segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A culpa não é da imprensa


JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo
Desde que o mundo é mundo, dar más notícias não é bom negócio. Não resolve nada cortar a cabeça do mensageiro, mas parece que os destinatários das más notícias têm opinião diversa, principalmente quando são poderosos e a mensagem anuncia algo que ameaça esse poder. E isso se estende às opiniões. Também desde que o mundo é mundo, os cortesãos aprendem a evitar dar palpites negativos sobre os atos dos poderosos de que dependem e é proverbial a recorrência, no folclore de muitas culturas, histórias sobre como reis se disfarçavam e assim saíam às ruas, para tentar ouvir sem intermediários o que falavam seus súditos.
O portador de más notícias e opiniões desagradáveis, em nossos dias, é a imprensa, entendida esta como todos os meios de comunicação. Isso leva a fenômenos interessantes. Na internet é comum ler que a grande imprensa, por estar mancomunada com o governo ou com o rabo preso por interesses escusos, não denuncia isso ou aquilo e distorce os fatos para agradar ao poder. Daí a alguns cliques de mouse, surge um artigo indignado, argumentando que a imprensa vendida e golpista é que está por trás, por exemplo, das condenações dos réus do mensalão. E protestos embravecidos choveram, logo depois das condenações da última terça-feira, culminando com o comentário de um dos advogados do réu, segundo o qual jornalista bom é jornalista morto.
O autor da frase explicou que se tratava de um pilhéria. Certamente foi, embora eu não creia que achassem muita graça nela os incontáveis jornalistas que, desde os primórdios de sua profissão, em todo o mundo, foram e são assassinados, torturados, encarcerados, banidos ou forçados ao silêncio. Toda ditadura, sem exceção, tem como prioridade básica o controle da imprensa, a vigilância rigorosa sobre os fatos e opiniões que podem ser conhecidos pelo público. Não há como aceitar o controle da imprensa pelo Estado e muito menos pelo governo. O resto é conversa e interesse contrariado, pois em lugar nenhum existe democracia sem liberdade de imprensa. É a imprensa, apesar de todos os defeitos comuns à condição humana, que serve de olho e boca da coletividade, não pode ser cerceada sem que as liberdades civis também sejam.
O espirituoso chiste do advogado, que perdeu a causa e - quem sabe se num ato falho - pode numa piada ter exposto o que lhe vai no coração, ainda compõe um panorama curioso. Os condenados e seus aliados parece que não se lembram das barbeiragens que cometeram desde que chegaram ao poder. Quem os meteu nessa camisa de 11 varas não foi a imprensa, foram os atos deles mesmos. Não enxergaram que não estamos mais no país dos golpes, rumores de golpes, advertências à nação e outras práticas enterradas no passado, que as instituições vêm resistindo muito bem aos trancos por que têm passado, que houve muitas mudanças neste mundo.
Num aparente acesso de onipotência, decidiram que sórdidas práticas velhas, como a compra de apoio e de votos, nas mãos deles de alguma forma não apenas se justificavam, mas quase se legitimavam. Montaram um esquema cujos riscos não avaliaram e que talvez desmoronasse inevitavelmente, mesmo que não houvesse sido ruidosamente delatado - havia gente demais envolvida e buracos demais; o vazamento era sempre uma possibilidade. Não me refiro a deslizes éticos ou ações criminosas, mas a barbeiragens motivadas pelo excesso de confiança e pelo desdém pela inteligência alheia. Espertos demais, com as cabeças envoltas pelas nuvens do poder e da glória, erraram nas manobras e não por culpa da imprensa ou de ninguém, mas da própria inépcia, que redundou em ações incompetentes. O que previram, naturalmente, também se revelou errado. Em certo momento do desenrolar da história, pareceu até que o ex-presidente Lula achava que os ministros do Supremo por ele indicados eram ocupantes de cargos em comissão. Nomeados por ele deviam votar com ele, não foi para isso que os nomeou, onde já se viu uma aberração dessas? Por que não é possível demiti-los por quebra de confiança?
