segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Moradores tentam flexibilizar área de preservação na Jureia


Giovana Girardi, Enviada especial - O Estado de S.Paulo
JUREIA - Pouco mais de 150 km separam São Paulo da Estação Ecológica Jureia-Itatins, no litoral sul. Trajeto que pelo ar, de helicóptero, leva só meia hora. São 30 minutos, no entanto, de uma certa sensação de perplexidade pelo choque visual entre a capital e uma das áreas mais bem preservadas do Estado de São Paulo.
Intocada: Praia do Rio Verde na Estação Ecológica Jureia-Itatins (litoral de SP) - Márcio Fernandes/AE
Márcio Fernandes/AE
Intocada: Praia do Rio Verde na Estação Ecológica Jureia-Itatins (litoral de SP)
Depois do maciço cinza de prédios, casas, asfalto, rios poluídos, ocupações irregulares em áreas de manancial, surge um cinturão verde de mata secundária, ainda com a existência de propriedades mais espalhadas. Ao entrarmos na estação pelo norte, porém, a diferença de cores e densidade da floresta tropical se faz gritante. É vegetação primária, íntegra, quase despovoada.
A preservação da área de quase 80 mil hectares em meio às pressões da expansão imobiliária foi possível por conta da sua transformação, em 1986, em estação ecológica - categoria de proteção integral, ou seja, que não permite gente vivendo nela. O local, porém, era ocupado por povos tradicionais, além de algumas casas de veraneio, e, apesar de algumas tentativas legais nos últimos anos, até hoje não foi encontrada uma solução sobre o que fazer com eles.
Um projeto de lei enviado pelo governo do Estado à Assembleia Legislativa no início do ano tenta, enfim, resolver o impasse. A ideia é criar um mosaico de unidades de conservação, com categorias variadas de proteção, sendo duas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que permitem a presença somente de população tradicional, com plano de manejo e exploração controlada dos recursos naturais, inclusive com turismo.
Seu formato foi visto como equilibrado por ambientalistas que estiveram na origem da criação da estação, como Fabio Feldmann, Maria Cecília Wey de Brito e a ONG SOS Mata Atlântica, mas desagradou alguns moradores que não foram contemplados. Eles pedem que a flexibilização atinja uma área maior.

