sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Mover à toa ensina a mover com propósito, Suzana Herculano-Houzel - FSP

 Lá se vão mais de duas décadas, mas ainda lembro que olhar meus filhos recém-nascidos era uma experiência triplamente maravilhosa. Primeiro, pelo vínculo forte que meu cérebro felizmente formou de imediato com meus rebentos (nem todas as mães têm esta sorte). Segundo, pela apreciação da biologia que permitiu ao meu corpo produzir outro, e duas vezes seguidas, tópico que inesperadamente se tornou um dos meus objetos de estudo atuais e tema de vários buracos de coelho aos quais eu em breve vou levar meus leitores.

E, terceiro, devido ao que é o tópico desta coluna: embora estivessem agora fora do meu corpo, eu ainda assim identificava nos meus bebês os mesmos movimentos que eu havia sentido eles fazerem dentro da minha barriga. Era uma sensação mágica e surreal ver com os olhos o que até então eu só havia sentido pelas vísceras. Mas não duraram muito —e agora eu começo a entender o porquê, graças ao visitante mais recente que veio contar ao nosso instituto sobre o seu objeto de pesquisa.

Bebê recém-nascido dorme dentro de incubadora hospitalar, com sonda intravenosa no braço esquerdo. Ambiente clínico com equipamentos médicos ao redor.
Abalos hipnagógicos são aqueles tremeliques involuntários que às vezes são do corpo todo, fazendo a gente acordar se sentindo como se tivesse tropeçado, mas muitas vezes são só de uma mão ou pé - Tenzin Nyida - 9.jan.2025/Xinhua

Jimmy Dooley, professor assistente na Universidade Purdue, estuda os movimentos espontâneos do sono, chamados de "abalos hipnagógicos". Aqueles tremeliques involuntários que às vezes são do corpo todo, fazendo a gente acordar se sentindo como se tivesse tropeçado, mas muitas vezes são só de uma mão ou pé. Esses abalos costumam acontecer enquanto se sonha, razão pela qual se supunha que eles fossem causados pelo córtex cerebral falando sozinho e gerando ações sonhadas que o tal do núcleo reticular gigantocelular da coluna anterior felizmente impede a medula de passar adiante para os músculos —e assim a gente sonha sem risco de se machucar com as próprias ações.

Bebês ratos adormecidos também têm esses abalos que, para a surpresa de muitos, Dooley descobriu que vêm não do córtex cerebral, mas do núcleo rubro. O que chamou minha atenção, contudo, foi aprender que também os movimentos de bebês ratos acordados —aqueles movimentos lentos, aleatórios, descoordenados, tão parecidos com os dos humanos recém-nascidos— também são obra de atividade espontânea do núcleo rubro, e não do córtex cerebral.

A razão é simples: em bebês ratos e também humanos, o córtex motor ainda não está conectado com os neurônios motores na medula espinal, e, mesmo se estivesse, mal tem atividade. O córtex motor recém-nascido não é motor, não manda em ninguém, não faz nada acontecer. Pelo contrário, Dooley descobriu que, nos recém-nascidos, o córtex motor é... sensorial, sensível à contração muscular que resulta dos movimentos comandados pelo núcleo rubro.

Ou seja: a atividade dos neurônios corticais que um dia será causa de movimentos começa a vida como sua consequência, como se os neurônios corticais aprendessem a mandar nos músculos observando o núcleo rubro fazer isso primeiro. Conforme o córtex progressivamente aprende a tomar conta do controle dos músculos, aí sim as ações vão ficando refinadas, coordenadas e direcionadas. Mas como isso leva tempo para acontecer, a gente tem a oportunidade de ver com os próprios olhos os movimentos espontâneos organizados pelo núcleo rubro dos nossos bebês desde antes deles nascerem, no comecinho daquele longo processo de aprendizado com a experiência que molda o cérebro ao longo da vida.


Referências:
Dooley JC, Blumberg MS (2018) Developmental "awakening" of primary motor cortex to the sensory consequences of movement. eLife 7, e41841.


'Jay Kelly' diverte ao humanizar ator vivido por George Clooney, FSP

 

Jay Kelly

  • Quando 30/10, às 19h, na Cinemateca Brasileira; 5 de dezembro na Netflix
  • Classificação 14 anos
  • Elenco George Clooney, Adam Sandler e Laura Dern
  • Produção Estados Unidos, 2025
  • Direção Noah Baumbach

Quando surgiu no cinema dos Estados UnidosNoah Baumbach representou um sopro de juventude e inventividade, em suma como contraponto a um cinema carcomido pela inflação de super-heróis, guerras e violência.

Era a vida das pessoas que interessava. Mais tarde, a vida das bonecas, quando escreveu o roteiro de "Barbie", imenso sucesso dirigido por sua mulher, Greta Gerwig. E assim prossegue. Baumbach é também um cineasta da família. Assim, embora "Jay Kelly" se debruce sobre a história das dores da celebridade sentidas por um astro de cinema, tudo o que importa —ou ao menos o que mais importa— são as relações familiares.

