Será possível que um objeto histórico enorme, pensando 6 toneladas, desapareça dos olhos do público? É o que parece ter acontecido com uma moenda de cana fundida em Sorocaba, em 1841, bem antes do Barão de Mauá montar sua fundição em Niterói.
A importância dessa peça era bem reconhecida, já que foi exibida na Exposição Histórica do 4º Centenário de São Paulo, em 1954, que aconteceu no edifício que hoje chamamos de Oca, no parque Ibirapuera. No entanto, ela desapareceu em 1971.
Em 2020 ela foi procurada em museus como o do Ipiranga, da Cidade de São Paulo, o Catavento, do Açúcar em Piracicaba, da Cana em Pontal, e no extinto Museu da Tecnologia. Ninguém a viu em instituições como a USP, a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, no Instituto Agronômico de Campinas, no Centro de Cultura Canavieira, no Instituto Biológico, no Instituto Botânico, parque da Água Branca, Indústrias Dedini. Enfim, sumiu.
Seu desaparecimento começou a ser notado quando um artigo sobre a exposição histórica do 4º Centenário, publicado na revista Anais do Museu Paulista em 2018, foi lido por pesquisadores que estavam desencavando histórias em torno da fundição dos canhões que foram usados por Tobias de Aguiar na Revolta Liberal de 1842.
O artigo mencionava, de passagem, a presença de uma moenda de cana na tal exposição histórica. A menção era bem explícita, uma moenda fundida na Fábrica de Ferro de Ipanema, em 1841, pelo diretor João Bloem. Como se sabia tanto sobre essa moenda? Ora, estava escrito numa placa fundida junto com a moenda, como mostrava uma foto do acervo de Adolfo Frioli, um dos pesquisadores do grupo.
Essa moenda é muito importante para a história da indústria e da cana no estado de São Paulo. A Fábrica de Ferro São João do Ipanema foi a única siderúrgica que funcionou quase ininterruptamente no Brasil no século 19. Produziu milhares de toneladas de ferro fundido e forjado, atendendo especialmente aos arsenais do Rio de Janeiro e aos engenhos de cana das cidades próximas a Sorocaba.
Antes da existência das ferrovias, era muito difícil levar objetos pesados por distâncias muito longas, em lombo de burro. Muitos livros, teses e artigos já foram escritos sobre essa fábrica, mas não há nenhum exemplar conhecido dessas moendas.
O momento em que a moenda foi fabricada foi particularmente importante na história da fábrica, que recebeu recursos do regente Feijó para buscar técnicos na Alemanha e comprar novos equipamentos. Esse sucesso foi interrompido pelo envolvimento do diretor da fábrica com a revolta liberal, ocorrida em 1842.
O objeto poderia ser falso, uma criação moderna? A placa registra: "4ª Máquina Brasileira - Santa Cruz - Ypanema 1841 Bloem". Major Bloem era o diretor da fábrica em 1841. Ele escrevia Ypanema, com Y, nas cartas que enviada aos ministérios. Antigamente Brasil não era com z? Em 1841 escrevia-se com s. A redação com z é posterior, e voltou a ser com s a partir de 1930. Máquina com q? Não era "machina"? De fato, naquele momento a palavra era escrita das duas maneiras. Ou seja, aquela placa é compatível com a data pretendida. Além disso, as cartas escritas por Bloem mencionam a fabricação de moendas completas, com seu maquinismo.
Nos últimos dois anos, alguns pedaços do quebra-cabeças foram surgindo. Uma notícia do jornal O Estado de S. Paulo registrava, em 1925, que a moenda foi doada ao Museu Paulista por Pereira Ignácio, o dono da tecelagem Votorantim. O pessoal do acervo histórico do Museu Paulista encontrou confirmação do fato no relatório daquele ano e da inclusão da moenda na lista de 93 objetos emprestados para a Comissão Organizadora do 4º Centenário, chefiada pelo lendário Ciccilo Matarazzo. Um artigo na Folha, em 1980, mostra uma foto da moenda, mas não comenta sua localização.
O pessoal do Arquivo Wanda Svevo, da Fundação Bienal, que mantém parte importante do acervo daquela comissão, encontrou um folheto da exposição histórica sugerindo ao visitante conhecer a moenda. Nada mais. Sugeriram uma busca no Arquivo Histórico Municipal, que mantém a maior parte da documentação administrativa da tal comissão. Três horas de investigação nos títulos de 6.000 pastas daquele arquivo nada informaram sobre a devolução ou o destino daqueles objetos.
Encontrei um ofício que reclamava que a compra do carimbo URGENTE estava muito atrasada, mas nada sobre a moenda. Um documento solicitava à comissão o empréstimo de cadeiras e mesas para o Museu da Ciência. Museu da Ciência? Nem o Google confirmava que tivesse existido um Museu da Ciência em São Paulo em 1955. A administração do parque do Ibirapuera era uma confusão, Ciccilo criou uma tal União Cultural Ibirapuera, que reunia vários museus com administração privada. Jornais de 1960 noticiaram a composição da diretoria do Museu da Ciência, que incluía um certo dr. Aristóteles Orsini.
Pois não é que o dr. Aristóteles também foi diretor do Planetário do Ibirapuera! Agora o Google funcionou e encontramos um ex-diretor, Paulo Varella, que abriu uma nova porta! Paulo tinha até uma foto da moenda, de 1971, do tempo em que ele era estagiário do Planetário e do Museu da Ciência, que ficava no térreo e em parte do mezanino do Pavilhão da Bienal. Entretanto, o final do email informava que a Prefeitura entregou o prédio todo à Fundação Bienal.
O Museu não tinha para onde ser instalado. O email dizia que dr Aristóteles levou os objetos menores para o Planetário e distribuiu os objetos maiores para instituições que pudessem se interessar: "Telefones para o Museu da Telesp, o Ford 1923 para o Museu da CMTC, os gramofones talvez foram para o Museu da Imagem e do Som e creio que a chave elétrica foi enviada para a Poli (não tenho certeza). Infelizmente, não conheço o destino da moenda...".
Naquele momento, quem poderia se interessar pela moenda? Pesava seis toneladas. Era um trambolho, sem dúvida, ocupava espaço. Não é um objeto que se jogue no lixo. Estava bem identificado, com a data de 1841. Não pode ter sido sucateado. Foi levado para algum lugar e sumiu dos olhos do público.
Seria bom que pudéssemos voltar a apreciar uma máquina produzida pela indústria brasileira 180 anos atrás. Não éramos tão atrasados assim... Quem souber do paradeiro da moenda, por favor avise (f.landgraf@usp.br). Os pesquisadores estão desconsolados.
Fernando Landgraf é professor de metalurgia da Escola Politécnica (USP), presidiu o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de 2012 a 2018