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Fundador do PT e um dos amigos mais próximos de Lula, o filósofo e cientista político Gilberto Carvalho se tornou conhecido por seu papel de articulador entre os movimentos sociais e a sociedade civil organizada nos governos Lula e Dilma. Ex-ministro de ambos, Gilberto diz que está acompanhando Lula no processo de transição, mas jura que não vai para o novo governo “embora seja uma tentação enorme”; ele diz que prefere atuar como interface entre o PT e o governo no projeto que considera o mais importante do momento: a educação popular, nos moldes de Paulo Freire, para estimular a participação social das parcelas não organizadas da população.
“O governo Lula foi um governo poroso, que se abriu para a sociedade, mas a participação social foi limitada porque atendeu a uma elite, à sociedade organizada, com consciência e experiência de organização. Nós não conseguimos dialogar com a grande massa.” Para ele, os protestos de 2013 e “a ausência de gente para defender o nosso projeto diante do impeachment” demonstram, “que a inclusão foi econômica, bem feita, meritória, mas não houve a inclusão cidadã”, diz.
Uma preocupação ainda mais relevante quando “a cara da sociedade brasileira se divide entre os que elegem Lula e os que elegeram a Damares, o Magno Malta, a Zambelli. A gente acha risível o que eles estão fazendo [os protestos contra o resultado das eleições] mas que é um sinal do que vem pela frente. Bolsonaro sai como um líder popular de direita. O que não acontecia há muito tempo no Brasil. Um líder de direita que é popular, que fala como Lula a linguagem popular, tem hábitos populares na loucura dele e tudo”, diz.
Para o diretor da Escola Nacional de Formação do PT, o partido envelheceu e perdeu contato com as periferias hoje “ocupadas pelo tráfico, pela milícia e pelos neopentecostais”. “Não é mais o mundo do ABC, do movimento sindical, da carteira assinada, é o mundo da informalidade, desse salto de comunicação que a Internet trouxe, como é que nós vamos pensar essa participação?”
É com esse público, especialmente com os evangélicos, que a esquerda tem que aprender a dialogar, diz. “Durante a campanha, o Lula resistiu muito a essa ideia de que tinha que se comunicar especificamente com esse grupo. Ele dizia: ‘eu sou candidato de todos, eu vou falar pra todos. Porque o evangélico também é operário, dona de casa, estudante’. A mudança veio no final do segundo turno, com a carta aos evangélicos, mas sempre com resistência de Lula.
“Aquela carta foi um parto, ele não queria. Teve uma tarde que uma senadora do Maranhão, a Eliziane Gama, o enfrentou e disse: ‘O senhor não pode por causa de um capricho pôr a perder uma eleição. Porque eu sou crente e estou vendo o que está acontecendo’. Aí ele acabou cedendo. “ O Lula tem uma fé pessoal muito fundada, herança da mãe, dona Lindu, mas ele tem um pudor ético muito grande em usar a fé como elemento eleitoreiro. Ele falava pra gente: ‘Eu não ponho o pé numa igreja numa campanha eleitoral’. Ele não quer se aproveitar da fé do povo, é muito bonito, mas ao mesmo tempo ele radicaliza isso e não leva em conta no que se transformou o Brasil”.
Para Gilberto, sem esse diálogo com os evangélicos e um projeto sólido de educação popular – o que inclui também um novo projeto de comunicação – “o risco de repetir 2013, e 2016 sobretudo, está dado”. Confira a entrevista.
Como o governo Lula está tratando da articulação com os movimentos sociais, com a sociedade civil, com a reconstrução dos conselhos com a participação da sociedade civil?
