segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Custas processuais ou imposto?


O Estado de S.Paulo
Sob fortes críticas de entidades de advogados, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anunciou que está elaborando um projeto de lei para uniformizar as custas processuais cobradas pelos 27 Tribunais de Justiça (TJs) do País. Ao justificar sua iniciativa, o órgão alegou que as taxas processuais são muito altas em alguns Estados, principalmente nos da Região Nordeste, e muito baixas em outros, como é o caso de São Paulo e de Santa Catarina.
Além da padronização das taxas e emolumentos das Justiças estaduais, o CNJ quer fixar, para as instâncias superiores, porcentuais que inibam a apresentação de recursos considerados "protelatórios" e "temerários" pelos desembargadores. Essa medida preocupa os grandes litigantes, como bancos, empresas de telefonia, planos de saúde, lojas de departamentos, companhias seguradoras e órgãos públicos.
Segundo o conselheiro Jefferson Kravchychyn, que integra a Comissão de Eficiência Operacional e Gestão de Pessoas do órgão encarregado de promover o controle do Poder Judiciário, a iniciativa descongestionará os tribunais, aumentando a eficiência das Justiças estaduais. Para o desembargador Rui Stocco, do TJSP, que participou da elaboração do anteprojeto do CNJ, encarecer a apelação é uma forma de "valorizar" a sentença de primeira instância. "Quem entra na Justiça tem, literalmente, de pagar para ver", diz ele, depois de lembrar que uma ação judicial pode gerar mais de 20 recursos que, em São Paulo, custam de R$ 50 a R$ 60, cada um.
Já para os conselhos seccionais da OAB, aumentar as custas processuais para desestimular litigantes a não utilizar o direito de recorrer ao segundo grau dificulta o acesso à Justiça e compromete o devido processo legal assegurado pela Constituição. "O valor do recurso não pode, em hipótese alguma, inibir o direito de recorrer", afirma o advogado Caio Lúcio Brutton.
Pelo anteprojeto do CNJ, divulgado pelo jornal Valor, as custas processuais - da petição inicial à execução do julgamento - não poderão exceder a 6% do valor da causa. Esse porcentual deve ser distribuído entre as fases de distribuição, de apelação e de execução. A proposta também dá aos Tribunais de Justiça a prerrogativa de distribuir como bem entenderem esse ônus. Com isso, as Cortes poderão, por exemplo, adotar porcentuais próximos do limite de 6% para os recursos impetrados na segunda instância, reduzindo ao mínimo as custas nas fases de distribuição e execução. Os valores totais, contudo, não poderão ser inferiores a R$ 112 ou superiores a R$ 62 mil.
"Há uma verdadeira fúria arrecadatória no anteprojeto", afirma o advogado Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, da Comissão de Direito Tributário da OAB. Como as custas processuais hoje variam conforme os tribunais, em alguns a uniformização das taxas processuais acarretará aumentos superiores a 200%. Em Minas Gerais, por exemplo, uma causa no valor de R$ 1 milhão paga R$ 7,3 mil de custas. Pelos critérios que o CNJ pretende adotar, elas subiriam para R$ 60,6 mil.
"O que a proposta poderia valorizar é a harmonização de parâmetros, de criação de obrigações acessórias e preenchimento de guias. Ou seja, normas que facilitem o acesso do cidadão aos tribunais", sugere. "O anteprojeto pode gerar acréscimos, mas não nos patamares apontados", refuta o diretor do departamento de arrecadação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que também participou da elaboração do texto. As Cortes mais interessadas na proposta do CNJ são as mais movimentadas do País, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
O mais adequado, segundo alguns advogados, é que as Justiças estaduais cobrem, a título de taxas processuais, valores que remunerem, proporcionalmente, as despesas calculadas com base nos custos fixos dos tribunais.
Mas esse é apenas um dos lados do problema. O outro é de natureza constitucional e envolve a autonomia das unidades que compõem a Federação. Ao fixar o tabelamento das custas, o CNJ não estaria cerceando a autonomia dos Estados, invadindo área na qual não tem competência legal?

