terça-feira, 14 de outubro de 2025

Dora Kramer D- Obscuro objeto do saber, FSP

 Quando o presidente da República vem a público dizer que não pretende indicar "um amigo" para o Supremo Tribunal Federal, que optará por profissional do direito "gabaritado" a guardar a Constituição, involuntariamente expõe a distorção presente nessas escolhas. Há vários governos.

Não é, ou não deveria ser, uma opção o mandatário escolher pelo preparo substantivo para a função. É a Lei Maior que estabelece o critério de notório saber. Quanto ao requisito da amizade é o que, junto com confiança do Palácio, trânsito na política e agrado dos pares do STF, vem sendo posto à mesa das especulações sobre os atributos dos mais cotados.

Três homens em retratos próximos, cada um vestindo terno e gravata. O homem à esquerda fala ao microfone, o do centro olha para frente com expressão séria, e o da direita olha levemente para cima. Fundo neutro em cada retrato.
Da esq. para dir., o ministro do TCU Bruno Dantas, o advogado-geral da União, Jorge Messias, e o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG): nomes cotados para uma vaga no STF - Montagem

São três, como nos informa diariamente o noticiário: Jorge Messias, advogado-geral da União; Rodrigo Pacheco, senador pelo PSD de Minas Gerais; e Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União.
A respeito deles não se escreveu nem se disse palavra sobre o notório saber jurídico. É possível que tenham esses saberes que, no entanto, não se enquadram no conceito de notoriedade porque a respeito disso não se fala. A principal credencial fica, portanto, relegada ao plano das irrelevâncias.

De Messias, destaca-se a religião e a proximidade com o presidente; de Pacheco, o apoio do presidente do Senado e a simpatia de ministros do tribunal; de Dantas, o bom relacionamento nos três Poderes.

Tais requisitos prevalecem, são vistos com naturalidade e levados em conta com a maior seriedade —quando normal é que fossem secundários. Daí também decorre o fato de que meios e modos das sabatinas no Senado tenham sido incorporados à paisagem tropical.

A dinâmica tem mudado, embora não exatamente para melhor. Antigamente os rapapés reinavam e ultimamente seguem presentes, mas acrescidos daquelas manifestações feitas para cortes de internet. A consistência do debate atinente ao escrutínio do saber jurídico continua ausente.

A má notícia que não há chance de mudar. Do jeito que está é mais fácil para todos, poupa o trabalho de pensar.


Heleninha e a conivência com o alcoolismo, Joanna Moura, FSP

 Eu não estou vendo a novela. Também não cheguei a ver a versão original. Não porque sou desses seres metidos à besta que desdenha de novela e de tantas outras formas de cultura vistas como "menores" simplesmente por caírem no gosto do povo. Simplesmente não vi porque esqueci de renovar a assinatura do Globoplay. Caso contrário, certamente estaria vendo e, com isso, compreendendo plenamente os memes e participando mais ativamente das confabulações sobre quem matou Odete Roitman e o que deve acontecer no desfecho que se aproxima.

Mas essa semana, colocando em dia os episódios do podcast Mamilos do qual sou assídua ouvinte, me dei conta de que, apesar de não acompanhar "Vale Tudo", durante uns bons anos eu vivi um pouco do que é retratado ali.

No episódio, as apresentadoras Cris Bartis e Ju Wallauer abordam o fenômeno Heleninha Roitman e como a personagem, originalmente interpretada por Renata Sorrah e, agora, por Paolla Oliveira, reacendeu lá nos anos 1980 e segue reacendendo hoje o debate sobre alcoolismo. Participam do papo Camila Magalhães Silveira, psiquiatra da Unifesp e especialista em dependência química, e Mateus Gomes, secretário-geral do Grupos Familiares Al-Anon, associação de parentes e amigos de alcoólicos.

Paolla Oliveira é Heleninha Roitman em 'Vale Tudo'
Paolla Oliveira é Heleninha Roitman em 'Vale Tudo' - Reprodução / Globo

Não foi fácil escutar a conversa. Durante anos vivi um relacionamento com alguém que abusava do álcool. Mas foi só depois que este relacionamento acabou é que eu fui capaz de nomear a relação de dependência que aquele parceiro tinha com o álcool.

É que ele não era o cara que tomava uma dose de pinga logo pela manhã. Ele era o cara que matava uma garrafa de vinho toda noite e apagava na cama com a roupa do corpo. Quando a bebida entrava, ele não gritava nem dava show nem ficava violento. Pelo contrário, as pálpebras pesavam e seu corpo pendia de um lado para o outro em câmera lenta até que se deitava em algum canto e só acordava no dia seguinte. Ainda assim, eu não via o que estava diante dos meus olhos.