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Já fizemos a reunião com os sindicalistas e, depois do Egito, Lula quer fazer uma reunião com os movimentos sociais, o que denota claramente a vontade dele de fazer um governo com forte participação social. Se já era importante esse tema antes, agora eu diria que ele é essencial, dramaticamente importante. Porque em 2003 quando a gente assume, você tem uma herança do PSDB, e por tradição nossa, fizemos um governo de importante participação social. O Lula se orgulha muito disso, ele sempre fala das 113 conferências, dos conselhos que nós revitalizamos ou criamos, ele fala das negociações coletivas, das audiências públicas para todos os temas mais importantes e do fato do Palácio ter tido uma porta aberta. Assim que a gente chega a Brasília ele dá uma ordem: ‘esse Palácio não pode dispensar ninguém que vier aqui sem um atendimento. Se vier elogiar, é bem vindo, se vier demandar vamos ouvir, se vier xingar vamos ouvir’. Na época eu era chefe de gabinete e nós criamos uma equipe de recepção das pessoas na porta do Palácio. Para ali vai de tudo. Vai desde grandes movimentações para protestar, até ameaçando invadir, até pessoas que vem celebrar, pedir. Então foi um governo poroso, um governo que se abriu para a sociedade. Agora foi limitada essa participação porque atendeu a uma elite da sociedade organizada, a elite de consciência, de experiência de organização, de movimentos sociais em geral. Nós não conseguimos dialogar com a grande massa. Naquele período, aparentemente, isso não fez muita falta. Porque a abundância das conquistas econômicas – aumento do salário mínimo, salário mínimo para os idosos, Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família – atendeu a uma grande demanda e houve uma satisfação da sociedade. Tanto que ele sai com aquela aprovação absurda de 87%. Mas essa ausência de uma comunicação com a grande massa se revela quando bate a crise.
Fernando Frazão/Agência Brasil
Eleitores do PT comemoram vitória de Lula
Os protestos de 2013?
Sim, em 2013, quando com inspiração e financiamento dos americanos, surge MBL, Vem pra Rua, aquela coisa toda. Aquela massa que foi beneficiada, perde com muita facilidade, passa para o outro lado, porque ela não tinha consciência. Não tinha uma leitura da realidade que pudesse distinguir as coisas. E aquele povo que nós tiramos da miséria, da pobreza, que de alguma forma passa a ter hábitos de uma classe média baixa, já imediatamente absorve os valores dessa classe média: o individualismo, o apreço à violência contra o outro, o sexismo, o desprezo pelo pobre, aquela coisa típica da classe média que agora está amarelada pelo país afora. A ausência de gente para defender o nosso projeto diante do impeachment foi outra demonstração que a inclusão foi econômica, bem feita, meritória, mas não houve a inclusão cidadã. As pessoas foram presas fáceis dessa mentalidade e de outro fenômeno que cresceu exponencialmente, também no nosso tempo, que são as religiões neopentecostais, que ocuparam o espaço de uma parte importantíssima da periferia do Brasil.
E como dialogar com essa população agora com a radicalização do bolsonarismo e a desconfiança em relação ao PT?
Nós temos que repensar o conceito de participação. Temos que ir além do que chamo de elite, a sociedade organizada, dialogar com outra massa, evidentemente muitíssimo mais numerosa, que não tem a cultura de participação mas que se organiza de alguma forma. Eu estou falando aqui da juventude, você viu que maravilha foi agora a participação deles nessa campanha. A pergunta que nós temos que nos fazer é: essa energia maravilhosa que brotou nessa campanha ela vai ser desperdiçada? Ela vai se perder quando voltar para o cotidiano ou nós vamos conseguir transformá-la numa força capaz de movimentar uma turbina, impulsionar o avanço do país? Qual é a forma de nos comunicarmos com os evangélicos, que pode abrir uma cunha para a gente ter pelo menos um setor aliado? Porque hoje a periferia do Brasil não está mais ocupada pelas CEBs (comunidades eclesiais de base, ligadas à Igreja Católica progressista), nem pelas Pastorais. Ela está ocupada pelos neopentecostais, pelo tráfico e pela milícia. Não é mais o mundo do ABC, do movimento sindical, da carteira assinada, é o mundo da informalidade, desse salto de comunicação que a Internet trouxe, como é que nós vamos pensar essa participação?
Parece um salto grande também para um governo. Vocês tem alguns modelos estudados, de outros países, por exemplo?