A Justiça cobra Maluf


O Estado de S.Paulo
Em tempos pouco propícios a corruptos e corruptores, Paulo Maluf tem até o fim deste mês, agora por força de decisão judicial irrecorrível, para devolver aos cofres do Município mais de R$ 21 milhões desviados no chamado "escândalo dos precatórios", denunciado em 1996.
Por ironia do destino, Maluf está condenado, desde 1998, na ação movida pelo Ministério Público Estadual (MPE), com base em representação feita por iniciativa de líderes do PT, partido ao qual hoje está aliado. Essa aliança se materializou, em São Paulo, com o aperto de mãos entre Lula e Maluf, selando o apoio à candidatura a prefeito de Fernando Haddad.
Aquele que se tornou conhecido, em meados dos anos 90, como "escândalo dos precatórios" foi o resultado de golpes contra o erário concebidos originalmente por um funcionário da Secretaria da Fazenda de Pernambuco, com base numa emenda constitucional de 1993 que permitiu a Estados e municípios emitir e vender títulos públicos, desde que os recursos obtidos fossem destinados, exclusivamente, a pagar dívidas devidamente reconhecidas pela Justiça e anteriores à vigência da Constituição de 1988.
Foi o suficiente para que, no âmbito do Município de São Paulo, o malufismo urdisse a fraude: o valor dos títulos era superestimado e o valor excedente desviado com o concurso de operadores financeiros inescrupulosos. O golpe disseminou-se por várias administrações municipais e estaduais, a ponto de, em dezembro de 1996, ter sido instalada no Senado a CPI dos Precatórios - que começou a funcionar com muito foguetório e chegou a poucos resultados práticos.
Em São Paulo, o "escândalo" envolveu o desvio de recursos provenientes da emissão de títulos emitidos pelo Tesouro Municipal para pagamento de precatórios. A operação fraudulenta, segundo a denúncia do MPE, foi coordenada pelo então secretário de Finanças do prefeito Maluf, Celso Pitta, entre janeiro de 1994 e novembro de 1995. No ano seguinte, Pitta elegeu-se sucessor de seu padrinho.
Na operação financeira que viria a ser denunciada por improbidade administrativa, a Prefeitura emitiu, em 1994, Letras Financeiras do Tesouro Municipal (LFTM) que, de acordo com a denúncia, foram vendidas a corretoras e depois recompradas a preços maiores. A fraude foi denunciada em representação encaminhada ao MPE por um grupo de líderes petistas, entre os quais estavam o atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, os deputados Carlos Zarattini, Adriano Diogo, José Mentor e Devanir Ribeiro (os dois últimos integrantes da Executiva Nacional do partido) e ainda o vereador José Américo.
A denúncia do MPE foi apresentada em 1996 e, dois anos depois, em dezembro de 1998, Maluf e Pitta (que morreu em 2009) foram condenados em primeira instância por improbidade administrativa. Os condenados entraram com vários recursos na Justiça, sendo invariavelmente derrotados, tanto no Tribunal de Justiça paulista quanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, em última instância, no Supremo Tribunal Federal (STF), em março de 2009, em ação relatada pelo ministro Ayres Britto. A partir de então, o Ministério Público paulista passou a reclamar na Justiça a restituição ao Tesouro Municipal dos valores desviados, à época calculados em cerca de R$ 40 milhões. No mês passado, a juíza Liliane Keyko Hioki, da 3.ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, estabeleceu um prazo até o fim deste mês para que Maluf proceda à restituição do que deve à população paulistana.
Com o mesmo desapreço pelas evidências com que sempre contestou as ações judiciais das quais tem sido réu regularmente há 40 anos, e da mesma forma que sempre jurou de pés juntos não ser titular de contas bancárias no exterior, Paulo Maluf instruiu sua assessoria a divulgar nota na qual afirma que "nunca assinou nenhum documento nos quais esse processo está baseado".
É a hoje desmoralizada tese de que a acusação de irregularidade praticada por detentor de cargo público precisa ser sustentada documentalmente por "ato de ofício" que a comprove. Por esse caminho, um dos mais famosos neoaliados de Maluf, José Dirceu, já deu com os burros n'água.

