sexta-feira, 10 de outubro de 2025

O passe livre e o terraplanismo nacional, Gustavo Alonso, FSP

 Demorou 12 anos para o ministro da economia Fernando Haddad mudar de opinião sobre um assunto que deveria ser de suma importância para qualquer esquerda que deseje ser chamada de tal.

Em 2013, Haddad era prefeito de São Paulo quando estouraram na capital paulista e em todo o Brasil as jornadas de junho. Quem se lembra? Sem ser encabeçada por partidos, sem palanques ou carros de som organizados por movimentos tradicionais, as massas saíram às ruas exigindo transformações concretas na saúde, educação e sobretudo no transporte público.

Ônibus tarifa zero no terminal rodoviário de São Caetano do Sul (SP) - Zanone Fraissat - 1º.nov.2023/Folhapress

Era época da Copa das Confederações, espécie de prévia da Copa do Mundo, e os cartazes nas ruas pediam escolas e hospitais "padrão FIFA", iguais aos bonitos estádios construídos. Um governo supostamente de esquerda vinha retardando a entrega de benefícios à população, enquanto enchia (e ainda enche) os bolsos dos bancos de dinheiro.

O aumento de vinte centavos na passagem em São Paulo gerou um movimento que durou quase um mês e marcou profundamente a política brasileira, que teve que superar o bipartidarismo PT/PSDB para não ser tragada pelas massas ensandecidas. Não era "só pelos 20 centavos". Tratava-se de repensar o transporte público para benefício de uma cidade mais humana e integrada.

Fernando Haddad era prefeito e Geraldo Alckmin, governador. Embora então de partidos adversários, eles se uniram contra a proposta mais ousada daqueles manifestantes: a tarifa zero para transporte urbano. E a polícia paulista fez o trabalho sujo de calar os protestos. Dilma, então presidente, preferiu trazer médicos cubanos a mexer nas máfias do transporte público. Esquerda sem coragem, gestou o bolsonarismo.

Eis que esta semana, o repressor Haddad anunciou que a proposta de tarifa zero no transporte público deve integrar a campanha de reeleição do presidente Lula em 2026: "Estamos fazendo uma radiografia do setor a pedido do presidente. Ele sabe que esse tema é importante para os trabalhadores, para o meio ambiente e para a mobilidade urbana", disse Haddad.

A tarifa zero não é utopia. Como mostrou o pesquisador Roberto Andrés no Podcast Café da Manhã desta semana, já existem mais de 130 cidades pequenas e médias com transporte público gratuito, sendo 16 destes municípios com mais de 100 mil habitantes. Num universo de cinco mil cidades no país ainda é pouco, mas demonstra um horizonte possível para se implantar a tarifa zero do transporte público desde que um modelo seja discutido à sério nacionalmente.

Se de fato Lula defender esta bandeira na eleição de 2026, será um golaço. Mesmo que não consiga efetivá-lo por pressões do Congresso. Só o fato de colocar um tema tão importante em pauta já é um ganho enorme.

Quem sabe assim sairemos de nosso terraplanismo polarizado. A última discussão nacional esdrúxula desta semana foi sobre o cantor Toni Garrido ter mudado uma letra de sua canção que dizia: "Já que, pra ser homem, tem que ter/A grandeza de um menino". Ele próprio compositor da canção mudou a letra para "a grandeza de uma menina/de uma mulher", fazendo a autocrítica de um suposto machismo. A que ponto chegamos.

Diante de discussões tolas como essa, será um luxo debater o transporte público e tensionar para que outras correntes políticas emitam suas propostas discordantes. O que o bolsonarismo pensa sobre o tarifa zero? E qual a proposta dos liberais? O que um desenvolvimentista como Ciro Gomes, que na última eleição não tocou no assunto, pensa? Aqui em Recife, onde moro, um governo que se diz progressista como o do prefeito João Campos e foi reeleito com quase 80% dos votos não toca nas grandes empresas de ônibus da cidade.

Como esses atores políticos se posicionarão? Como o Haddad de 2013 ou o Haddad de 2025?

Seja como for, será um alento se não perdermos tempo com "mamadeiras de pirocas" da direita e delírios identitários das esquerdas nas próximas eleições. Tomara!


Boa sorte ao país que taxar bilionários, ironiza Deirdre McCloskey, FSP

 André Fontenelle

Paris

Na parede do escritório de Deirdre McCloskey há um retrato de Karl Marx. Não, a economista liberal americana não virou marxista, embora conte que na juventude chegou a achar que era.

O retrato é uma charge da revista conservadora National Review, em que o filósofo alemão aparece de MP3, fone de ouvido, copo Starbucks na mão e uma camiseta com os dizeres: "Still Wrong" ("ainda errado").

