quinta-feira, 10 de novembro de 2022

'Armageddon Time' reflete hipocrisia dos EUA de Trump e do Brasil de Bolsonaro, FSP

 Leonardo Sanchez

SÃO PAULO

Um país que vive sob um clima de desconforto latente, habitado por uma classe média que não se reconhece como parte dos problemas e uma elite indiferente a eles, com uma disputa presidencial polarizada que dá vazão a pensamentos repletos de preconceito e no qual narrativas farsescas orientam a opinião pública.

Banks Repeta e Anthony Hopkins em cena do filme "Armageddon Time", de James Gray
Banks Repeta e Anthony Hopkins em cena do filme "Armageddon Time", de James Gray - Anne Joyce/Divulgação

Parece o Brasil de 2022, mas são os Estados Unidos de 1980, cenário do novo filme de James Gray, "Armageddon Time"Exibido no último Festival de Cannes e na Mostra de Cinema de São Paulo, o título está cotado para algumas das principais categorias do próximo Oscar e chega agora aos cinemas brasileiros um tanto perdido no espaço-tempo.

Se por um lado o longa se esforça para capturar com fidelidade a virada do país para o conservadorismo implacável de Ronald Reagan, que saiu das eleições daquele ano como presidente, por outro deixa óbvia sua pretensão de também cutucar a ascensão direitista pela qual passou o mundo e, mais especificamente, os Estados Unidos sob Trump.

"Foi por isso que quis fazer esse filme. Olhei para ele e pensei que nada mudou. Se você estudar os Estados Unidos daquela época vai ver muita coisa que está acontecendo hoje", diz Rodrigo Teixeira, que produz "Armageddon Time" e fez do filme um tiquinho brasileiro.

"As pessoas associam o Reagan ao presidente que pôs fim à Guerra Fria, que venceu a União Soviética. Hoje ninguém lembra que, quando ele foi eleito, muita gente foi tomada por um medo absurdo. Foi como a reação que houve agora com o Trump, com a diferença de que ele era ator e tinha um carisma maior. Por isso estamos num momento muito propício para lançar o filme."

Teixeira já produziu outro longa de Gray, "Ad Astra: Rumo às Estrelas". Tem ainda no currículo nacionais como "A Vida Invisível" e "Alemão" e estrangeiros como "A Bruxa" e "Me Chame pelo Seu Nome".

Carioca, ele foi à estreia de "Armageddon Time" na Mostra de Cinema de São Paulo com um adesivo pró-Lula colado no peito, três anos após dizer que o cinema brasileiro ia ter que dialogar com Bolsonaro e, depois, perceber que o diálogo era improvável.

Rodrigo Teixeira em exibição do filme "Armageddon Time" na Mostra de Cinema de São Paulo - Mathilde Missioneiro/Folhapress

"Eu vejo muito eco entre o Brasil de hoje e o período em que o filme se passa. É curioso ver como o Brasil foi se assemelhar a situações que a gente abomina em outros lugares, como o que houve na Alemanha na Segunda Guerra. Então, temos que fazer arte para ensinar também. Vem muita arte boa agora, para ensinar quem desaprendeu algumas coisas nos últimos quatro anos, a quem precisa lembrar de ser mais tolerante e de respeitar a verdade."

"Armageddon Time" é mais um exemplar na safra de autobiografias que têm saído do cinema recentemente –como "Belfast", de Kenneth Branagh"Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades", de Alejandro González Iñárritu, e "The Fabelmans", de Steven Spielberg.

Nele, Gray revisita sua infância, misturando realidade e ficção para tecer um retrato do que foi crescer na Nova York da virada dos anos 1970 para os 1980. Vemos um alter-ego do cineasta na figura de Paul Graff, um menino de 12 anos de origem judaica que se torna amigo de um garoto negro chamado Johnny, que repetiu na escola e foi parar em sua turma.

Surge daí um contraste entre o lar do primeiro –estável e monótono, de uma classe média inegavelmente americana– e o do segundo, que vem de uma família que enfrenta problemas enraizados no racismo estrutural. Certo dia, a dupla é pega fumando maconha no banheiro da escola e Paul, além de levar uma surra do pai, acaba parando num colégio de elite onde o rigor dos ternos e gravatas denuncia a inquebrável disciplina.