Nós estamos pesquisando, tentando levantar, em termos de América Latina, a Espanha, que tem alguns avanços nessa área. Porque se nós não fizermos isso, o risco de repetir 2013, e 2016 sobretudo, está dado. O Brasil que sai da eleição não é um Brasil de cara boa. Porque 2 milhões [de votos de diferença] não é nada. Podia ter ido para o outro lado. Qualquer incidente que tivesse ocorrido, ou qualquer bobagem que o Bolsonaro tivesse deixado de fazer…Ele nos ajudou. Então a cara da sociedade brasileira se divide entre os que elegem Lula e os que elegeram a Damares, o Magno Malta, a Zambelli. A gente acha risível o que eles estão fazendo [os protestos contra o resultado das eleições] mas que é um sinal do que vem pela frente. Bolsonaro sai como um líder popular de direita. O que não acontecia há muito tempo no Brasil. Um líder de direita que é popular, que fala como Lula a linguagem popular, tem hábitos populares na loucura dele e tudo.
Você acha que isso já está sendo levado em consideração durante essa transição de governo?
Levar em consideração até que é fácil, o difícil é dar consequência a isso.
Não se trata apenas de retomar a participação civil, portanto, o que já parece uma tarefa e tanto.
Essa retomada, felizmente, a gente faz com o pé nas costas. Tem movimentos que dão conta disso. Nós lançamos a ideia dos comitês populares que também vão nessa perspectiva.
Como funcionam os comitês populares?
A ideia é criar células – já foram criadas, mas queremos criar muitas – células por bairro que procurem organizar a população, mais ou menos como eram as comunidades eclesiais de base, só que sem o caráter religioso. É você criar um ambiente familiar em pequenos grupos pra olhar a realidade, analisar a realidade, no velho método do Paulo Freire: educação a partir da luta e da vida política. A gente começou isso em vários estados, pegou muito na campanha, fazia os vira-votos, fazia as conversas com o povo. Mas é um número muito pequeno ainda frente à necessidade. A ideia é que esses comitês se articulem com a sociedade organizada, mas nós temos que entrar dentro da cultura popular para buscar formas de também seduzir e atrair e conseguir organizar essa juventude e toda essa gente que não se adequa ao nosso modo tradicional de fazer política. Nós vamos ter que dar tratos à bola.
E quem está pensando nisso, Gilberto? É uma tarefa mais do governo ou do PT?
Mistura-se, aí é que está. E é nossa tarefa identificar o que é governo e o que é sociedade. No governo passado nós tivemos um pequeno núcleo chamado Recid – Rede de Educação Cidadã, que funcionava dentro da Secretaria Geral da Presidência onde eu estava. E ele fazia um trabalho interessante, de ir nas pontas, juntar as pessoas, nós tínhamos 50 pessoas liberadas no Brasil todo para fazer trabalho e educação popular. Funciona assim: você vai inaugurar um “Minha Casa, Minha Vida”. Então você vai lá para conscientizar as pessoas, de onde estava vindo aquele dinheiro, porque aquele dinheiro estava indo pra ele e não para uma grande empresa ou para pagar dívida, fazer uma formação de consciência de classe. Nós queríamos ampliar isso. O Lula está muito interessado, mais do que antes.
Na sua opinião, o Lula ficou mais próximo dos movimentos sociais depois das vigílias em Curitiba, quando ele estava preso?
Isso teve muito impacto nele. A prisão ajudou o Lula a entender quem são os amigos verdadeiros, os que são aliados táticos, estratégicos, os oportunistas. Ele sabe muito bem, isso é coisa dele, quem ligou e quem não ligou pra saber dele nesse tempo.
E agora os movimentos sociais participam da transição, né? O MST, o MTST, os movimentos por saúde, educação, meio ambiente e o pessoal da memória e verdade, que ficou bem esquecido nesse período.
