor discursos e políticas públicas é outra. Claro que devemos combater esse tipo de crença, apelando inclusive aos valores do amor e do respeito ao próximo na tradição cristã - e reforçando os princípios universais que ditam que toda pessoa, independentemente do gênero ou da orientação sexual, deva ser tratada com dignidade.

Mas a partir de que momento um julgamento moral deixa de ser uma opinião ou uma crença e torna-se crime a ser punido?
Judith Butler - Se uma pessoa emite um julgamento moral contra a homossexualidade, essa pessoa deve ser simplesmente confrontada com argumentos melhores. Mas, se ela pretende instalar sua crença na legislação ou desencadeie uma campanha de ódio e discriminação, entramos em outro território. Se essa propaganda homofóbica contribui para a instalação de um ambiente político em que gays, lésbicas, travestis ou transgêneros sintam-se moralmente depreciados ou fisicamente ameaçados, isso jamais poderá ser considerado "liberdade de expressão". Na maior parte dos países europeus, o discurso antissemita é considerado racismo e contra a lei. E o discurso racista é mais facilmente identificado com a injúria do que o homofóbico. Eis o problema. Nos EUA, a liberdade de expressão tende a ser considerada um direito que se sobrepõe a todos os outros e, por isso mesmo, o último a ser passível de restrição. Então, mulheres, travestis e transexuais podem ser perturbados nas ruas sem que isso seja considerado contra a lei, a não ser que fique explícita a intenção de agredir. E o risco de se tolerar esse tipo de discurso é criar um ambiente público intoxicado. 

A corte de apelações de Manhattan propôs essa semana a alteração do estatuto que define o casamento como união entre um homem e uma mulher por considerar essa formulação discriminatória. Acha que a Suprema Corte vai acatar a proposta?
Judith Butler - A Suprema Corte teria o poder de tomar a decisão de alterar a definição federal de casamento para que essa não estipule o gênero das pessoas que desejem estabelecer contrato de matrimônio. Mas tenho sérias dúvidas de que a atual configuração da corte vá acatar essa modificação. Não porque regras coletivas estariam se sobrepondo a direitos individuais, mas porque há aqui duas ideias de bem social em competição. 

O dado da pesquisa divulgada na quinta-feira de que cresceu a aprovação ao casamento gay por parte dos cidadãos de origem latina nos EUA a surpreendeu?
Judith Butler - Sim, mas não estou certa do que isso signifique realmente. Teríamos que analisar a metodologia usada nas entrevistas para avaliar se está mesmo ocorrendo algo de significativo. Entretanto, faz sentido que um grupo que sofre clara discriminação nos EUA, como os latinos, desenvolvam certa sensibilidade em relação a outros grupos alvo de preconceito. E também é preciso lembrar que há uma significativa população lésbica, gay, bi ou trans entre os latinos. Mesmo o mais conservador deles está sujeito a conviver na família com um primo travesti, uma irmã lésbica ou um filho gay. É algo que faz muita diferença. 

Na era Bush, com a ascensão dos chamados neoconservadores, a Casa Branca pressionou ONGs com trabalhos no campo da sexualidade e dos direitos reprodutivos, incluindo o aborto, cortando-lhes fundos oficiais. Hoje esses mesmos temas parecem não galvanizar atenções na campanha presidencial de Obama e Romney. Por quê? 
Judith Butler - Muitos esperavam de Obama uma atuação mais forte na área dos direitos civis - aqui em um sentido um pouco distinto do que estamos chamando de direitos individuais. Ele até procurou apoiar movimentos antirracismo, pela equivalência salarial para as mulheres ou rejeitando o boicote contra gays nas Forças Armadas. Mas o fato é que várias dessas ONGs atuam de maneira muito próxima dos poderes públicos, a ponto de se tornar difícil distinguir umas dos outros. Algumas organizações são críticas, mas a maior parte depende do governo, então há uma cumplicidade que precisa ser quebrada para essas políticas avançarem.