Em suma, alçados ao poder, ainda rodeados da aura ética e ideologicamente definida que publicamente os caracterizava, consagrados por uma votação expressiva e imersos numa onda de popularidade incontestável, os novos governantes e estrategistas avaliaram mal a situação, superestimaram a si mesmos e, paralelamente, subestimaram os obstáculos que enfrentariam. Viam-se talvez como praticantes sagazes e habilidosos de uma eficiente Realpolitik e seus planos para a obtenção da sempre lembrada governabilidade. Claro que, como disse Kennedy uma vez, a vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Ninguém entre os atingidos deve desejar ser o pai dessa grande derrota. Mas os pais são eles mesmos. Armaram um esquema cheio de si, acreditaram nos falsos indícios que às vezes entontecem os poderosos e quebraram a cara. Pois, afinal, as condenações são a demonstração de que o esquema armado para governar, em vez de sabido, era burro e que os novos generais engendraram e puseram em ação um plano gravemente equivocado e desastroso.
A culpa não é da imprensa, nem de ninguém, a não ser dos autores e agentes da estratégia. Supondo-se malandros, demonstraram-se otários. Isso certamente é duro de admitir e talvez nunca o seja de todo. Até porque vem aí, depois das sentenças, o processo em que os condenados serão considerados mártires por seus companheiros, serão objeto de apelos internacionais e, enfim, serão glorificados como heróis de sua causa, o que lá venha a ser definido como tal na ocasião. E a imprensa, com toda a certeza, vai ser necessária, para que isso tenha repercussão. A imprensa serve a todos, até mesmo a quem precisa muito de um culpado pelo próprio fiasco.

Meu amigo Zé


FLÁVIO TAVARES É JORNALISTA, ESCRITOR E FOI UM DOS 15 PRESOS POLÍTICOS TROCADOS PELO EMBAIXADOR DOS EUA EM 1969 - O Estado de S.Paulo

Tempos atrás, na prisão da ditadura, o carcereiro o chamava de "Cabeleira" e, hoje, outra vez ele está de cabelos longos, como se voltasse ao passado. Conheço José Dirceu há 43 anos e, nele, admiro e valorizo a coragem pessoal. A amizade começou naquele 6 de setembro de 1969 em que, sob a mira de metralhadoras, nos algemaram na Base Aérea do Galeão. Saíamos da prisão (ele em São Paulo, eu no Rio) e nos levaram à pista para uma foto que percorreu o mundo: os presos políticos trocados pelo embaixador dos Estados Unidos junto ao avião, rumo ao exílio no México. Era proibido falar, mas nos segundos em que mandaram que eu me agachasse, sussurrei: "Vamos mostrar as algemas!"
'Cabeleira'. Ibiúna, 1968: seu passado não está em julgamento nem serve de escudo ao presente - AE
AE
'Cabeleira'. Ibiúna, 1968: seu passado não está em julgamento nem serve de escudo ao presente
E ali está ele na foto, altivo, mãos ao peito, com as algemas que a maioria escondia, mostrando que preso político não é um criminoso envergonhado do que fez, mas um dissidente que desafia quem oprime. Foi a primeira e única vez na vida que Zé Dirceu me obedeceu...
A intimidade do exílio nos aproximou. Um canal de TV convidou-me a dublar telenovelas mexicanas em português e levei junto Zé Dirceu. Eu dublava e coordenava o grupo e o designei "primeiro ator". Dias depois, porém, ele e os demais viajaram para Cuba. Só eu permaneci no México e, assim, nem sequer nossas vozes retornaram ao Brasil, para onde não podíamos voltar.
Ele, porém, desafiou a proibição. A morte era a pena imposta ao retorno dos desterrados, mas Zé voltou, clandestino, em 1972, na euforia e terror do general Medici. Treinado em guerrilha, queria aliar-se aos que combatiam a ditadura, mas na chegada a São Paulo viu que a repressão dizimava seu grupo e ele seria a próxima vítima. Homiziou-se no oeste do Paraná e mudou de nome. Passou a ser Carlos Henrique, pacato comerciante de secos e molhados num recôndito município. Lá, casou-se e foi pai sem revelar quem era nem sequer à mulher e ao filho. A verdade significaria a morte e ele passou a ser outro.
Já não era quem era. Sacrificava a identidade para não ser sacrificado. No exílio, dizia-se que morrera como outros do "grupo Primavera", nome do lugar de treinamento em Cuba. Com a anistia do final de 1979, voltou a ser o Zé. Laborioso e hábil, presidiu o PT e o tirou do atoleiro de seita fechada ou partido sindical. Mas, ao se abrir à sociedade, o PT assimilou os velhos vícios políticos, como vírus pelas veias.