Sim, voltam, todos vão participar. E os movimentos ambientais agora com muito mais força. Tem outro aspecto do amadurecimento do Lula e do nosso projeto. Em relação ao modelo de desenvolvimento, a cabeça do Lula era uma em 2003 e outra agora. Agora ele leva mais em conta essa questão do equilíbrio, de uma visão mais holística. Eu diria que o conflito que ele teve com a Marina [Silva, ex-ministra do meio ambiente] será muito menor agora.
Rovena Rosa/Agência Brasil
Presidente Lula após o primeiro discurso
O Lula também anunciou a criação do ministério de Assuntos Indígenas, já se falou em secretaria dos assuntos religiosos, vocês estão pensando em criar novas estruturas que atendam essa demanda social? Vai voltar, por exemplo, um Ministério de Direitos Humanos? Mulheres e Igualdade Racial terão sua própria estrutura?
É um tema que ainda não está muito bem amarrado. O que eu posso lhe dizer com certeza é que Ministério da Mulher, do Negro, Direitos Humanos terão unidades próprias. Assim como esse ministério que estamos chamando de Povos Originários, em que o Lula quer incluir, além dos indígenas, os quilombolas, os ribeirinhos, os povos da floresta. E essa questão dos Assuntos Religiosos que você citou nós temos que amadurecer mais. Há países, como o México, que tem o Departamento de Religiões. Sabemos que esse é um tema que precisamos dar atenção, mas não sei se é o caso de um ministério. Na antiga Secretaria dos Direitos Humanos, por exemplo, tinha uma secretaria de diversidade religiosa. E, de fato, nós temos que encarar de frente esse fenômeno, não apenas da intolerância, mas também de encontrar um espaço de diálogo com as neopentecostais. Nós não podemos mais subestimar ou ignorar como fizemos. Durante a campanha, o Lula resistiu muito a essa ideia de que tinha que se comunicar especificamente com esse grupo. Ele dizia: eu sou candidato de todos, eu vou falar pra todos. Por que o evangélico também é operário, dona de casa, estudante. Mas aí no segundo turno, quando uma parte dessas lideranças jogou pesado, ameaçando desequilibrar a disputa…
Aí veio aquela carta aos evangélicos…
Aquela carta foi um parto, ele não queria. Teve uma tarde que uma senadora do Maranhão, a Eliziane Gama, o enfrentou e disse: “O senhor não pode por causa de um capricho pôr a perder uma eleição. Porque eu sou crente e estou vendo o que está acontecendo”. Aí ele acabou cedendo, disse pra ela: “então você faz a carta”. Aí fizemos: eu, Eliziane, Marina ajudou muito, e um grupo de pastores, e ele concordou em assinar mas não queria fazer o lançamento da carta. A gente montou o ato à revelia e eu avisei ele na noite da véspera: “Olha vão ter 200 pastores no ato”. Ele reclamou mas acabou indo (risos). E foi importante. Eu conto essa história meio anedótica para dizer o seguinte: a esquerda passou a ignorar a periferia, essa que é a questão importante. Nós fomos perdendo a periferia à medida que aliados fortes, que nos puxavam para a periferia, foram se fragilizando: as comunidades eclesiásticas, os movimentos de base.
E o próprio partido, não?
O partido, sobretudo. Nós fomos nos burocratizando, dando ênfase ao trabalho institucional achando que governando a gente muda o país. Isso não é verdade. O que muda pra valer é a luta na rua, é a briga por direitos. E os evangélicos foram ocupando esse espaço, de forma admirável, competente, a ponto de serem muitas vezes o único recurso que o pobre tem pra ter um nome, pra ser reconhecido, botar uma roupinha nova, pra receber uma cesta básica, um consolo, tirar o pai da cachaça, o jovem da droga. Como é que você vai contra um negócio deste?
Mas o PT, mesmo o Lula, já teve uma proximidade com lideranças de igrejas neopentecostais no passado. O que mudou?
