domingo, 20 de novembro de 2022

Depois de devastarem a Terra, humanos sonham com Lua e Marte, Marcelo Leite, FSP

 Três acontecimentos de impacto mundial ocorrem por estes dias: a missão não tripulada Artemis na Lua, a Copa do Mundo no Qatar e a COP27 no Egito. Só os dois primeiros com certeza de um desfecho memorável.

A Lua e a Copa ocupam na memória pessoal lugar inseparável de Ubatuba, no litoral norte paulista. Em 19 de julho de 1966, o jogo contra Portugal que tirou a seleção do torneio foi acompanhado com radinho de pilha sob uma amendoeira na praia do Itaguá.

Em 20 de julho de 1969, o pequeno passo de Neil Armstrong sobre o solo lunar foi um salto gigantesco para a humanidade também no que se refere à tecnologia de comunicação. Com transmissão ao vivo, comandou a atenção de milhões sobre a face da Terra.

Lançamento da missão Artemis 1, em Cabo Canaveral, na Flórida (EUA)
Lançamento da missão Artemis 1, em Cabo Canaveral, na Flórida (EUA) - Joe Rimkus Jr. - 16.nov.22/Reuters

Não que tenha dado para ver muita coisa. Foi difícil encontrar um vizinho com um aparelho de TV no Itaguá, e a tela mostrava, em preto e branco, mais chuvisco do que uma imagem de qualidade compatível com a dimensão épica do evento.

Bastou, contudo, para incendiar a mente das crianças. O interesse por ciências, engenharia, astronáutica etc. se revelava nos desenhos obsessivos da Apollo 11 e da Lotus de Jim Clark. Ao menos uma manteve o entusiasmo até tornar-se jornalista de ciência.

Não o bastante, porém, para celebrar com gosto a retomada da epopeia lunar pela Artemis, gêmea selenita do solar Apolo. A Terra se tornou um planeta sombrio, sob a ameaça do aquecimento global, que pôs em evidência não existir solução tecnológica no século 21 para a poluição climática legada por uma tecnologia do século 19.

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Cada Artemis torra em poucos dias US$ 4 bilhões. Só na terceira empreitada, se tudo der certo, dois astronautas porão os pés na poeira lunar. Ou seja, US$ 12 bilhões para fincar a ponta de lança que um dia poderá tornar-se uma base lunar permanente, um entreposto para o voo mais ambicioso até Marte.

Só nesse começo a Nasa estaria investindo o equivalente a R$ 65 bilhões. É mais ou menos o rombo no orçamento brasileiro deixado só pela ampliação eleitoreira do Auxílio Brasil.

Nada contra uma renda mínima para quem precisa, ao contrário. Mais crianças estarão bem alimentadas e com desenvolvimento cerebral compatível com tornar-se engenheiro, cientista, médico ou astronauta, na esteira de Artemis.

Por outro lado, os Estados Unidos empenharem US$ 12 bilhões nessa demonstração de força tecnológica, para não ficar atrás da China, tem algo de deprimente. Em particular quando se toma em conta o contraste de tamanha prodigalidade com os negaceios de países ricos na COP27.

O número na abreviação da conferência ministerial da convenção da ONU sobre mudança climática já diz muito: é a 27ª do gênero. Mais de um quarto de século em que a negociação internacional pouco avançou, certamente quase nada se o parâmetro for aquilo que precisaria ter sido feito.

Desde a Cúpula da Terra no Rio, em 1992, quando se aprovou o tratado do clima, já se foram 30 anos. Há muito as nações desenvolvidas se comprometeram com doar US$ 100 bilhões anuais —promessa jamais cumprida— para compensar as regiões mais ameaçadas, mais pobres e menos responsáveis pela poluição climática.

O debate diplomático sobre perdas e danos continuou estagnado no Egito. Até o teto objetivo de aquecimento indicado pela ciência, 1,5ºC, um indicativo de Paris (2015) referendado em Glasgow (2021), esteve sob risco em Sharm el-Sheik.

Coordenar governos da Terra para enfrentar essa ameaça existencial para a humanidade tem sido mais difícil que humanos caminharem na Lua. Há mulheres e homens com poder de resolver a crise climática, mas incapazes de dar os passos necessários, que a cada ano se tornam saltos mais e mais gigantescos.


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