segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O Teorema de Eliseu, por Katia Abreu


Com base, única e exclusivamente, nos Censos do IBGE, o cientista Eliseu Alves, que "modelou" a Embrapa nos anos 1970, criou um singelo teorema, cujo enunciado é uma preposição que reclama urgentemente debates políticos e econômicos.
Aos 81 anos, ainda mais lúcido e sábio, expõe:
"Somente a disseminação intensiva de tecnologia -que 1) promoveu o crescimento da agricultura brasileira; 2) pagou boa parte da divida externa; 3) diversificou e ampliou as exportações; 4) reduziu substancialmente o preço da cesta básica; 5) gerou poupança para financiar o desenvolvimento e os programas de transferência de renda- pode eliminar a pobreza rural, desconcentrar a renda e gerar bem-estar no campo".
Fica por minha conta a enumeração das premissas usadas por Eliseu para poupá-lo de acrescentar fatos históricos à sua demonstração. Bastaria ter apresentado as evidências, que só a percepção dos homens da ciência registra e incorpora ao conhecimento corrente. Seu tema era "O que falaram os Censos do IBGE", mas Eliseu Alves passou surpreendentemente dos números censitários à conclusão precisa.
Lembro-me de que copiei apressadamente a preposição que ele, na sua modéstia, não anunciou como teorema. Seguindo sua forma didática e direta de expor, ilustrada com referências históricas, memoriais pessoais, dados científicos e desconcertantes observações prosaicas, logo percebi que apenas introduzia sua mais recente obstinação de profeta da nossa agropecuária: resgatar a pobreza rural que domina o interior do Brasil.
Atualmente, das 4,4 milhões de propriedades rurais de todos os tamanhos existentes no país, que declararam renda e área no Censo Agropecuário de 2006, apenas 27,3 mil geram renda superior a 200 salários mínimos mensais, enquanto 2,9 milhões obtêm do trabalho na terra menos de dois salários mínimos. Esse valor é insuficiente para manter três adultos, que é a convenção estatística para avaliar o número de pessoas que tiram o sustento de uma propriedade rural no Brasil.
Considerando a produtividade média, pouco mais de 50 mil propriedades bastariam para gerar 100% da renda da agricultura brasileira. Ou seja, 4,3 milhões de propriedades rurais brasileiras não rendem o que deveriam. O número expõe, com precisão, a relação entre concentração de renda e pobreza na nossa agropecuária.
Num país onde as palavras se desgastam com incrível velocidade para servir a paixões e interesses, é muito salutar que a ciência apresente números que nos abram os olhos à realidade.
É o caso do paradoxal êxito do agronegócio convivendo com a extrema pobreza rural, que persiste no Brasil. Os números que calçam as observações de Eliseu Alves desfazem preconceitos, deformações ideológicas, crendices, explorações oportunistas.
Se partirmos de constatações expostas em números no Censo Agropecuário do IBGE, algumas assertivas ajudam a entender o quadro: a tecnologia, cujo uso explica o crescimento da agricultura, também explica, pela ausência, a concentração de renda do agronegócio, assim como a pobreza rural.
Só há uma saída: a modernização da agricultura familiar, com a adoção de tecnologias adequadas. Sem a geração e a difusão de tecnologia, não adianta buscar soluções revolucionárias ou reacionárias, mágicas ou esotéricas.
A terra -insumo indispensável para plantar e criar- já não explica o crescimento da produção agropecuária: a produtividade gerada pela tecnologia inverteu todos os gráficos de relação entre produção e áreas plantadas e de pastos.
Para modernizar o campo, é premente e inadiável a implantação de um novo modelo de assistência técnica rural, conforme já anunciado pela presidente Dilma Rousseff.
A propósito, escrevo este artigo no momento em que estão ocorrendo mudanças na Embrapa, que é o grande centro de referência da nossa agropecuária. Desejamos que a instituição continue mirando o exemplo de Eliseu Alves, que deu o primeiro passo para transformar a excelência da nossa ciência em mais alimentos, empregos, PIB e renda para os brasileiros.
Kátia Abreu
Kátia Abreu é senadora (PSD-TO) e a principal líder da bancada ruralista no Congresso. Formada em psicologia, preside a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil). Escreve aos sábados no caderno 'Mercado'.