Jay Kelly, papel de George Clooney, é um ator tão famoso e de boa reputação que chega a se olhar no espelho e ver Gary CooperCary Grant. Ao mesmo tempo, seu prestígio se encolhe dramaticamente quando tenta se aproximar de suas filhas.

A imagem mostra um homem de terno claro, sorrindo e olhando para baixo, em um ambiente noturno. Ao fundo, há um grande cartaz em preto e branco de um homem com cabelo estilizado, que parece ser uma figura icônica. A iluminação do local é suave, destacando o homem em primeiro plano e o cartaz ao fundo.
Cena de 'Jay Kelly', de Noah Baumbach - Divulgação

A mais velha carrega mil e um rancores do pai, tão dedicado ao trabalho e à glória quanto desinteressado por ela. Como a menina joga isso na cara de Jay com todas as palavras, ele sente o golpe. Tenta então se aproximar da filha mais nova, adolescente, que se prepara para passar as férias na Europa.

Para estar perto dela, Jay rompe o contrato que tem para o próximo filme e resolve viajar para a Europa. Não é difícil imaginar o desgosto de seu fiel agente, Ron, interpretado por Adam Sandler, que representa a ideia de profissionalismo cinematográfico, primeiro, mas também a de que o cinema é uma máquina e que, se você parar, está perdido, e se não parar também. Ron é um candidato ao enfarte em tempo integral.

Temos então a situação central do filme —Jay embarca apressadamente em seu jatinho, seguido de uma comitiva que inclui até cabeleireiro e maquiador. É a seguir que vem o coração do filme, ou a sequência mais empenhada —para melhor seguir os passos da filha, Jay e sua trupe embarcam na segunda classe de um trem europeu.

De tudo isso é obrigatório concluir que celebridade —algo mais que a fama— é um atropelo para a família. Ou se tem um, se tem outro. Jay se deleita encontrando os parentes, mas para Ron isso é uma catástrofe. Se um agente é o sujeito que segura as pontas para que os atores tenham sossego para trabalhar, o que pode ele fazer quando o ator desafia todas as normas que norteiam sua vida e resolve não trabalhar?

Ou seja, em vez de tratar a fama como um drama, Baumbach a trata como uma "screwball comedy", o que se chama no Brasil de comédia maluca. Esse gênero supõe a presença de ao menos um personagem excêntrico. E o personagem é justamente Jay. O contraste vem do agente, que sacrificaria tudo —a família, inclusive— para que triunfe a ordem do profissionalismo hollywoodiano.

Tanto o ator como o agente são excêntricos. Mas, de certa forma, o humor vem menos dos personagens do que daquilo que os circunda: as pessoas da trupe, o pai, a ex-mulher de Ron —papel de Laura Dern, numa aparição mais curta do que se poderia desejar. As situações aflitivas é que fazem o humor, mais do que Jay ou Ron. É o caso do encontro com a filha no trem europeu. Ele julga estar fazendo o certo, ao se aproximar da filha, mas está apenas atrapalhando o namoro dela.

Existe outro momento importante, ou que se deve assinalar, no filme. O encontro fortuito de Jay com o velho amigo, colega na escola de artes. Tudo começa com alegres lembranças, nas quais Jay constata que o feliz da história é o amigo, que deixou o teatro e o cinema para se tornar terapeuta e se dedicar à família e aos cachorros, enquanto para ele sobrou a glória e os aborrecimentos.

Mas o amigo não vê as coisas da mesma forma. O sucesso de Jay representa e amplifica o seu fracasso como ator, é motivo de ressentimento profundo, que destila pouco a pouco.

Pode-se dizer, não sem razão, que esses sentimentos a respeito de fama, fracasso e família não são o que de mais profundo o mundo —incluído o cinema— já criou. Pode ser. Mas o cinema de Baumbach sempre teve como alvo a diversão do espectador. Ele é bem clássico nesse sentido. E a família é o núcleo mais cultivado na atualidade, quando o mundo tende a se tornar hostil a quase todas as pessoas.

Assim, Baumbach visa o sentimento familiar a partir de seu oposto, isto é, da impossibilidade de um homem bem-sucedido como Jay Kelly acompanhar a vida de seus filhos, de tão ocupado que está pela tarefa de vencer na vida, trabalhando muito e relegando os entes queridos a segundo plano. A maior parte dos espectadores certamente não é tão bem-sucedida quanto o astro do cinema, mas entende bem o que é trabalhar para se manter —e manter a família— em boas condições.

Isso é o que pode fazer o interesse de "Jay Kelly", além do fato de ser agradável —não hilariante— e de dar o devido destaque a um dos maiores astros contemporâneos do cinema, George Clooney, além do sempre funcional Sandler.