Sonhar é uma experiência esquisita por definição, ainda que passemos por ela toda santa noite. Entre as múltiplas esquisitices do reino de Morfeu, há uma que não cessa de me encafifar. Trata-se do fato de que o "eu" do sonhador frequentemente enfrenta situações aterrorizantes ou surreais com a maior calma do mundo, como se aquilo nem estivesse acontecendo com ele.
Ocorre que pesquisadores do mundo inteiro, inclusive no Brasil, têm usado abordagens extremamente criativas para entender o que acontece no cérebro de quem dorme e sonha. Num estudo publicado recentemente, eles obtiveram pistas que ajudam a entender como as experiências que temos quando acordados se transformam em matéria-prima para as imagens dos sonhos, e como emoções associadas a essas experiências podem se enfraquecer conforme o sono progride.
O trabalho que investiga algumas dessas questões está disponível no periódico especializado NeuroImage. Em parceria com especialistas de instituições argentinas, Natália Bezerra Mota, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Sidarta Ribeiro, da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), e outros colaboradores monitoraram a atividade cerebral e a memória de 28 voluntários durante diversos estágios do sono.
Os participantes, homens e mulheres com idades entre 20 anos e 43 anos, tinham recebido instruções para chegar ao laboratório bem cedo, tendo dormido mais ou menos metade do tempo que dedicariam ao repouso normalmente. (Desagradável, é claro, mas a ideia era aumentar as chances de que eles conseguissem pegar no sono no ambiente estranho da universidade.)
A proposta da equipe era testar como o sono e os sonhos transformam as memórias despertas. Para avaliar isso, o primeiro passo foi mostrar para os voluntários uma imagem, que poderia ser emocionalmente positiva (crianças sorrindo, por exemplo), neutra (um caminhão, um guarda-chuva) ou negativa (um tubarão de dentes arreganhados, uma pessoa decapitada). Ainda acordada, a pessoa tinha de gravar um áudio descrevendo o que tinha visto e também dizer como a imagem a afetava emocionalmente.
Passo seguinte: dormir —enquanto a atividade cerebral de cada participante era monitorada via EEG (eletroencefalograma). Infelizmente, o grupo não teve muita chance de descansar, porque o EEG dizia aos pesquisadores quando acontecia uma transição para diferentes fases do sono. Nos momentos de mudança de fase, um bipe acordava os pobres voluntários, e eles tinham de relatar o que estavam vendo e sentindo em seus sonhos, o que foi comparado, é claro, com os relatos despertos, com a ajuda de técnicas de análise linguística automatizada.
Pois bem: o trabalho mostrou, em primeiro lugar, que as imagens vistas antes de dormir de fato passam a fazer parte da trama dos sonhos —e, conforme o sono progride, elas aparecem até com mais frequência nos relatos das pessoas.
Entretanto, o impacto emocional decai ao longo do sono, em vez de aumentar —e isso começa a acontecer assim que a pessoa adormece.
"Uma das funções dos sonhos seria processar emoções", explica Natália Mota. "Seria análogo a um processo de digestão: para processar alimentos, dissociamos nutrientes de toxinas, retendo os primeiros e eliminando o resto. No caso dos sonhos, o que retemos é a memória sobre os eventos, dissociando dela o excesso de conteúdo emocional, que seria tóxico para o aprendizado."
Segundo Sidarta Ribeiro, pesadelos recorrentes poderiam ser resultado de traumas que sobrecarregam esse sistema. É algo que os pesquisadores querem investigar analisando estruturas específicas do cérebro dos sonhadores.
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