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Cris Bartis, Ju Wallauer e seus convidados tentam, ao longo da conversa, delinear as maneiras como ainda enxergamos o alcoolismo: ora como fruto da falta de força de vontade daquele que sofre da dependência, ora como doença crônica. Hoje, do alto do discernimento que só a distância entre o presente e aquele passado me confere, vou além: muitas vezes o problema é justamente o não enxergar.

Ele não enxergava. Afinal, o álcool estava naturalmente inserido em tantas situações de sua vida. Não era apenas aceito, era incentivado, era elegante, era sociável. Até que não era, mas a essa hora os colegas de trabalho já haviam ido embora, os que sobravam e presenciavam a cambaleância, o falar arrastado, uma ou outra cena embaraçosa, relevavam, davam risada, achavam excêntrico, rebelde, e faziam piadas no dia seguinte. "Lembra que o fulano achou ele dormindo no chão do banheiro?".

Eu também não enxerguei, ou preferi não enxergar. Talvez por imaturidade, talvez por falta de informação, ou talvez simplesmente por conveniência, fui conivente. A verdade é que sua relação com o álcool não atrapalhou suficientemente a minha vida para que eu me visse obrigada a encarar o problema.

Eventualmente a relação terminou, minada, entre outras coisas, certamente pela minha esvaziada paciência diante de um problema que dificilmente teria solução. Afinal, como tratar o que nem consideramos que existe?

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

A educação do futuro e os sete saberes de Edgar Morin, Gabriel Mario Rodrigues ABMES

 “Clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” (Italo Calvino)

Lúcido, apesar de seus 98 anos completados em 8 de julho, o visionário Edgar Morin não se cansa de debater a relação entre a razão e a emoção no pensamento complexo. Ele, que é um dos maiores sociólogos vivos, esteve no Brasil em junho deste ano para o 3º Congresso Socioemocional Liv, espaço para formação e aprimoramento de boas práticas em educação socioemocional.

Em 1999, a Unesco solicitou que o filósofo francês sistematizasse um conjunto de reflexões para repensar a educação para este século. O resultado foi o livro clássico, no sentido da epígrafe apresentada neste artigo, “Os sete saberes necessários à educação do futuro”[1]. Segundo Morin, esses pontos deveriam ser tratados em “toda sociedade e em toda cultura, sem exclusividade nem rejeição, segundo modelos e regras próprias a cada sociedade e a cada cultura”. Seria uma forma de, preservando nossa humanidade, nos posicionarmos frente aos avanços inexoráveis das tecnologias digitais, da realidade virtual e da inteligência artificial. Essas reflexões, por sua atemporalidade, continuam, quase vinte anos depois, ditando a tônica para uma sociedade e educação 5.0.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 24 de junho (Seguimos como sonâmbulos e estamos indo rumo ao desastre, diz Edgar Morin), ele diz:

“Não ensinamos a compreensão do outro, que é fundamental nos nossos dias, não ensinamos a incerteza, o que é o ser humano, como se nossa identidade humana não fosse de nenhum interesse. As coisas mais importantes a saber não se ensinam”.

Se a educação 4.0 traz a ideia de promover a integração entre o mundo digital e a tecnologia com a sala de aula, visando preparar os jovens para o mercado que irão enfrentar daqui para frente, a educação 5.0 une essa integração entre os dois mundos e conceitos de habilidades cognitivas à consciência socioambiental e à empatia (terceiro, quarto, sexto e sétimo saberes do visionário Morin).

Nunca é demais analisar esses saberes para verificar se estão válidos vinte anos depois, num mundo onde as tecnologias desenvolvem-se exponencialmente e o futuro é sempre um enigma. Por esta razão, pensamos que quem trabalha com educação precisa ter este livro como apoio paradigmático.

O primeiro deles – as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão – são erros mentais, intelectuais, da razão, cegueiras paradigmáticas que impedem de distinguir o real do ilusório, o objetivo do subjetivo, uma vez que se está, a todo o momento, exposto a erros de percepção ou de julgamento em relação à realidade exterior e em relação a nós mesmos. A educação do futuro deverá estar consciente da possibilidade do erro nos processos do conhecimento e elaborar saberes capazes de nos preparar para enfrentar as incertezas e as cegueiras.

