segunda-feira, 15 de outubro de 2012

'O câmbio hoje é tão fixo quanto na minha época'


RAQUEL LANDIM - O Estado de S.Paulo
Para economista, tripé da política econômica (superávit
primário, câmbio flutuante e meta de inflação) está 'machucado', mas 'é preciso ter tolerância, porque o mundo mudou'
O economista Gustavo Franco está convicto de que o Brasil abandonou o câmbio flutuante e adotou limites para a variação da moeda - um regime igual ao do seu período no governo. "É tal qual o que praticávamos na minha época. Com a vantagem de que, se der tudo errado, as autoridades não vão se sentir falhando em seus compromissos."
A avaliação de Franco tem peso. Ele é o pai da "âncora cambial", que ajudou a garantir a vitória do Brasil contra a hiperinflação, mas não resistiu a um ataque especulativo agudo no fim do primeiro mandato de Fernando Henrique. Franco comandou o Banco Central (BC) de agosto de 1997 a janeiro de 1999.
O Estado começa a publicar uma série de entrevistas com ex-presidentes do BC sobre a condução da política monetária, que define os juros do País. Comandado por Alexandre Tombini, o BC enfrenta hoje um de seus maiores testes de credibilidade, com os investidores desconfiando da interferência da presidente Dilma Rousseff e do ministro da Fazenda, Guido Mantega, em suas decisões.
Franco afirma que o tripé da política econômica - superávit primário, câmbio flutuante e meta de inflação - está "machucado", mas "é preciso ter tolerância, porque o mundo mudou". Ele diz ainda que os juros altos não são "produto da ganância dos bancos", como a inflação não era culpa da "ganância dos supermercados".
A seguir, trechos da entrevista.
O tripé da política econômica se mantém no governo Dilma?
É preciso nunca esquecer que o tripé reflete coisas mais profundas, que são responsabilidade fiscal, abertura da economia e moeda sã. Ou seja, existem princípios estratégicos da boa política econômica, que podem assumir um aspecto tático conforme a circunstância. É preciso ter um pouco de tolerância. As noções de disciplina monetária e autonomia do BC foram desarrumadas com a crise de 2008. Há uma perplexidade sobre qual é o novo mandato dos BCs. É claro que isso teve repercussão no Brasil. A inflação está bem comportada, após as agressões que o tripé sofreu. Mas o momento é muito perigoso.
Por quê?
É aquela história: você tira um tijolinho da parede e nada acontece, então tira mais um, e quando tirar o décimo e a parede desabar, vai reclamar que houve reação exagerada. Só que você está destruindo a construção faz tempo. Parece que podemos fazer uma política fiscal expansionista, com forte crescimento do BNDES, sem ter consequências. É surpreendente que a inflação não tenha reagido a tantos desafios. A velha senhora apanhou à beça nesses anos de estabilização, mas sabemos que é complicado se ela acordar.
O mandato do BC é controlar a inflação, mas os críticos dizem que agora também tem meta de crescimento e de câmbio. Qual é a sua opinião?
Mudaram bastante os entendimentos canônicos sobre o que é o mandato do BC. Qualquer BC hoje tem cinco mandatos. É fácil atirar pedra e dizer que obedecem a vários mandatos ao mesmo tempo, mas é o que a conjuntura exige. Até certo ponto, ok. Mas fomos um pouco longe demais. A manutenção do tripé como uma doutrina ensejou a busca de brechas, como as medidas macroprudenciais e a emissão de dívida pública para emprestar ao BNDES. Com essas brechas, o tripé fica descaracterizado. As pessoas vão achar que jogaram fora o tripé e não colocaram nada no lugar. Então digam que o tripé agora tem quatro pernas e é uma cadeira. O mercado se acostuma com a ideia. Se não explicar, fica parecendo que são gambiarras.
Dilma quer entrar para a história como a presidente que baixou os juros. Vai conseguir?
É muito bom que tenha esse objetivo. É o problema número um da economia brasileira, como foi a inflação. E reduzir os juros a níveis normais pode ter impacto comparável ao da estabilização. O objetivo está ok, mas não se pode errar no diagnóstico. No combate à inflação, erramos várias vezes. O exemplo mais canhestro foram as chamadas causas inerciais, que davam a sensação de que o congelamento de preços acabaria com a inflação. Tivemos a repetição desse remédio algumas vezes. Por que é tão complexo reduzir os juros? Seguramente não é um ato de vontade. Os juros são um preço de mercado, que refletem sobretudo a decisão das pessoas de comprar títulos públicos. Não são produto da ganância. Lembre-se do tempo em que achavam que a inflação era alta no Brasil por ganância dos supermercados e dos oligopólios. Agora vejo elementos desse tipo de campanha para cima dos bancos. É perda de tempo. Significa uma politização indevida do tema, sem mexer no que é importante.
