Uma boa pergunta consistiria em saber se a perfídia moral do nazismo já era conhecida quando Adolf Hitler chegou ao poder ou se, ao contrário, foi preciso esperar que historiadores e juízes do Tribunal de Nuremberg reunissem as informações que até hoje nos chocam de modo superlativo.
E a boa resposta seria a seguinte: a monstruosidade do nazismo já era plenamente exercida quando, no início de 1933, Hitler foi nomeado para a chefia do governo alemão. Tanto que o bom jornalismo relatava em detalhes os horrores que aconteciam.
Um dos repórteres competentes daquela época foi José Jobim, que em 1934 reuniu reportagens no livro "Hitler e seus Comediantes na Tragicomédia: O Despertar da Alemanha", há pouco reeditado pela Topbooks.
O autor, paulista de Ibitinga, prestou em seguida concurso para o Itamaraty. Durante sua carreira de diplomata foi embaixador na Colômbia, na Argélia, no Vaticano e no Equador. Foi assassinado em 1979, por estar reunindo material para um livro sobre a corrupção na construção da usina de Itaipu —a causa verdadeira de sua morte foi relatada apenas anos depois, pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos do regime militar.
Mas voltemos à Alemanha, onde crimes semelhantes eram recorrentes. Jobim teve acesso fácil, em 1933, a informações sobre a administração nazista. E por que não foi também esse, então, o comportamento de toda a mídia a brasileira?
O correspondente nos conta que Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda do Terceiro Reich, distribuía propina a jornais, agências de notícia e jornalistas, para que falassem bem de Hitler e escondessem as safadezas que ele cometia.
Por exemplo, o incêndio do Reichstag, o Parlamento em Berlim, em 28 de fevereiro de 1933. O fogo foi atribuído mentirosamente a um ex-comunista holandês, Marinus van der Lubbe. Mas quem o acendeu foi um comando que entrou de madrugada no prédio, por meio de uma passagem subterrânea que saía dos aposentos de Hermann Goering —viciado em cocaína, diz Jobim—, um dos homens de confiança de Hitler.
Vejamos o contexto. Naquele mês de fevereiro a Alemanha ainda era formalmente uma democracia e se preparava para eleições em que os comunistas poderiam ultrapassar em número de deputados a bancada dos nazistas. O incêndio foi o pretexto para prender deputados comunistas, proibir seus jornais, vetar ao partido o acesso às emissoras de rádio e criminalizar sua existência.
Para tanto, e mais uma vez, a operacionalidade suja foi entregue às Sturmabteilung, as SA, milícia armada do Partido Nacional-Socialista que seria depois responsável pelo extermínio de judeus e opositores nos campos de concentração.
As SA também exerciam o poder ilimitado de polícia. Jobim cita o "Livro Pardo", espécie de compêndio de violações alemãs dos direitos humanos, que aponta 60 mil casos de tortura nos meses iniciais da consolidação do nazismo.
O jornalismo põe em evidência curiosidades que nos anos seguintes historiadores considerariam menos relevantes. Jobim, que trabalhava para vários jornais, informa, por exemplo, que brochuras com textos da oposição circulavam com capas em que apareciam uma catedral gótica alemã ou o rosto de atrizes de cinema. Entre os dados mundanos, o primeiro congresso do Partido Nazista já no poder transportou delegados em 340 trens especiais e nele foram consumidos 500 mil quilos de salsichas.
Mas o nazismo foi um suicídio da inteligência alemã. O físico Albert Einstein precisou se exilar por ser judeu, e viu seus livros queimados na Universidade de Berlim. O "Völkischer Beobachter", jornal que o próprio Hitler dirigia, informou em maio de 1933 que 600 mil toneladas de livros e revistas haviam sido confiscadas e parte delas, queimadas —entre as vítimas, romances de Thomas Mann, Nobel de Literatura.
Grandes professores foram demitidos e tinham seus passaportes confiscados, para não poder lecionar ou pesquisar em países estrangeiros.
Em meio a 10 mil bibliotecas particulares, foram queimados manuscritos antigos do Instituto de Pesquisas Sexuais Magnus Hirschfeld, na época singular em toda a Europa, acusado pelo governo de "colecionar material pornográfico".
Jobim ainda menciona o lado tosco da idealização da mulher como mãe ariana, desestimulada a voltar ao mercado de trabalho, para onde a geração anterior se encaminhou em razão do deslocamento dos homens para as trincheiras da Primeira Guerra. A mulher sob o nazismo pertence essencialmente ao lar, onde cuida moralmente dos filhos, que o Estado também escolariza por meio do ensino ideológico do totalitarismo.
Há o exemplo esquisito de um garoto de 10 anos, filho de imigrantes uruguaios e que se chamava José. Na escola, o garoto contou ao jornalista que colegas que se comportavam mal eram cercados e ameaçados: "Você não passa de um judeu".
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