OSCAR VILHENA VIEIRA É PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA DIREITO GV - O Estado de S.Paulo
Aprovada em 2010, a Lei da Ficha Limpa estreou finalmente nestas eleições. Sua principal inovação foi estabelecer novas hipóteses de inelegibilidade, impedindo que indivíduos envolvidos em práticas ilícitas e malversação de recursos possam concorrer a cargos públicos. Se antes, por exemplo, os condenados à perda de direitos políticos por improbidade administrativa podiam disputar eleições até que fossem esgotados todos os recursos, a partir de agora basta um único pronunciamento por tribunal para que a candidatura seja barrada.
A lei criou, portanto, condições para um grande salto ético no processo eleitoral. Muitos políticos que vivem às voltas com a Justiça possivelmente nem ousaram se lançar candidato ou tiveram indeferido o registro de sua candidatura. Alguns, marotamente, se fizeram representar por esposas, filhos e sobrinhos.
O controle das candidaturas é feito pela Justiça Eleitoral, a partir da iniciativa de qualquer candidato, partido político, coligação ou do Ministério Público, que podem apresentar impugnação aos pedidos de registro. Com isso, um aspecto importante da disputa eleitoral - o debate sobre o peso que o passado de condenações deve exercer na avaliação do eleitor - foi transferido do ambiente político para a arena judicial. Nesse sentido, a Lei da Ficha Limpa representa mais um capítulo no processo de judicialização da política nacional. Importante destacar que esse movimento não se deve a um ativismo do Judiciário, mas decorre do impulso da sociedade e do próprio acolhimento dos braços políticos do Estado. A expansão do raio de ação judicial é determinada, ao menos nesse caso, por uma lei que não apenas foi aprovada pelo Congresso Nacional, mas nasceu da iniciativa popular. Nesse contexto, a judicialização dificilmente pode ser taxada de ilegítima, pois decorre de um processo de delegação política explícita.
A eficácia da Ficha Limpa, contudo, depende muito do modo como ela é aplicada. Como se sabe, o diabo mora nos detalhes. E é aqui que os problemas começam a aparecer. Três deles parecem mais evidentes.
O primeiro tem a ver com a incapacidade do sistema jurisdicional de resolver definitivamente, antes das eleições, os milhares de impugnações formuladas com base na lei. Em muitas localidades os eleitores foram às urnas sem saber se determinados candidatos conseguirão manter suas candidaturas e, consequentemente, se os votos a eles dados serão considerados válidos. Isso produz forte apreensão e prejudica a estabilidade que, em uma democracia, deve ser a tônica do processo eleitoral.
Em realidade, essa demora era esperada. Afinal, em todos os casos em que se suscitou a aplicação da Lei da Ficha Limpa é natural que o prejudicado - o candidato, na hipótese de indeferimento do registro, ou seus oponentes, na situação contrária - recorra da decisão. E recurso é o que não falta na legislação eleitoral: além do apelo ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE), pode-se recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mais: se esse expediente for decidido monocraticamente pelo relator, cabe novo recurso para o colegiado. Persistindo o ânimo recursal, o caso pode ser levado até o Supremo Tribunal Federal. Junte-se a isso os embargos cabíveis a cada nova decisão e se concluirá, sem muita dificuldade, que não é por falta de esforço da Justiça Eleitoral que a meta de julgar todos os recursos até 23 de agosto não foi alcançada.
Um segundo problema reside na constatação de que decisões colegiadas dos TREs que rejeitaram candidaturas com base na Lei da Ficha Limpa foram revertidas, no TSE, pela decisão isolada de um único ministro (o relator), inclusive em casos nos quais o Tribunal Regional havia decidido pela unanimidade de seus desembargadores. Nada contra o TSE reformar decisões de instâncias inferiores - isso faz parte de seu papel institucional. O princípio da colegialidade recomenda, porém, que os Tribunais se manifestem pelo conjunto de seus integrantes. O TSE deveria se cercar de todos os cuidados para que seus pronunciamentos sejam o mais uniforme possível - e isso envolve reduzir os espaços para decisões monocráticas.
Por fim, um terceiro problema refere-se à leitura que a sociedade faz da decisão que libera o registro de candidatura impugnada com base na lei. Ela significa, tão somente, que o candidato não tinha condenações por órgão colegiado (segunda instância ou superior); eventuais condenações que tenham recebido em primeira instância não são computadas para efeitos da lei. A lei filtra apenas os casos mais graves de políticos com problemas na Justiça, e não todos. O que se observa, porém, é que muitos candidatos com dezenas de condenações (apenas) em primeira instância, que tiveram suas candidatura registradas, apresentam-se na arena eleitoral como candidatos ficha limpa, com "atestado judicial" de bons antecedentes - e isso, definitivamente, não condiz com a realidade.
A lei não eliminou, portanto, a necessidade de o eleitor continuar vigilante sobre o passado ético dos postulantes a um cargo público. O grande risco é achar que a Justiça Eleitoral possa substituir o juízo crítico do cidadão. O direito e suas instituições são indispensáveis para a vida democrática, mas jamais poderão substituir a política e a cidadania.
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