Gaudêncio Torquato
Conservar a identidade, não deixar que a condição humana seja sufocada pelo turbilhão da vida pública, preservar a capacidade de expressar ideias de modo a dar vazão ao ideário do "eu" que cada um carrega. Eis alguns dos desafios que se apresentam ao cotidiano do homem público, tarefa ainda mais complexa quando se trata de mulheres que alçam um alto patamar de visibilidade em função do posto ocupado por seus maridos.
Respondendo às críticas que se faziam a seu comportamento em uma viagem oficial a Cuba e a Venezuela, Margaret Trudeau, então primeira-dama do Canadá, aos 27 anos, desabafou: "Quero ser algo mais que uma rosa na lapela do meu marido. Não me deixarei mais fechar e me isolar a distância, como no passado". Casada com Pierre Trudeau —ex-primeiro-ministro do Canadá (1968-79 e 1980-84) e mãe do atual, Justin Trudeau—, Margaret foi um ícone na luta das mulheres que se rebelaram contra as regras que regulam as atividades das primeiras-damas.
A observação leva em conta o papel de Rosângela Silva, a Janja, mulher do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), criticada por analistas por "extrapolar" os ritos da liturgia do cargo. Estaria mesmo a futura primeira-dama se excedendo? Este escriba pede atenção a questões que não teriam entrado neste debate.
As mudanças que balizam a política impactaram o universo feminino. A mulher quer ser tratada com grau de autonomia idêntico ao dos homens. O empoderamento feminino é diferente dos tempos de Jacqueline Kennedy ou da própria Margaret, com seus papéis voltados para inaugurações de creches e quebras de garrafas de champanhe em casco de navios que saem de estaleiros.
O então presidente John Kennedy chegou a fazer humor com esse costume, por ocasião de sua visita oficial à França, onde estudara a glamourosa Jacqueline: "Eu sou o sujeito que está acompanhando Jackie Kennedy em Paris". Em "O Estado Espetáculo", Roger-Gérard Schwartzenberg conta ainda que Jacqueline foi eficaz na campanha de 1960. Os assessores mexiam com Kennedy, dizendo: "Não foi você que metade das pessoas veio ver: foi Jackie".
Volto à Rosângela. Trata-se de uma socióloga e, como tal, com um vocabulário prontinho para entabular conversas com o marido. Experiente, Lula, ao enfrentar um paredão de pressões, disporá de alguém ao lado para não apenas dizer amém ao que prega. Na intimidade, ouvirá Janja, apelido carinhoso, discorrer sobre coisas benditas e malditas, que pareceram exageradas ou impróprias. Sua presença nos eventos de Lula será benéfica.
Na linha do bom senso, o pêndulo deve se manter no meio, sugerindo que determinados limites não podem ser ultrapassados, ou seja, que se conservem as franjas da liturgia do cargo, sabendo-se que tal liturgia incorporou outros ritos, não impondo o tradicional distanciamento entre a figura do mandatário e a primeira-dama como outrora.
Imagine-se a impropriedade da situação em que dona Marly Sarney se faria presente em todos os eventos presididos pelo mais litúrgico dos nossos homens públicos, o ex-presidente José Sarney. (Lembro de uma viagem aos fundões da floresta amazônica, em Afuá, no Pará, calor em torno de 40ºC e forte umidade. Vi o presidente Sarney, então candidato a senador, portando um paletó cinza-chumbo, um casacão de seis botões, impávido no palanque, parecendo o contundente parlamentar dos tempos da banda de música da UDN (1946-1964).
Lembro, ainda, a dignidade de Ruth Cardoso, que não aceitava usar o termo "primeira-dama" nos tempos do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Professora exemplar de antropologia, teve papel influente como companheira do também intelectual FHC.
Contar com uma "ombudswoman" ao seu lado dará ao presidente eleito a oportunidade para ajustar o pensamento às demandas da sociedade organizada em um momento em que as mulheres passam a reivindicar presença mais forte na esfera da política. O que parecem inapropriados são os efeitos espumantes das vestes, gestos que chamam a atenção pela extravagância, arroubos estridentes que causam perplexidade. O que não é o caso de Rosângela Silva.
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