O diagnóstico do governo Dilma sobre os juros está equivocado?
Reduzir os juros deveria começar pelo aumento do superávit primário. Quanto mais o Tesouro se endivida, mais puxa os juros para cima. Isso é o principal, mas o governo só enxerga a política fiscal como instrumento para aumentar a demanda. Se continuarmos querendo resolver o problema dos juros no braço, vamos repetir o insucesso das políticas de estabilização.
Pode ser necessário elevar os juros no ano que vem?
Claro. Hoje temos uma situação singular, que é uma combinação de pleno emprego com demanda fraca. Se o setor privado acordar, a economia sobreaquece. Por isso, a maior parte dos especialistas projeta que, se o impulso fiscal continuar e o setor privado se animar, a inflação vai beirar o limite de tolerância do sistema de metas em seis meses. Se isso ocorrer, vai ter de subir os juros.
O Brasil tem hoje pouco espaço para choques externos de alta de preços?
A situação de pleno emprego torna o País sensível a qualquer choque de oferta. Mas a inflação não é o nosso principal problema. O governo acerta no entendimento de que é preciso trabalhar para o crescimento. De novo, o problema é o diagnóstico. Já temos todos trabalhando. O que gostaríamos é que o Brasil produzisse mais. Este é um problema de produtividade. E como elevar a produtividade? Com mais escolaridade, mais competição. Seguramente não é o gasto público. O desafio hoje é mudar o mix: aumentar o gasto privado com investimento e reduzir o gasto público corrente. O governo é ruim para fazer investimento. Gasta-se um dinheiro insano para fazer ponte, estrada, estádio de futebol. Custa cinco vezes o preço e dá tudo quanto é problema no TCU (Tribunal de Contas da União).
Em meio à crise global, é justificável um câmbio mais controlado para defender a indústria?
É preciso pragmatismo nesse assunto. Filosoficamente todos somos favoráveis ao câmbio flutuante. Mas existem circunstâncias e circunstâncias. Fui presidente do BC numa época em que a manutenção do câmbio era muito importante para assegurar uma conquista da sociedade, que é a vitória sobre a hiperinflação. A âncora cambial não é uma coisa para se fazer em circunstâncias normais, mas foi fundamental para ganhar essa batalha. Hoje as circunstâncias são outras. Na opinião das autoridades, a manutenção de uma taxa de câmbio muito apreciada é danoso demais para a indústria. Não sei se compartilho, mas o Brasil não é o único país que pratica intervenções no mercado de câmbio. Nada disso é ilegítimo. Do jeito que está sendo feito agora é uma banda cambial - tal qual a que praticávamos na minha época -, porém, não proclamada, com números não especificados, sem ferramentas claras. E com a vantagem de que, se der tudo errado e o câmbio começar a se apreciar, as autoridades não vão se sentir falhando em seus compromissos.
A meta de inflação de 4,5% é alta?
A diferença é muito pequena, especialmente para alguém como eu que estava no BC quando a inflação atingiu 40% ao mês ou 6.000% ao ano (ele foi diretor de assuntos internacionais do BC no fim do governo Itamar). 3,5% ou 4,5% é muito bom. Se manter a meta em 4,5% for o preço para ajustar as finanças públicas e ter juros de primeiro mundo, é justificável. Mas acima de 4,5% seria ruim para a credibilidade do sistema.
Ainda há muita indexação no Brasil?
Não. Esse assunto de indexação é um falso problema. As economias livres de inflação não impõem restrição à indexação. No Brasil, é assim. Só é proibido fazer contrato indexado a um índice de preço com prazo menor que um ano. Hoje o sistema anual funciona. Todos assinam contratos de aluguel. As empresas que fornecem energia em contratos de 30 anos estão satisfeitas com o reajuste anual. A indexação é um seguro que beneficia as duas partes de uma relação contratual. Deixa a indexação, não vamos mexer nisso.
O Plano Real completou 18 anos e quem nasceu na década de 90 nem sabe o que é hiperinflação. Ainda há risco de inflação descontrolada?
É sempre bom guardar a memória da tragédia. Não existem bem essas fronteiras, mas sabemos que, quando os contratos deixam de ter reajuste anual e passam a semestral, a inflação pula de 25% para 40%. Se forem para três meses, vai a 100%. Entre o governo Figueiredo e o fim do governo Sarney, o Brasil passou de 100% ao ano para 83% ao mês. Claro que essas tragédias requerem muitas coisas dando errado e não creio que vamos viver isso de novo. Mas não quer dizer que todos os problemas estejam resolvidos.
Graduado em Ciências Econômicas pela PUC/Rio, é mestre em Economia do Setor Público e Ph.D em Economia pela Universidade de Harvard. Foi presidente do Banco Central de agosto de 1997 a fevereiro de 1999 e diretor de Assuntos Internacionais do BC de outubro de 1993 a agosto de 1997.

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