Os princípios do conhecimento pertinente representam o segundo saber. Em face da imensa massa de informações que nos chega pelos mais diversos canais de comunicação neste mundo globalizado, é preciso sermos capazes de discernir quais são os problemas-chave, as informações-chave, os conceitos-mestres para que o conhecimento seja pertinente, capaz de promover uma relação entre o particular e o geral, a parte e o todo. Para isso, é necessária uma educação apta para lidar com realidades e problemas multidisciplinares, multidimensionais, transversais, globais, planetários, que promova a “inteligência geral”, as várias inteligências.

A educação do futuro formará o cidadão e o profissional apto a pensar e a trabalhar com o todo (que é mais do que a simples soma das partes, mas sua integração num todo dinâmico).

“A educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral. Este uso total pede o livre exercício da curiosidade, a faculdade mais expandida e a mais viva durante a infância e a adolescência, que com frequência a instrução extingue e que, ao contrário se trata de estimular ou, caso esteja adormecida, de despertar”, sentencia Morin.

O terceiro saber: ensinar a condição humana. A humanidade é una e diversa: traços da espécie nos unem; diferenças históricas e culturais nos diferenciam. Somos indivíduo/sociedade/espécie, somos razão/afeto/pulsão e somos também cérebro/mente/cultura, somos três relações simultaneamente. A educação do futuro deverá conscientizar as novas gerações de que devemos conservar a unidade, respeitando a diversidade humana.

Ensinar a identidade terrena é o quarto saber. Morin propõe que a educação do futuro ensine uma ética da compreensão planetária. Somos todos originários da mesma espécie, possuímos as mesmas características fundamentalmente humanas. A educação do futuro deverá ampliar os aspectos do processo inevitável de globalização e introduzir uma noção mundial mais poderosa: o desenvolvimento de nossas faculdades afetivas, morais e intelectuais em escala terrestre. Deveremos despertar e cultivar nas futuras gerações um sentimento de desvelo e pertencimento à terra, se não quisermos enfrentar a hecatombe previstas em tantos filmes de “ficção” científica.

“O surgimento do novo não pode ser previsto, senão não seria novo. O surgimento de uma criação não pode ser conhecido por antecipação, senão não haveria criação”, diz Morin, a respeito do quinto saber: enfrentar as incertezas.

Eduardo Benzatti, em seu artigo “A educação e os educadores do futuro”, apresenta, de forma resumida e comentada, a posição Morin e destaca:

“A educação do futuro ensinará que toda a ação é um jogo de inter-retro-ações entre o sujeito e o contexto, o sujeito e outros sujeitos, assim como ensinará que para jogarmos esse jogo, com suas probabilidades e improbabilidades, deveremos desenvolver habilidades cognitivas que possibilitem um pensamento criador de estratégias. Devemos renunciar ao programa fechado e privilegiar a estratégia que analisa as condições de cada situação e possibilita a flexibilidade para mudanças e correções de curso durante as ações empreendidas”.

Ensinar a compreensão é o sexto saber, a missão espiritual da educação. A educação do futuro deverá ensinar a compreensão mútua como condição e garantia da solidariedade humana. A educação do futuro deverá ensinar a ética da compreensão e assumir um compromisso total com o espírito democrático e aberto, para que a compreensão entre os indivíduos, os povos e as culturas possa florescer.

ética do gênero humano (antropoética) é o sétimo e último saber, que deverá perpassar toda a cadeia complexa responsável pela nossa essência humana: indivíduo/sociedade/espécie. Ela implica assumir a consciência e a condição humana, assumir o destino humano como incerto, trabalhar para a humanização da humanidade, alcançar a unidade na diversidade planetária, respeitar o outro na sua plenitude e humanidade, desenvolver a ética da solidariedade, da compreensão e do gênero humano.

Em suas conferências sobre o tema, Morin sugere que as universidades deveriam dedicar um tempo de seus cursos (dízimo epistemológico ou transdisciplinar) para refletir sobre a real pertinência e valor do que ensinam, e do conhecimento que propagam.

Esse dízimo usaria 10% do tempo de duração de cada curso para ministrar um ensino comum “orientado para o pressuposto dos diferentes saberes e para as possibilidades de torná-los comunicantes (...) ele [o dízimo] elaboraria os dispositivos que iriam permitir a comunicação entre as ciências antropossociais e as ciências da natureza”, explica Morin.

Essa, talvez, seja uma maneira de questionar constantemente nossos hábitos, nossas práticas educacionais – dentre elas, a formação de professores –, nossas atitudes enquanto educadores e mesmo o conhecimento que veiculamos ou julgamos ensinar.

A BNCC foi toda construída baseada nestes saberes. Acredito que cabe às instituições de educação superior, e em especial àquelas que formarão os educadores do futuro, refletirem sobre essas ideias. Já é um bom começo.

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[1] MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez/Unesco, 1999.