Moradores tentam flexibilizar área de preservação na Jureia


Giovana Girardi, Enviada especial - O Estado de S.Paulo
JUREIA - Pouco mais de 150 km separam São Paulo da Estação Ecológica Jureia-Itatins, no litoral sul. Trajeto que pelo ar, de helicóptero, leva só meia hora. São 30 minutos, no entanto, de uma certa sensação de perplexidade pelo choque visual entre a capital e uma das áreas mais bem preservadas do Estado de São Paulo.
Intocada: Praia do Rio Verde na Estação Ecológica Jureia-Itatins (litoral de SP) - Márcio Fernandes/AE
Márcio Fernandes/AE
Intocada: Praia do Rio Verde na Estação Ecológica Jureia-Itatins (litoral de SP)
Depois do maciço cinza de prédios, casas, asfalto, rios poluídos, ocupações irregulares em áreas de manancial, surge um cinturão verde de mata secundária, ainda com a existência de propriedades mais espalhadas. Ao entrarmos na estação pelo norte, porém, a diferença de cores e densidade da floresta tropical se faz gritante. É vegetação primária, íntegra, quase despovoada.
A preservação da área de quase 80 mil hectares em meio às pressões da expansão imobiliária foi possível por conta da sua transformação, em 1986, em estação ecológica - categoria de proteção integral, ou seja, que não permite gente vivendo nela. O local, porém, era ocupado por povos tradicionais, além de algumas casas de veraneio, e, apesar de algumas tentativas legais nos últimos anos, até hoje não foi encontrada uma solução sobre o que fazer com eles.
Um projeto de lei enviado pelo governo do Estado à Assembleia Legislativa no início do ano tenta, enfim, resolver o impasse. A ideia é criar um mosaico de unidades de conservação, com categorias variadas de proteção, sendo duas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que permitem a presença somente de população tradicional, com plano de manejo e exploração controlada dos recursos naturais, inclusive com turismo.
Seu formato foi visto como equilibrado por ambientalistas que estiveram na origem da criação da estação, como Fabio Feldmann, Maria Cecília Wey de Brito e a ONG SOS Mata Atlântica, mas desagradou alguns moradores que não foram contemplados. Eles pedem que a flexibilização atinja uma área maior.

Na época em que a estação foi criada, as possibilidades de áreas protegidas eram limitadas. Não existia o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, de 2000, que trouxe a categoria de RDS para aliar proteção ambiental e social.
Segundo cálculos da Fundação Florestal, que gere a estação, o desenho do governo contemplaria mais de 80% da população tradicional que vive hoje na Jureia. Mas, com a discussão aberta no legislativo, alguns dos moradores que ficaram de fora mobilizaram deputados para incluir outras áreas na recategorização, o que, para ambientalistas e pesquisadores de biodiversidade, pode comprometer a proteção da estação.
Um substitutivo apresentado pela bancada do PT propôs a transformação de quase metade da Jureia em RDS. O projeto, porém, nem chegou a ser defendido. Em seu lugar, foi costurada uma emenda aglutinativa que amplia o tamanho das duas RDSs previstas (da Barra do Una e do Despraiado) e cria uma terceira - a da Trilha do Imperador, englobando as praias do Una e do Rio Verde. A proposta acabou sendo levada para votação no final de junho, mas o PV obstruiu a seção. Passado o primeiro turno da eleição, a discussão deve ser retomada.
Mapa da ocupação
O imbróglio envolve uma série de questões: quantas famílias seriam beneficiadas pelas mudanças; se todas elas são tradicionais ou ocuparam a região em momento mais recente; se dependem mesmo da área para sobreviver ou hoje mantém uma residência só para uso eventual no local.
Um laudo antropológico encomendado em 2010 pelo então gestor da estação, o biólogo Roberto Nicácio, levou à criação de um mapa da ocupação (pontos vermelhos no mapa acima). O levantamento mostrou, por exemplo, que na Praia do Rio Verde (cuja foto abre esta reportagem), pleiteada para se tornar RDS, vivem só duas famílias. Na área para onde seria ampliada a reserva do Despraiado também há poucos moradores, alguns não tradicionais. Já a ampliação da Barra do Una contemplaria segundas residências.
"Não justifica criar uma RDS para duas famílias", diz Nicácio durante o sobrevoo. "De cima, fica claro que estamos falando de coisas bem diferentes", afirma se referindo à ocupação visivelmente maior da Barra do Una.