No início dos anos 1970, em São Francisco, o movimento gay elegeu seu primeiro político, o ativista Harvey Milk, cuja história virou filme. Faltam lideranças que assumam a luta LGBT hoje em dia? 
Judith Butler - De novo, depende de que parte do mundo estamos falando. Em São Petersburgo, esses grupos se mobilizam simplesmente pelo direito de se manifestar em público. Nos EUA, as organizações com mais atuação política estão dedicadas à aprovação do casamento gay. E na África do Sul lésbicas protestam contra os "estupros corretivos". De modo que fica difícil fazer qualquer tipo de generalização. Em geral, a agenda gay consegue se inserir em um retrato maior dependendo do contexto. Às vezes, a única forma de se atuar no mainstream é subscrevendo legendas nacionais mais amplas, como na Holanda e na Alemanha, para depois se detalhar as reivindicações. 

A Constituição brasileira de 1988 é tida como uma Carta essencialmente social, ao passo que a americana dá bastante ênfase aos direitos individuais. Quanto isso influencia na forma como essas questões são percebidas pela sociedade? 
Judith Butler - Tudo depende de como se vê o coletivo. Se os direitos coletivos são descritos como os que dizem respeito às comunidades e valores tradicionais, então se abre a brecha para que aqueles não se estendam a grupos que não compartilhem esses valores tradicionais. Mas, se entendermos que os direitos coletivos devam ser generalizados a todos, uma vez que todos têm direito à representação na sociedade democrática, vamos encontrar um discurso mais afinado: o de que os grupos de gays, lésbicas, trans, etc. não briguem por direitos individuais, mas por igualdade e justiça para todos, independentemente da sexualidade ou do gênero. Aí, é conveniente o olhar universal. Parece claro, como disse, que a forma como a liberdade de expressão é entendida nos EUA é diferente do entendimento que há na Europa e na América do Sul. Mas, se nos EUA ela goza de certa prioridade, isso tampouco significa que não haja debate sobre seus limites, sobre em que momento o free speech se torna o discurso do ódio e da injúria.

Essa semana o Uruguai se tornou o segundo país da América do Sul a descriminalizar o aborto. Vê sinais de mudança na região?
Judith Butler - É uma boa questão... Mas deixe-me incluir também o caso Karen Atala, no Chile, em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos teve de intervir em 2010 para condenar o Estado chileno por haver negado a guarda de suas filhas por causa de sua orientação sexual (assumidamente lésbica, Atala perdera, por esse motivo, a guarda para o ex-marido). Então, há sinais ambíguos. Mas creio que apesar das pressões do populismo, das tradições católicas, das imposições dos mercados sobre a agenda dos direitos, desconfio que vamos continuar a ver inovações radicais na América Latina. 

A sra. definiu sua famosa Queer Theory como uma argumentação contra 'o que a identidade de uma lésbica ou de um gay devam ser'. Não é justamente a afirmação de sua identidade que esses grupos buscam? 
Judith Butler - Apenas quero dizer que, ainda que a afirmação da identidade sexual ou de gênero seja importante, também temos que nos questionar sobre como tais termos são definidos e a partir de que momento se transformam em outros tipos de rótulo. Uma pessoa não quer se libertar da homofobia para se ver aprisionada de novo em outra ideia restrita de identidade. Para mim, a Queer designa uma forma de aliança em que a sexualidade não seja nem prescrita nem policiada - a menos que machuque alguém. 

Em outra ocasião, a sra. escreveu que 'não nos tornamos humanos ainda' e que 'a categoria do humano é um processo de vir a ser'. Diante do mundo hoje, diria que estamos a caminho ou nos afastando desse objetivo?
Judith Butler - Vivemos tempos de risco, e não estou segura de que sequer saibamos o que é ser humano. Parece-me claro que os humanos não são humanos fora de um mundo social mais amplo, e também não o são quando se definem exageradamente em oposição à sua natureza animal. Não podem ser humanos, ainda, se não reconhecem a dependência do meio ambiente em que vivem, por comida, abrigo, sobrevivência. Temos muito a aprender sobre todas essas relações que nos fazem humanos. São elas que ampliam nossos limites, e são essenciais não só para a sobrevivência como para nosso bem-estar.


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