Mas é um equívoco. A gente fazia uma aproximação por cima. Quando a gente estava no Estado, interessava a eles ter essa relação. Quando a barca vira, eles pulam pro outro lado. Mas com a base nós não tínhamos contato. Quer dizer, havia algum contato. Em 2020, nós tivemos 20 mil candidatos a vereador no país e 2 mil e pouco eram evangélicos. Então tem uma certa presença, mas não é uma presença pra valer. E aí tem que entender uma coisa: os movimentos sociais, MAB, MST, tiveram origem e foram fortemente estimulados pelo trabalho de base da Igreja progressista. Quando o papa João Paulo II faz aquele trágico acordo com o [Ronald] Reagan e passam a perseguir a Teologia da Libertação, eles sabiam o que estavam fazendo, os americanos. Eles cortaram uma fonte dos movimentos sociais de toda a América Latina e ao mesmo tempo mandaram os neopentecostais para cá. De tal sorte que agora, o jogo se inverteu: a fonte da direita popular também é a igreja mas uma outra igreja. O desafio que se coloca para nós é o seguinte: qual é a possibilidade de fazer surgir, estimular, no meio evangélico, correntes progressistas? Quando a gente mostra que a nossa proposta tem muito a ver com o evangelho – justiça, fraternidade, solidariedade. O Bolsonaro não tem nada a ver com esses valores. Essa é a contradição: a direita é anti evangélica. Essa aproximação que houve entre eles é de puro oportunismo. As cúpulas ganharam muito recurso, muita isenção tributária, muita licença pra rádio e televisão, e passaram a ter acesso direto ao Palácio, o que é muito importante pra eles.
Voltando um pouco aquela questão do Lula, porque ele não queria fazer um discurso específico para os evangélicos?
O Lula é uma pessoa curiosa sob muitos aspectos. Ele tem uma fé pessoal muito fundada, herança da mãe, dona Lindu, mas ele não tem uma fé comunitária, celebrativa. Ele respeita as igrejas, acha importante, mas ao mesmo tempo não está no coletivo. Além do mais, ele tem um pudor ético muito grande em usar a fé como elemento eleitoreiro. Ele falava pra gente: “Me convidem pra ir ao Círio [de Nazaré] à Aparecida [do Norte] mas fora da campanha eleitoral. Não me peçam que eu jamais vou. Eu não ponho o pé numa igreja numa campanha eleitoral”. Ele não quer se aproveitar da fé do povo, é muito bonito, mas ao mesmo tempo ele radicaliza isso e não leva em conta no que se transformou o Brasil.
Você acha que ele iria como presidente em uma Marcha para Jesus?
Jamais. E pra eles é importante. Você veja, o Bolsonaro não tem um comportamento de um cristão mas o fato de ele ir a uma igreja, de se batizar no Rio Jordão, falar em Deus toda hora, basta pra eles. Mas estou dizendo tudo isso para falar o seguinte: a nova participação social tem que contemplar esses aspectos. Se não, ela não é participação efetiva.
E esse trabalho de base que você vem falando não passa mais do que pelo governo por reavivar a militância do próprio partido pra fazer esse diálogo?
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Passa. Só que esse reavivamento não se faz num estalar de dedos. E o governo pode ser um estimulador. Eu não acho que o governo tem que ser um grande educador popular, mas ele pode induzir, estimular, constituir desafios que a militância se sinta chamada a construir. Mesma coisa vale para a comunicação, e já que estou na Pública, tenho que falar disso. A maneira como nos relacionamos com a imprensa, nos governos Lula e Dilma, foi um desastre. Tivemos uma política de submissão aos grandes meios, fizemos uma política republicana, entre aspas, da chamada mídia técnica. Onde ganhava verba quem tinha mais audiência. Nós congelamos – não estimulamos – o surgimento de novos meios, cooperativas de jornalismo. Demos muito dinheiro, muita licença para funcionamento dos meios, insisto, de forma submissa. Tanto nesse caso como na nomeação de ministros acho que em vez de ter consciência de classe nós tivemos complexo de classe. E vamos ter que mudar porque sem a comunicação você não consegue fazer educação em massa.
Mas já tem uma nova política de comunicação sendo pensada?