Na época em que a estação foi criada, as possibilidades de áreas protegidas eram limitadas. Não existia o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, de 2000, que trouxe a categoria de RDS para aliar proteção ambiental e social.
Segundo cálculos da Fundação Florestal, que gere a estação, o desenho do governo contemplaria mais de 80% da população tradicional que vive hoje na Jureia. Mas, com a discussão aberta no legislativo, alguns dos moradores que ficaram de fora mobilizaram deputados para incluir outras áreas na recategorização, o que, para ambientalistas e pesquisadores de biodiversidade, pode comprometer a proteção da estação.
Um substitutivo apresentado pela bancada do PT propôs a transformação de quase metade da Jureia em RDS. O projeto, porém, nem chegou a ser defendido. Em seu lugar, foi costurada uma emenda aglutinativa que amplia o tamanho das duas RDSs previstas (da Barra do Una e do Despraiado) e cria uma terceira - a da Trilha do Imperador, englobando as praias do Una e do Rio Verde. A proposta acabou sendo levada para votação no final de junho, mas o PV obstruiu a seção. Passado o primeiro turno da eleição, a discussão deve ser retomada.
Mapa da ocupação
O imbróglio envolve uma série de questões: quantas famílias seriam beneficiadas pelas mudanças; se todas elas são tradicionais ou ocuparam a região em momento mais recente; se dependem mesmo da área para sobreviver ou hoje mantém uma residência só para uso eventual no local.
Um laudo antropológico encomendado em 2010 pelo então gestor da estação, o biólogo Roberto Nicácio, levou à criação de um mapa da ocupação (pontos vermelhos no mapa acima). O levantamento mostrou, por exemplo, que na Praia do Rio Verde (cuja foto abre esta reportagem), pleiteada para se tornar RDS, vivem só duas famílias. Na área para onde seria ampliada a reserva do Despraiado também há poucos moradores, alguns não tradicionais. Já a ampliação da Barra do Una contemplaria segundas residências.
"Não justifica criar uma RDS para duas famílias", diz Nicácio durante o sobrevoo. "De cima, fica claro que estamos falando de coisas bem diferentes", afirma se referindo à ocupação visivelmente maior da Barra do Una.
A proposta é encabeçada pela União dos Moradores da Jureia (UMJ), cujo líder, Dauro Prado, é filho de um daqueles dois moradores. O outro é seu tio. "Mas não é só para beneficiar minha família, tem outras que usam o território, pelos menos outras 20, alguns parentes que foram embora por conta das restrições."
Questionado se essas famílias residem na região, ele admite que não, mas diz que elas fazem uso de seus recursos e, com a criação da RDS, poderiam voltar. "Somos os mais tradicionais da região, estamos lá desde 1756." Nicácio lembra que isso não é permitido pela legislação das RDSs. "É para manutenção da população tradicional, que está ali na hora da criação, não para retorno."
Apesar de a UMJ se apresentar em nome de todos os moradores, associações da Barra do Una e do Despraiado disseram não se sentir representadas por ela. "Para nós o projeto está bom. Só queremos que resolva logo, para tocarmos a vida", diz Roberto de Paula e Silva, do Despraiado. "Ninguém faz manejos na área para onde querem crescer a RDS. Só tem três ou quatro famílias lá."
Riqueza biológica
Outro ponto levado em conta é a ameaça que uma exploração maior daquela região poderia trazer para a biodiversidade. A Jureia é considerada o conjunto mais primitivo de Mata Atlântica que sobrou no Estado de São Paulo - única por interligar serra e mar em 47 km de praias. A região foi declarada pela Unesco como Sítio do Patrimônio Mundial Natural e também faz parte do Conjunto Tombado da Serra do Mar pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat). Por isso, a área almejada para virar a RDS da Trilha do Imperador é tão preciosa para ambientalistas e para a pesquisa - e também tão atraente para a exploração turística.
Segundo José Pedro de Oliveira Costa, assessor da Secretaria de Meio Ambiente do Estado e um dos responsáveis pelo projeto original de mosaico, mais de 20 ecossistemas são interligados no local. "Começa nos ecossistemas marinhos, nas pradarias submersas. Depois vem a arrebentação, a vegetação de areia, o jundú, que são aqueles cordões com coqueirinhos na praia. Tem dunas, restinga, lagoas, mangue, vegetações de floresta e montanas, até os campos de altitude. É o coração ecológico da Jureia e, cientificamente, seu valor."
O secretário de Meio Ambiente do Estado, Bruno Covas, disse à reportagem que o governo defende o que está no projeto de lei. "Entendemos que é o texto que consegue, ou ao menos tenta, compatibilizar a ocupação humana com a preservação." O líder do governo na Assembleia, Samuel Moreira, afirmou que o mosaico "não pode atender quem não é tradicional ou uma, duas famílias."
Entretanto, a emenda aglutinativa chegou a ser levada ao plenário, em substituição ao projeto original. O deputado do PT Hamilton Pereira disse que quando as discussões forem retomadas, a intenção é reapresentar esse texto. Moreira não deixou claro qual texto poderá ir à votação.
Ideia de mosaicos já foi tentada há seis anos
Não é a primeira vez que se tenta compatibilizar a proteção ambiental com a permanência de moradores tradicionais. Em 2006, depois de serem feitas diversas consultas públicas, foi aprovada uma lei que transformava a estação ecológica em um mosaico de áreas protegidas.
A proposta, feita pelos deputados Zico Prado e Hamilton Pereira, criava as reservas da Barra do Una e do Despraiado e mais dois Parques Estaduais, um voltado para Peruíbe e outro para Iguape, além de um Refúgio de Vida Silvestre. E foi acrescida à área original protegida uma porção dos banhados que rodeiam a Serra da Jureia. No total, o mosaico passava de cerca de 80 mil hectares para quase 100 mil ha.
Após aprovada, com anuência da população local, começaram a ser feitos os planos de manejos. Mas o Poder Judiciário decretou inconstitucionalidade da lei por vício de iniciativa – a proposta não podia ter saído do Legislativo.
O novo projeto do governo segue em boa parte o anterior, mas atendeu aos pedidos dos moradores e ampliou um pouco mais as duas RDSs. Quando o assunto voltou a ser discutido, porém, abriu uma brecha para novas solicitações daqueles moradores que haviam ficado de fora.

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