Em defesa da transgressão


JOÃO BOSCO RABELLO - O Estado de S.Paulo
Reação interna
Ainda ofuscada pela reação emocional da atual direção partidária, uma das muitas correntes do PT, a Mensagem ao Partido, liderada pelo governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, começa a trabalhar na sucessão interna. Avalia essa corrente que a reeleição de Rui Falcão - alçado ao posto com o aval de José Dirceu - mantém o partido atrelado ao escândalo e refém da condenação política de seu dirigente mais histórico. Mesmo minoritária, move-se para lançar uma pré-candidatura que pode passar pelo do presidente da Câmara, Marco Maia (RS).
Desconforto
Os efeitos do mensalão também terão que ser avaliados pelo PT sob a ótica das alianças em 2014. Aliados atuais e potenciais ainda restringem aos bastidores o desconforto com a perspectiva de preservação pelo partido em seus quadros de personagens condenados pelo STF. Significa dizer que, antes de reformar o Judiciário, o PT precisa apagar a impressão de que reformará seu estatuto que prevê a expulsão de condenados pela Justiça, em instância definitiva.
Prova de fogo
O senador Renan Calheiros (PMDB-AL) terá de resgatar antecipadamente a promissória pelo apoio do governo à sua recondução à presidência do Senado em 2013. Sua missão é garantir a aprovação da medida provisória do setor elétrico, sem modificações. Significa conseguir rejeitar nada menos que 400 emendas já apresentadas. A importância da MP para o governo é medida pela escolha do comando da comissão que a examina antes do plenário: além do próprio Renan como relator, vai presidi-la o líder do PT, Jilmar Tatto.
Fora de tom
Autorizada, ou não, a manifestação do ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, compromete o esforço do governo em conduzir a presença da presidente Dilma Rousseff nas campanhas do PT sem comprometê-la com a defesa do mensalão, tema inevitável nos palanques.
Embora desenhado ao longo de seu curso, o desfecho do julgamento do mensalão flagra o PT despreparado para o "day after" do que se constitui um divisor de águas na história do partido. Ao discurso da negação do fato, que sustenta por razões eleitorais, passou à produção de um vasto rol de impropérios contra o Supremo Tribunal Federal, na vã tentativa de martirizar seus dirigentes condenados.
A negação do fato leva à recusa de sua avaliação, assim como desconsiderar sintomas impede o tratamento da doença. Da reforma política, para introduzir o financiamento público de campanhas, o partido passa à reforma do Judiciário, proposta pelo seu principal braço sindical, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), para "corrigir" um tribunal que se pôs "a serviço dos conservadores, da imprensa neoliberal e da criminalização dos movimentos sociais".
O estímulo do PT a iniciativas do gênero revela o equívoco de considerar que dirigentes possam estar acima dos partidos, cuidado que até ministros do STF tiveram em alguns de seus votos.
O manifesto da CUT é o ápice da insurgência contra uma decisão judicial indiscutível, seja pelo seu caráter amplamente majoritário, seja pela isenção do tribunal que a proferiu, de maioria nomeada pelos governos do partido. A motivação da proposta é uma inacreditável defesa do direito de transgredir ao confessá-la como uma forma de "adequar as regras legais à realidade".
Trocando em miúdos, se a lei pune nossos crimes, mudemos a lei, porque vamos continuar a delinquir. Melhor Ato de Ofício, aos que o cobravam, não poderia haver.

'O câmbio hoje é tão fixo quanto na minha época'


RAQUEL LANDIM - O Estado de S.Paulo
Para economista, tripé da política econômica (superávit
primário, câmbio flutuante e meta de inflação) está 'machucado', mas 'é preciso ter tolerância, porque o mundo mudou'
O economista Gustavo Franco está convicto de que o Brasil abandonou o câmbio flutuante e adotou limites para a variação da moeda - um regime igual ao do seu período no governo. "É tal qual o que praticávamos na minha época. Com a vantagem de que, se der tudo errado, as autoridades não vão se sentir falhando em seus compromissos."
A avaliação de Franco tem peso. Ele é o pai da "âncora cambial", que ajudou a garantir a vitória do Brasil contra a hiperinflação, mas não resistiu a um ataque especulativo agudo no fim do primeiro mandato de Fernando Henrique. Franco comandou o Banco Central (BC) de agosto de 1997 a janeiro de 1999.