Quando Lula presidente, eram de Zé Dirceu os planos e atos de governo. Lula presidia, Zé governava. Irmãos siameses, um era a extensão do outro. A simpatia ficava com Lula, as antipatias com Zé. Pródigo em metáforas esportivas, o presidente o chamava de "capitão do time". Mas Zé era dos poucos que não jogava bola com Lula em fins de semana na Granja do Torto. Trabalhava noutras jogadas com outras bolas. Assim, o governo obteve maioria no Congresso e, hoje, se sabe a que preço e como - subornando o PMDB, o PTB, o PP de Maluf e o PL, que hoje é PR.
Em 2005, no topo do escândalo, sabe-se que Lula pensou em renunciar para "não ser um novo Collor". Outra vez a coragem de Zé Dirceu brotou como água no deserto e ele é que renunciou. Com o gesto, assumiu as responsabilidades e blindou Lula em pleno tiroteio. "Eu não sabia de nada, fui traído", dizia Lula, admitindo o suborno quando ainda se desconheciam os detalhes. Preferia passar por tolo do que por chefe do governo.
Agora, as 40 mil folhas do processo no Supremo Tribunal mostram o "mensalão" como um elaborado esquema de corrupção e suborno montado a partir "da alta cúpula do governo". Mas, o mais alto da "alta cúpula" não é réu. A não ser que o presidente fosse alienado absoluto ou pateta total, como explicar que um simples diretor de marketing do Banco do Brasil desviasse R$ 28 milhões do fundo Visanet sem autorização superior? A diretoria do banco nada percebeu? E a inspeção do Banco Central?
Não há suborno sem subornáveis e a degradação dos partidos gerou tudo. A "partidocracia" se sobrepôs à democracia. Roberto Jefferson fez a denúncia por sentir-se "lesado" ao receber só uma das cinco parcelas de R$ 4 milhões prometidas ao PTB... Com partidos transformados em balcões de negócios, o astucioso "mensalão" quebrou a oposição criando uma "base alugada" como base aliada.
A degradação chegou ao próprio PT. Numa das vezes em que estive com Zé Dirceu, após a cassação, ele me mostrou como a Polícia Federal invadira seu escritório em busca de documentos. Tarso Genro era ministro da Justiça e na disputa interna todos queriam comprometer Dirceu para tornar-se "o favorito do rei".
E as provas da fraude? Na engrenagem clandestina, oculta-se tudo. Ou alguém pensa que os corrompidos assinam recibo? Ou que João Paulo Cunha e os demais de São Paulo emitiram "nota paulista" pelo que abocanharam?
Nos delitos de alto nível, os indícios constroem a prova. Os Bancos do Brasil, Rural e BMG geraram as milionárias movimentações do esquema e daí surge tudo. Não foi sequer como no tempo de Fernando Henrique, quando a tão comentada compra de votos que permitiu a reeleição de presidente, governador e prefeito, surgiu numa manobra rápida, até hoje sem autor plenamente identificado.
Na tragédia, o terrível é que a determinação de Zé Dirceu o tenha levado ao topo de tudo, como bode expiatório da degradação maior. Mas nem seu passado de coragem pode livrá-lo da parcela de culpa. O passado não está em julgamento nem serve de escudo ao presente.

Nos detalhes, o diabo


OSCAR VILHENA VIEIRA É PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA DIREITO GV - O Estado de S.Paulo
Aprovada em 2010, a Lei da Ficha Limpa estreou finalmente nestas eleições. Sua principal inovação foi estabelecer novas hipóteses de inelegibilidade, impedindo que indivíduos envolvidos em práticas ilícitas e malversação de recursos possam concorrer a cargos públicos. Se antes, por exemplo, os condenados à perda de direitos políticos por improbidade administrativa podiam disputar eleições até que fossem esgotados todos os recursos, a partir de agora basta um único pronunciamento por tribunal para que a candidatura seja barrada.
A lei criou, portanto, condições para um grande salto ético no processo eleitoral. Muitos políticos que vivem às voltas com a Justiça possivelmente nem ousaram se lançar candidato ou tiveram indeferido o registro de sua candidatura. Alguns, marotamente, se fizeram representar por esposas, filhos e sobrinhos.