Ainda não discutimos isso no concreto como vai mudar isso. Lula verbaliza a necessidade dessa mudança. Claro que agora é outro mundo, porque a Internet passou a forçar uma democratização que não podemos ignorar. E sem a comunicação não temos condição de fazer uma educação de massa. Minha opinião: acho que temos que ser um governo ousado e lançar metas mobilizadoras. Por exemplo: por que não mobilizar os jovens universitários para um projeto de educação popular para combater o analfabetismo e o analfabetismo funcional, para fazer brigadas de trabalho nas periferias?
E a juventude do PT, vocês estão ouvindo? Eu me lembro que em 2013, eles se queixaram muito de que não foram ouvidos quando começaram as manifestações de junho. Você imagina um papel para eles nesse governo?
Nós nunca conseguimos resolver bem essa questão. Aparentemente tem uma contradição: quando você traz o jovem para dentro da estrutura partidária a tendência é ele envelhecer e entrar na lógica da burocratização. As juventudes que eu vejo que deram mais certo politicamente, foram as juventudes ligadas a movimentos. Como o pessoal do Levante, por exemplo. É uma outra pegada. A juventude do PT se queixa, com razão, mas ao mesmo tempo, salvo raras exceções, ela não consegue inovar, tomar iniciativas. Tem uma lógica da estrutura partidária que termina podando a juventude. E não quero responsabilizá-los por esse tipo de trabalho de massa que precisamos porque não seria justo. O país mudou muito. Pela primeira vez, além de um líder de direita popular, temos direita militante. A gente estava habituado a enfrentar uma direita que tinha máquina, comunicação e dinheiro.
Mas não a rua.
Exatamente. Nossas estruturas envelheceram perto do que acontece hoje. Se nós não conseguirmos ampliar a consciência, dialogar com a massa, o risco de uma conflagração é muito grande. O risco de Bolsonaro voltar, os boicotes. Então estamos inquietos e preocupados com isso. Não é que a gente não valorize a participação da sociedade organizada, pelo contrário. Vamos dinamizar esses canais e isso será muito importante. Mas não dá pra ficar nisso, tem que abranger, tem que massificar, tem que disputar a leitura da realidade.
E isso significa também um trabalho intenso nas redes sociais, certo?
Muito. Sem dúvida. A nossa escola (Escola de Formação Política do PT) tomou uma iniciativa de fazer uma plataforma de participação no programa de governo. Não foi uma coisa que teve muita repercussão, mas teve muita participação, muitas propostas chegaram. Há um desejo de participação e as redes são uma forma muito adequada, facilitam muito.
E quem está centralizando essa questão do diálogo com as massas, como você diz? Tem um grupo dentro do PT?
É uma questão que está brotando de muitos lados. Agora na transição vamos ter que montar um grupo específico para a participação social. E vamos ter que pedir para a sociedade nos orientar. Vamos precisar ouvir muita gente. Uma das coisas mais importantes que aconteceram na campanha, especialmente a partir da segunda semana do segundo turno, foram as chamadas atividades autogestionadas. Sem o partido participar e às vezes sem o partido local. Fabricando bandeirinhas, cartazes, se mobilizando para os vira votos. Isso ajudou muito a campanha. Uma das coisas. Claro que sem o Lula a gente não ganharia a eleição. Mas essa frente muito ampla que envolveu a sociedade, esse sentimento de que era preciso votar contra o Bolsonaro, mesmo que não fosse pelo Lula, e a militância foram muito importantes.
E como fica essa frente ampla no governo diante das demandas dos movimentos sociais, da militância, por um governo de esquerda?