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Deirdre McCloskey, autora de 'Por que o Liberalismo Funciona' - Alexandre Mazo /Divulgação

"Eu digo a meus amigos conservadores: Marx era um ótimo pensador e acadêmico, e eles se irritam comigo. Viro para meus amigos progressistas e digo: mas Marx errou em quase tudo, e eles se irritam comigo. É por isso que não tenho amigos", disse à Folha, por videoconferência, de Washington.

Em "Por que o Liberalismo Funciona", livro que está sendo lançado no Brasil, ela expõe essa e outras ideias provocadoras, que a fazem ocupar um lugar à parte no pensamento econômico liberal.

Com estilo espirituoso, a professora do think tank Cato Institute e colunista da Folha defende o que considera o verdadeiro liberalismo, mais próximo dos ideais libertários dos revolucionários americanos de 1776 e franceses de 1789 do que do "novo liberalismo" e do socialismo estatizantes surgidos em meados do século 19.

O liberalismo original, para ela, hoje sofre ataques de todos os lados, da esquerda radical à direita trumpista. "Não vou usar aquela palavra com F, mas Trump é extremamente perigoso. Não é um pensador profundo, para dizer o mínimo, mas tem em volta pensadores profundos que querem um governo autoritário."

De maneira análoga à sua crítica de Marx, ela elogia a dedicação do badalado economista de esquerda Thomas Piketty, mas detona as propostas do francês para reduzir as desigualdades. Até aponta o que vê como erros primários de teoria econômica que Piketty teria cometido em seus livros.

"A energia do cara é incrível. Mas ele não entende as curvas de oferta e demanda. É típico dos economistas franceses, treinados em matemática de alto nível, mas que às vezes não entendem conceitos básicos."

McCloskey também é cética em relação à ideia econômica mais debatida na mídia atualmente: um imposto de 2% sobre o patrimônio dos mais ricos. A proposta é de outro economista francês, Gabriel Zucman, discípulo de Piketty. Em entrevista à Folha, Zucman defendeu que sua taxa seja adotada não só pela França, mas pelo Brasil.

Capa de 'Por que o Liberalismo Funciona', de Deirdre McCloskey - Divulgação

"Boa sorte com isso", ironiza McCloskey, para quem a tributação não daria o resultado esperado. "Os ultrarricos podem subir em seus iates e se mudar. A maioria dos muito ricos da Suécia mora na Suíça."

Em todo caso, o problema principal não está aí, segundo ela. "O caminho para a classe trabalhadora prosperar não é pegar um monte de dinheiro dos ricos e dar para os pobres."

Como "liberal moderna", McCloskey diz acreditar que, antes de resolver a desigualdade econômica, é preciso resolver a desigualdade de oportunidades. É esse liberalismo moderno, defende, que gera prosperidade.

Em outro postulado provocador do livro, ela cita a China comunista como evidência "do que o liberalismo econômico pode fazer", mesmo admitindo que aquele é um "país iliberal". "O que eles fizeram foi adotar um pedacinho de capitalismo. E assim como deu certo ainda mais em Singapura, deu certo na China. E agora está dando certo na Índia."

Nessa comparação, o livro deixa o Brasil em posição desfavorável. Mas McCloskey rejeita atribuir o atraso brasileiro apenas ao peso do passado colonial e da desigualdade racial.

"Faz muito tempo que o Brasil foi colônia de Portugal. Faz muito tempo que a Índia foi colônia britânica. Uma hora, você precisa começar a assumir a responsabilidade. Os países que fizeram isso se saíram bem. Um exemplo espetacular na África é Botsuana, que vai bem, e fica ao lado do Zimbábue, que é uma catástrofe."

A professora cita versos de "Um Homem É um Homem", de Robert Burns, poeta escocês do século 18: "O homem honesto, por mais pobre que seja/ é o rei dos homens".

"O argumento dele é o respeito de si", interpreta ela. "Você nem sempre terá sucesso na vida. Mas é preciso ter respeito de si e não sentir inveja do rico. E seguir em frente com seu trabalho."

A dignidade conferida pela liberdade é, segundo ela, o fundamento do verdadeiro liberalismo. É uma liberdade individual da qual ela mesma é exemplo, tendo feito a transição de gênero aos 53 anos, em 1995, quando já tinha consagração no campo da economia.

No livro, ela critica tanto progressistas quanto conservadores pela postura em relação aos direitos da comunidade LGBTQIA+. Para ela, é o verdadeiro liberalismo que propicia as melhores condições para o indivíduo assumir sua própria identidade, inclusive a de gênero.

É isto que Deirdre McCloskey faz do início ao fim do livro: uma defesa radical da liberdade humana.