Em "A Terra É Plana", doc da Netflix, acompanhamos os zuretas que creem num complô global —ops, planal?— para nos convencer de que a pizza na qual vivemos é uma esfera. Demora poucos minutos pra sacar que o formato da Terra não é o que une aquele povo: é o clubinho. Poderiam estar afirmando que os pescoços das girafas são giroscópios de gnomos estomacais da savana —o que salta aos olhos ali é o júbilo do pertencimento.
Poucas agremiações oferecem mais pertencimento do que a das teorias conspiratórias. De uma hora pra outra o peão, que vê o outdoor do Land Rover pela janela do trem, indo para um trabalho que não lhe traz prazer nem sentido, passa a fazer parte do seleto grupo detentor do maior segredo da Terra (plana). O peão agora sabe da grande verdade que o rei, a rainha, o bispo, o cavalo, a torre, o George Soros e o filho do Lula escondiam.
O Zé Ninguém sai de uma realidade complexa que não entende, larga a sucessão vertiginosa de mudanças em que a família tradicional convive com infinitas possibilidades, em que o vinil dá lugar ao CD, que dá lugar ao iPod, que dá lugar ao Spotify —que dará lugar a quê?— e se agarra a uma teoria que organiza tudo. É absurda? É. Mas é simples e lhe confere um assento VIP no centro da Terra plana. Na Terra redonda ele era só mais um, de pé, espremido no vagão.
"A Terra É Plana" ajuda a entender como o pior presidente da história do Brasil, um facínora que deixou quase 700 mil mortos na pandemia, 33 milhões de famintos, a Amazônia e o Pantanal em chamas, perdeu só por 2 milhões de votos. Tá, os bilhões de reais despejados ilegalmente nas mãos de milhões de eleitores nos meses anteriores às eleições certamente tiveram um papel, mas diante da caçamba de entulhos em que Jair transformou o país, não dá pra explicar a votação puxando a já batida frase do assessor do Bill Clinton: "É a economia, estúpido". Foi o contrário. Apesar do desastre econômico (e social e político e ecológico etc) a besta quase ganhou.
Você, que não é de extrema direita, já foi a uma passeata dos amarelos? Tem assistido no celular aos vídeos das manifestações golpistas? Esqueça os objetivos e os argumentos, concentre-se nas pessoas. Elas estão motivadas. Eufóricas. Sentem-se parte de uma onda verde e amarela que irá levar embora as forças do mal. Não importa que "o comunismo" ou "a ideologia de gênero" ou a "mamadeira de piroca" sejam tão reais quanto a Terra plana. O bolsonarismo não é um conjunto de ideias, é um estado de espírito.
Aos trancos e barrancos, vencemos. Agora é hora de nos perguntarmos: como é que não conseguimos transformar numa narrativa empolgante o combate à pobreza, saúde e educação para todos, a liberdade de cada um viver como bem entender ou salvar o mundo do apocalipse climático? A mensagem que todos os que lutam contra os autocratas (não só na esquerda) têm para oferecer é ouro, é o que Hollywood vendeu nos últimos cem anos, de "O Garoto", do Chaplin, a "Toy Story 4". Mas em vez de nos colocarmos como Luke Skywalker contra Darth Vader, fizemos ciranda, jogral, tiramos foto de livro e pusemos o dedo na cara de quem tínhamos que conquistar.
Não resgataremos os votos da extrema direita com argumentos, muito menos exibindo nossa suposta superioridade moral ou intelectual. Precisamos empolgar as pessoas, fazer com que se sintam possíveis jedis, nas naves da Aliança Rebelde, ao lado de Luke e Han Solo, lutando contra a Estrela da Morte. Que a Força esteja conosco.
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