É com hipocrisia escancarada que os pais do protagonista, vividos por Anne Hathaway e Jeremy Strong, se referem à amizade dele com Johnny. Sugerem que a negritude do menino o credencia para a marginalidade e que, portanto, ele é uma má influência para o filho –de uma insolência que, aos seus olhos, nada tem a ver com a criação que lhe foi dada.

Ao mesmo tempo, fazem cara de choro e frustração diante do noticiário, questionando onde é que o país vai parar agora que elegeu um radical como Reagan, se as pessoas não têm compaixão, se não há fim para o preconceito.

"Eu lembro da minha mãe dizendo constantemente que haveria uma guerra nuclear após a vitória do Reagan. Havia um sentimento de um armagedom se aproximando na minha casa", disse Gray sobre sua infância, em conversa com a imprensa durante o Festival de Cannes.

Anne Hathaway, Banks Repeta, James Gray, Jaylin Webb e Jeremy Strong posam para fotos no Festival de Cannes - Eric Gaillard/Reuters

"A história é muito complexa e tem muitas camadas, mas há momentos de mudanças de paradigma, para o bem ou para o mal. Foi nesse período da história, por exemplo, que a desigualdade social se alastrou, e nós subestimamos essa virada da década enquanto ponto de inflexão."

Nesse debate mordaz entre negros e brancos, ricos e pobres, cristãos e judeus, "Armageddon Time" encontra espaço para mostrar em cena a família Trump. No novo colégio, Paul conhece um grupo de almofadinhas que tem como passatempo disparar ofensas a minorias e, num evento, assiste a um discurso do pai de Donald.

A irmã do ex-presidente, Maryanne, sobe também ao palco e diz se orgulhar de ter alcançado o sucesso por esforço próprio, não com "apertos de mão". Em meio a tantos debates sobre meritocracia hoje, a fala parece tirada do dia a dia, não de um filme ambientado há quatro décadas.

Quem se opõe ao discurso elitista escancarado, nesse caso, e velado, no caso dos pais de Paul, é curiosamente o mais velho dos personagens em cena. O avô do menino, papel de Anthony Hopkins, fala para ele sobre a importância de não esquecer de onde veio e de sonhar –em ser artista, no caso.

Numa conversa emotiva, conta ainda sobre a perseguição que seus antepassados sofreram por serem judeus, sobre a fuga da Europa totalitária para um ideal de "América" que parece desfalecer diante de seus olhos.

Se o ciclo que o espectador de "Armageddon Time" vê é o do hoje repetindo os anos 1980, o que os personagens veem é o dos anos 1980 repetindo a Segunda Guerra Mundial.

Carregando um discurso historicamente comovente para a turma de Hollywood, em tempos como os de hoje e com atuações que competem por atenção em cena, "Armageddon Time" já é ventilado como um dos possíveis indicados ao Oscar do ano que vem. Teixeira conta que a campanha está a todo o vapor, em especial para as categorias de filme, roteiro original e ator e atriz coadjuvantes, para Strong e Hathaway, nesta ordem.

Se Teixeira já bateu na trave com "Me Chame pelo Seu Nome", Gray parece estar, a cada projeto que assina, à espreita da estatueta dourada. Ele nunca foi indicado, apesar de "Ad Astra", "Era Uma Vez em Nova York" e tantos outros terem caído no burburinho pré-Oscar. Só na mostra competitiva de Cannes ele já esteve cinco vezes, mas saiu sempre de mãos vazias.

O produtor carioca acha que essa história pode mudar em breve e, em Cannes, ouviu o mesmo de Michael Barker, presidente da Sony Classics, que esteve ao seu lado na campanha de prêmios de "Me Chame pelo Seu Nome" e que profetizou que, da Riviera Francesa, "Armageddon Time" sairia sem nada –mas que não podia dizer o mesmo sobre o Oscar.

ARMAGEDDON TIME

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