1. As notícias da morte de Donald Trump foram manifestamente exageradas. É a primeira conclusão no dia em que os americanos votam nas midterms.
Depois de perder as presidenciais em 2020 e de ter galvanizado as tropas para a espantosa invasão do Capitólio, eis que o velho Donald pode retomar a controle do Congresso com mini-Trumps feitos à sua imagem e semelhança.
O Donald, lógico, espera por bons resultados para anunciar a sua candidatura para 2024.
Existem duas formas de explicar o fenômeno. A primeira, cultivada pela sabedoria instalada, é afirmar que metade da América é racista, fascista e homofóbica —e sentir aquele prazer intelectual que é muito comum nas pessoas que só pensam com metade do cérebro.
A outra é procurar razões para a sobrevivência do trumpismo usando o cérebro todo.
É isso que faz Ruy Teixeira na revista (de esquerda) Atlantic. Ponto prévio: Teixeira é um dos raros cientistas políticos americanos que, em matérias eleitorais, eu leio com atenção.
Tese dele: os democratas afastam-se irremediavelmente da sua base tradicional —a classe trabalhadora branca, mas não só branca: os hispânicos também saltam do barco— e optam por temas que só satisfazem as elites culturais e acadêmicas.
Nas eleições de hoje, elegeram o aborto (são a favor), as armas (contra) e a defesa da democracia (contra Trump), mas as preocupações da maioria estão na economia, na inflação e no crime.
Os democratas pagaram caro esse descaso em 2016 e corrigiram a soberba em 2018, nas midterms daquele ano: Teixeira demonstra que a vitória da esquerda na Câmara dos Representantes se deveu a uma recuperação do voto entre os trabalhadores rurais, descontentes com as falsas promessas de Trump e finalmente escutados pelos democratas moderados.
Essa tendência se manteve nas eleições presidenciais de 2020, garantindo vitórias decisivas em Michigan, na Pensilvânia e no Wisconsin —e surpresas no Arizona e na Geórgia. Mas foram vitórias tangenciais, relembra Teixeira, facilmente reversíveis em época de crise.
A crise chegou e, perante ela, os democratas retornam ao lugar do crime —a retórica sobre "o cesto dos deploráveis", que tão bons resultados deu com a nossa Hillary —deixando os temas relevantes para a direita trumpista.
Como se dizia dos antigos Bourbons, não esqueceram nada e não aprenderam nada.
2. Sou o Zelig dos sotaques. Sim, Zelig, aquele personagem de Woody Allen que mudava a sua fisionomia dependendo das companhias. Como se fosse um camaleão humano.
Foi minha mulher quem detectou o problema quando eu recebia um entregador da Uber Eats. O rapaz era indiano. Eu falava inglês com ele, mas com sotaque indiano. Fazia lembrar Apu, o desenho animado dos "Simpsons".
Não era a primeira vez. Com estafetas brasileiros, o mesmo problema: eu, falando a língua de Camões, mas com ligeiro sotaque carioca.
Isso é ofensivo, disse ela, que desconfiava de intenções malévolas. Defendi-me com vigor: era apenas para ser bem compreendido, nunca para ofender.
Mas depois meditei. Não é apenas com sotaques estrangeiros que meu Zelig gutural se manifesta. Em Portugal, é a mesma coisa, dependendo da geografia. No Alentejo, falo como um alentejano. Em Lisboa, como um lisboeta. Até nos Açores falo como um açoriano, o que não deixa de ser um feito digno de medalha olímpica.
Não sei o que diria um psicanalista deste distúrbio. Mas desconfio que meu mimetismo é produto de uma simpatia doentia. Terei cura?
Pergunta errada. A pergunta certa é saber se não haverá no meu caso uma base genética a ser estudada pela ciência. A falta de empatia pode ser tão letal como a ansiedade e a depressão, sobretudo em tempos de polarização política.
Agora imaginemos o milagre: um comprimido que permitisse a qualquer pessoa mimetizar as ideias reaças ou esquerdistas daquele membro da família que se tornou insuportável nos almoços de domingo.
Antes do repasto, você tomava uma dose. Depois, durante quatro horas, poderia falar as mesmas besteiras que ele. Sem esforço e até com alegria.
Passado o efeito, você regressava à sua condição normal, já em casa, longe daquele tio ou primo.
Quantas famílias não seriam salvas com uma pequena ajuda da indústria farmacêutica?
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