É preciso ter clareza que não é um governo nem socialista nem do PT. É o governo de uma frente que se formou pra tirar o país da desgraça. E a partir de agora há que se fazer essa transição. Essa transição pode dar em uma Simone Tebet, num Alckmin em alguém mais à esquerda. Cada um deles representa uma linha. Aí tem uma disputa. Um embate que pode ser enriquecedor se a gente trabalhar respeitando o capital de ter um Alckmin, ter uma Simone. E ir construindo essa participação social para aprofundar o debate democrático. Olha, uma amiga de São Luiz do Maranhão me contava que, na campanha, ela e um grupo foram panfletar na feira e teve quatro donos de bancas que não aceitaram os panfletos. Eles tiveram a pachorra de esperar a feira esvaziar e foram conversar com os quatro. Um disse que não voltava no Lula porque era patrão e não peão, os outros três disseram coisas como “meu pastor me proibiu votar na esquerda, meu pastor disse que se eu votar no Lula vou ser excluído da Santa Ceia”. Um povo que é suscetível a esse tipo de argumento, precisa ter uma educação que desenvolva seu poder de crítica, sua autonomia, por isso insisto na importância da educação popular.
E você pensa em atuar nessa área no partido ou no governo?
Essa é uma pergunta… Eu hoje estou no partido, estou voltando pro partido. Porque acho essencial. Mas pretendo trabalhar no partido em parceria com o governo nesse processo de educação popular, vai ter que ter uma interface. Tem um problema que é o seguinte: governo não é neutro, governo é cooptador, ele absorve, ele é como aquelas máquinas de moer cana. O risco é você entrar cheio de suco e sair um bagaço para dar conta das finanças, da organização, da burocracia, do pragmatismo necessário. A tendência é a máquina te comer pelos micropoderes, você ser seduzido por isso, pela gravata que em Brasília te torna doutor. Manter a qualidade política, da democracia, é um desafio imenso. Quando o Lula fala em orçamento participativo na dimensão de um país como o Brasil, não é brincadeira. Mas tem um ano para organizar, porque seria para 2024, e também uma experiência acumulada.
A dos orçamentos participativos em São Paulo, Porto Alegre…
Sim, mas essa experiência foi se empobrecendo. As prefeituras do PT foram caindo em uma progressiva mesmice, houve uma mediocrização dos nossos quadros. Nós tínhamos os nossos generais que foram formados durante a ditadura. Eles trouxeram para o PT o acúmulo e a formação que tiveram naquele processo de 20 anos de luta. Tivemos também a chegada do sindicalismo combativo, que também tinha quadros. E a outra vertente, da qual eu faço parte, o povo dos movimentos sociais, da Igreja. Essa confluência foi um presente que o PT recebeu, gente pronta para a formulação. Mas nós não conseguimos dar continuidade a esse processo. Nós começamos a fazer educação popular lá no começo, tivemos a ousadia de criar um instituto, Paulo Freire participou: era o Instituto Cajamar que eu presidi por 4 anos. Mas só sobreviveu enquanto tinha dinheiro internacional, Solidariedade, centrais sindicais, Igreja. Quando acabou esse dinheiro, em 1990, 1991, com a queda do muro de Berlim, o partido que gastava dinheiro em eleições não quis gastar dinheiro com formação política. O instituto fechou, passou-se um longo tempo sem nada, depois criou-se a Fundação Perseu Abramo mas que tem outro objetivo, é mais um think tank, de pesquisa avançada. Depois, refundou-se a escola mas como um pequeno departamento dentro da fundação. Agora que estamos tentando retomar.
E o Instituto Lula? Que papel terá agora?
O Instituto Lula atuava mais na formulação de políticas, agora vamos ter que rediscutir. A ausência dessa formação fez com que, depois desses generais – uns morreram, uns tombaram como o José Genoíno, outros nos traíram como o Palocci – o partido perdesse conteúdo. O núcleo que está hoje em torno do Lula é bom, lutador, mas não tem esse acúmulo. Nem de luta nem de formação teórica. E nós fomos jogando nosso povo na arena dos leões da política institucional sem ter uma consistência político-ideológica para resistir às tentações da máquina. O PT foi perdendo um teor de formulação que agora dá trabalho recuperar. Por isso que eu estou querendo não ir para o governo, embora a tentação seja enorme, para focar nesse projeto de educação e comunicação popular. Ao meu ver, é dele que depende a democracia e a evolução das lutas sociais.
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