O Estado começa a publicar uma série de entrevistas com ex-presidentes do BC sobre a condução da política monetária, que define os juros do País. Comandado por Alexandre Tombini, o BC enfrenta hoje um de seus maiores testes de credibilidade, com os investidores desconfiando da interferência da presidente Dilma Rousseff e do ministro da Fazenda, Guido Mantega, em suas decisões.
Franco afirma que o tripé da política econômica - superávit primário, câmbio flutuante e meta de inflação - está "machucado", mas "é preciso ter tolerância, porque o mundo mudou". Ele diz ainda que os juros altos não são "produto da ganância dos bancos", como a inflação não era culpa da "ganância dos supermercados".
A seguir, trechos da entrevista.
O tripé da política econômica se mantém no governo Dilma?
É preciso nunca esquecer que o tripé reflete coisas mais profundas, que são responsabilidade fiscal, abertura da economia e moeda sã. Ou seja, existem princípios estratégicos da boa política econômica, que podem assumir um aspecto tático conforme a circunstância. É preciso ter um pouco de tolerância. As noções de disciplina monetária e autonomia do BC foram desarrumadas com a crise de 2008. Há uma perplexidade sobre qual é o novo mandato dos BCs. É claro que isso teve repercussão no Brasil. A inflação está bem comportada, após as agressões que o tripé sofreu. Mas o momento é muito perigoso.
Por quê?
É aquela história: você tira um tijolinho da parede e nada acontece, então tira mais um, e quando tirar o décimo e a parede desabar, vai reclamar que houve reação exagerada. Só que você está destruindo a construção faz tempo. Parece que podemos fazer uma política fiscal expansionista, com forte crescimento do BNDES, sem ter consequências. É surpreendente que a inflação não tenha reagido a tantos desafios. A velha senhora apanhou à beça nesses anos de estabilização, mas sabemos que é complicado se ela acordar.
O mandato do BC é controlar a inflação, mas os críticos dizem que agora também tem meta de crescimento e de câmbio. Qual é a sua opinião?
Mudaram bastante os entendimentos canônicos sobre o que é o mandato do BC. Qualquer BC hoje tem cinco mandatos. É fácil atirar pedra e dizer que obedecem a vários mandatos ao mesmo tempo, mas é o que a conjuntura exige. Até certo ponto, ok. Mas fomos um pouco longe demais. A manutenção do tripé como uma doutrina ensejou a busca de brechas, como as medidas macroprudenciais e a emissão de dívida pública para emprestar ao BNDES. Com essas brechas, o tripé fica descaracterizado. As pessoas vão achar que jogaram fora o tripé e não colocaram nada no lugar. Então digam que o tripé agora tem quatro pernas e é uma cadeira. O mercado se acostuma com a ideia. Se não explicar, fica parecendo que são gambiarras.
Dilma quer entrar para a história como a presidente que baixou os juros. Vai conseguir?
É muito bom que tenha esse objetivo. É o problema número um da economia brasileira, como foi a inflação. E reduzir os juros a níveis normais pode ter impacto comparável ao da estabilização. O objetivo está ok, mas não se pode errar no diagnóstico. No combate à inflação, erramos várias vezes. O exemplo mais canhestro foram as chamadas causas inerciais, que davam a sensação de que o congelamento de preços acabaria com a inflação. Tivemos a repetição desse remédio algumas vezes. Por que é tão complexo reduzir os juros? Seguramente não é um ato de vontade. Os juros são um preço de mercado, que refletem sobretudo a decisão das pessoas de comprar títulos públicos. Não são produto da ganância. Lembre-se do tempo em que achavam que a inflação era alta no Brasil por ganância dos supermercados e dos oligopólios. Agora vejo elementos desse tipo de campanha para cima dos bancos. É perda de tempo. Significa uma politização indevida do tema, sem mexer no que é importante.
O diagnóstico do governo Dilma sobre os juros está equivocado?
Reduzir os juros deveria começar pelo aumento do superávit primário. Quanto mais o Tesouro se endivida, mais puxa os juros para cima. Isso é o principal, mas o governo só enxerga a política fiscal como instrumento para aumentar a demanda. Se continuarmos querendo resolver o problema dos juros no braço, vamos repetir o insucesso das políticas de estabilização.
Pode ser necessário elevar os juros no ano que vem?