A proposta é encabeçada pela União dos Moradores da Jureia (UMJ), cujo líder, Dauro Prado, é filho de um daqueles dois moradores. O outro é seu tio. "Mas não é só para beneficiar minha família, tem outras que usam o território, pelos menos outras 20, alguns parentes que foram embora por conta das restrições."
Questionado se essas famílias residem na região, ele admite que não, mas diz que elas fazem uso de seus recursos e, com a criação da RDS, poderiam voltar. "Somos os mais tradicionais da região, estamos lá desde 1756." Nicácio lembra que isso não é permitido pela legislação das RDSs. "É para manutenção da população tradicional, que está ali na hora da criação, não para retorno."
Apesar de a UMJ se apresentar em nome de todos os moradores, associações da Barra do Una e do Despraiado disseram não se sentir representadas por ela. "Para nós o projeto está bom. Só queremos que resolva logo, para tocarmos a vida", diz Roberto de Paula e Silva, do Despraiado. "Ninguém faz manejos na área para onde querem crescer a RDS. Só tem três ou quatro famílias lá."
Riqueza biológica
Outro ponto levado em conta é a ameaça que uma exploração maior daquela região poderia trazer para a biodiversidade. A Jureia é considerada o conjunto mais primitivo de Mata Atlântica que sobrou no Estado de São Paulo - única por interligar serra e mar em 47 km de praias. A região foi declarada pela Unesco como Sítio do Patrimônio Mundial Natural e também faz parte do Conjunto Tombado da Serra do Mar pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat). Por isso, a área almejada para virar a RDS da Trilha do Imperador é tão preciosa para ambientalistas e para a pesquisa - e também tão atraente para a exploração turística.
Segundo José Pedro de Oliveira Costa, assessor da Secretaria de Meio Ambiente do Estado e um dos responsáveis pelo projeto original de mosaico, mais de 20 ecossistemas são interligados no local. "Começa nos ecossistemas marinhos, nas pradarias submersas. Depois vem a arrebentação, a vegetação de areia, o jundú, que são aqueles cordões com coqueirinhos na praia. Tem dunas, restinga, lagoas, mangue, vegetações de floresta e montanas, até os campos de altitude. É o coração ecológico da Jureia e, cientificamente, seu valor."
O secretário de Meio Ambiente do Estado, Bruno Covas, disse à reportagem que o governo defende o que está no projeto de lei. "Entendemos que é o texto que consegue, ou ao menos tenta, compatibilizar a ocupação humana com a preservação." O líder do governo na Assembleia, Samuel Moreira, afirmou que o mosaico "não pode atender quem não é tradicional ou uma, duas famílias."
Entretanto, a emenda aglutinativa chegou a ser levada ao plenário, em substituição ao projeto original. O deputado do PT Hamilton Pereira disse que quando as discussões forem retomadas, a intenção é reapresentar esse texto. Moreira não deixou claro qual texto poderá ir à votação.
Ideia de mosaicos já foi tentada há seis anos
Não é a primeira vez que se tenta compatibilizar a proteção ambiental com a permanência de moradores tradicionais. Em 2006, depois de serem feitas diversas consultas públicas, foi aprovada uma lei que transformava a estação ecológica em um mosaico de áreas protegidas.
A proposta, feita pelos deputados Zico Prado e Hamilton Pereira, criava as reservas da Barra do Una e do Despraiado e mais dois Parques Estaduais, um voltado para Peruíbe e outro para Iguape, além de um Refúgio de Vida Silvestre. E foi acrescida à área original protegida uma porção dos banhados que rodeiam a Serra da Jureia. No total, o mosaico passava de cerca de 80 mil hectares para quase 100 mil ha.
Após aprovada, com anuência da população local, começaram a ser feitos os planos de manejos. Mas o Poder Judiciário decretou inconstitucionalidade da lei por vício de iniciativa – a proposta não podia ter saído do Legislativo.
O novo projeto do governo segue em boa parte o anterior, mas atendeu aos pedidos dos moradores e ampliou um pouco mais as duas RDSs. Quando o assunto voltou a ser discutido, porém, abriu uma brecha para novas solicitações daqueles moradores que haviam ficado de fora.