O controle das candidaturas é feito pela Justiça Eleitoral, a partir da iniciativa de qualquer candidato, partido político, coligação ou do Ministério Público, que podem apresentar impugnação aos pedidos de registro. Com isso, um aspecto importante da disputa eleitoral - o debate sobre o peso que o passado de condenações deve exercer na avaliação do eleitor - foi transferido do ambiente político para a arena judicial. Nesse sentido, a Lei da Ficha Limpa representa mais um capítulo no processo de judicialização da política nacional. Importante destacar que esse movimento não se deve a um ativismo do Judiciário, mas decorre do impulso da sociedade e do próprio acolhimento dos braços políticos do Estado. A expansão do raio de ação judicial é determinada, ao menos nesse caso, por uma lei que não apenas foi aprovada pelo Congresso Nacional, mas nasceu da iniciativa popular. Nesse contexto, a judicialização dificilmente pode ser taxada de ilegítima, pois decorre de um processo de delegação política explícita.
A eficácia da Ficha Limpa, contudo, depende muito do modo como ela é aplicada. Como se sabe, o diabo mora nos detalhes. E é aqui que os problemas começam a aparecer. Três deles parecem mais evidentes.
O primeiro tem a ver com a incapacidade do sistema jurisdicional de resolver definitivamente, antes das eleições, os milhares de impugnações formuladas com base na lei. Em muitas localidades os eleitores foram às urnas sem saber se determinados candidatos conseguirão manter suas candidaturas e, consequentemente, se os votos a eles dados serão considerados válidos. Isso produz forte apreensão e prejudica a estabilidade que, em uma democracia, deve ser a tônica do processo eleitoral.
Em realidade, essa demora era esperada. Afinal, em todos os casos em que se suscitou a aplicação da Lei da Ficha Limpa é natural que o prejudicado - o candidato, na hipótese de indeferimento do registro, ou seus oponentes, na situação contrária - recorra da decisão. E recurso é o que não falta na legislação eleitoral: além do apelo ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE), pode-se recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mais: se esse expediente for decidido monocraticamente pelo relator, cabe novo recurso para o colegiado. Persistindo o ânimo recursal, o caso pode ser levado até o Supremo Tribunal Federal. Junte-se a isso os embargos cabíveis a cada nova decisão e se concluirá, sem muita dificuldade, que não é por falta de esforço da Justiça Eleitoral que a meta de julgar todos os recursos até 23 de agosto não foi alcançada.
Um segundo problema reside na constatação de que decisões colegiadas dos TREs que rejeitaram candidaturas com base na Lei da Ficha Limpa foram revertidas, no TSE, pela decisão isolada de um único ministro (o relator), inclusive em casos nos quais o Tribunal Regional havia decidido pela unanimidade de seus desembargadores. Nada contra o TSE reformar decisões de instâncias inferiores - isso faz parte de seu papel institucional. O princípio da colegialidade recomenda, porém, que os Tribunais se manifestem pelo conjunto de seus integrantes. O TSE deveria se cercar de todos os cuidados para que seus pronunciamentos sejam o mais uniforme possível - e isso envolve reduzir os espaços para decisões monocráticas.
Por fim, um terceiro problema refere-se à leitura que a sociedade faz da decisão que libera o registro de candidatura impugnada com base na lei. Ela significa, tão somente, que o candidato não tinha condenações por órgão colegiado (segunda instância ou superior); eventuais condenações que tenham recebido em primeira instância não são computadas para efeitos da lei. A lei filtra apenas os casos mais graves de políticos com problemas na Justiça, e não todos. O que se observa, porém, é que muitos candidatos com dezenas de condenações (apenas) em primeira instância, que tiveram suas candidatura registradas, apresentam-se na arena eleitoral como candidatos ficha limpa, com "atestado judicial" de bons antecedentes - e isso, definitivamente, não condiz com a realidade.
A lei não eliminou, portanto, a necessidade de o eleitor continuar vigilante sobre o passado ético dos postulantes a um cargo público. O grande risco é achar que a Justiça Eleitoral possa substituir o juízo crítico do cidadão. O direito e suas instituições são indispensáveis para a vida democrática, mas jamais poderão substituir a política e a cidadania.