Claro. Hoje temos uma situação singular, que é uma combinação de pleno emprego com demanda fraca. Se o setor privado acordar, a economia sobreaquece. Por isso, a maior parte dos especialistas projeta que, se o impulso fiscal continuar e o setor privado se animar, a inflação vai beirar o limite de tolerância do sistema de metas em seis meses. Se isso ocorrer, vai ter de subir os juros.
O Brasil tem hoje pouco espaço para choques externos de alta de preços?
A situação de pleno emprego torna o País sensível a qualquer choque de oferta. Mas a inflação não é o nosso principal problema. O governo acerta no entendimento de que é preciso trabalhar para o crescimento. De novo, o problema é o diagnóstico. Já temos todos trabalhando. O que gostaríamos é que o Brasil produzisse mais. Este é um problema de produtividade. E como elevar a produtividade? Com mais escolaridade, mais competição. Seguramente não é o gasto público. O desafio hoje é mudar o mix: aumentar o gasto privado com investimento e reduzir o gasto público corrente. O governo é ruim para fazer investimento. Gasta-se um dinheiro insano para fazer ponte, estrada, estádio de futebol. Custa cinco vezes o preço e dá tudo quanto é problema no TCU (Tribunal de Contas da União).
Em meio à crise global, é justificável um câmbio mais controlado para defender a indústria?
É preciso pragmatismo nesse assunto. Filosoficamente todos somos favoráveis ao câmbio flutuante. Mas existem circunstâncias e circunstâncias. Fui presidente do BC numa época em que a manutenção do câmbio era muito importante para assegurar uma conquista da sociedade, que é a vitória sobre a hiperinflação. A âncora cambial não é uma coisa para se fazer em circunstâncias normais, mas foi fundamental para ganhar essa batalha. Hoje as circunstâncias são outras. Na opinião das autoridades, a manutenção de uma taxa de câmbio muito apreciada é danoso demais para a indústria. Não sei se compartilho, mas o Brasil não é o único país que pratica intervenções no mercado de câmbio. Nada disso é ilegítimo. Do jeito que está sendo feito agora é uma banda cambial - tal qual a que praticávamos na minha época -, porém, não proclamada, com números não especificados, sem ferramentas claras. E com a vantagem de que, se der tudo errado e o câmbio começar a se apreciar, as autoridades não vão se sentir falhando em seus compromissos.
A meta de inflação de 4,5% é alta?
A diferença é muito pequena, especialmente para alguém como eu que estava no BC quando a inflação atingiu 40% ao mês ou 6.000% ao ano (ele foi diretor de assuntos internacionais do BC no fim do governo Itamar). 3,5% ou 4,5% é muito bom. Se manter a meta em 4,5% for o preço para ajustar as finanças públicas e ter juros de primeiro mundo, é justificável. Mas acima de 4,5% seria ruim para a credibilidade do sistema.
Ainda há muita indexação no Brasil?
Não. Esse assunto de indexação é um falso problema. As economias livres de inflação não impõem restrição à indexação. No Brasil, é assim. Só é proibido fazer contrato indexado a um índice de preço com prazo menor que um ano. Hoje o sistema anual funciona. Todos assinam contratos de aluguel. As empresas que fornecem energia em contratos de 30 anos estão satisfeitas com o reajuste anual. A indexação é um seguro que beneficia as duas partes de uma relação contratual. Deixa a indexação, não vamos mexer nisso.
O Plano Real completou 18 anos e quem nasceu na década de 90 nem sabe o que é hiperinflação. Ainda há risco de inflação descontrolada?
É sempre bom guardar a memória da tragédia. Não existem bem essas fronteiras, mas sabemos que, quando os contratos deixam de ter reajuste anual e passam a semestral, a inflação pula de 25% para 40%. Se forem para três meses, vai a 100%. Entre o governo Figueiredo e o fim do governo Sarney, o Brasil passou de 100% ao ano para 83% ao mês. Claro que essas tragédias requerem muitas coisas dando errado e não creio que vamos viver isso de novo. Mas não quer dizer que todos os problemas estejam resolvidos.
Graduado em Ciências Econômicas pela PUC/Rio, é mestre em Economia do Setor Público e Ph.D em Economia pela Universidade de Harvard. Foi presidente do Banco Central de agosto de 1997 a fevereiro de 1999 e diretor de Assuntos Internacionais do BC de outubro de 1993 a agosto de 1997.