segunda-feira, 22 de setembro de 2025

José Afonso, marco do direito constitucional, completa 100 anos e diz que STF melhorou, FSP

 

São Paulo

Considerado uma das principais referências no direito constitucional brasileiro, o jurista e professor José Afonso da Silva completou um século de vida nesta quarta-feira (30).

Acompanhado da filha e de um de seus dois filhos, recebeu a Folha para uma entrevista, a dois dias de seu aniversário, na casa que abriga seu escritório há algumas décadas no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo.

Falou sobre sua trajetória e temas que dominaram discussões recentes do mundo jurídico, como a atuação do STF (Supremo Tribunal Federal), da qual é um defensor, apesar de indicar ressalvas à origem do inquérito que despertou uma série de embates nos últimos anos.

"Acho que o Supremo salvou a democracia do Brasil atual, em umas duas oportunidades", afirma ele, para quem o tribunal antes era "estático" e "melhorou".

Autor de mais de 30 obras, José Afonso foi apontado em levantamento de 2013 como o doutrinador mais citado em decisões do STF. Foi homenageado pelo presidente da corte, Luís Roberto Barroso, durante sessão na última semana e também, nesta terça-feira (29), pela ministra Cármen Lúcia, em sessão no TSE (Tribunal Superior Eleitoral)

Um homem idoso está sentado, vestindo um terno escuro e uma gravata. Ele tem cabelo grisalho e uma expressão serena no rosto. O fundo é escuro, destacando sua figura. O homem segura uma bengala com a mão direita, enquanto a mão esquerda repousa sobre o colo.
O jurista José Afonso da Silva, que celebra 100 anos neste 30 de abril - Eduardo Knapp/Folhapress

Lançado em 1976, seu curso de direito constitucional chegou à 45ª edição no ano passado. "Esse é um livro que me agrada", diz ele, depois de contar que teve bastante trabalho para atualizar a obra com a Constituição de 1988 —texto este que ele ajudou a construir, como assessor jurídico na Assembleia Constituinte. Já sua obra favorita é o livro "Aplicabilidade das Normas Constitucionais", publicado em 1968.

Natural do interior de Minas Gerais, chegou a São Paulo em 1947, aos 22 anos, sem ter concluído o ensino primário. Na capital paulista, trabalhou como alfaiate enquanto completava os estudos.

Uma semana antes de celebrar seu centenário, recebeu o título de professor emérito da Faculdade de Direito da USP, instituição em que lecionou até 1995, e onde ingressou aos 27 anos como estudante, depois de ter sido aprovado no vestibular. No próximo dia 8, será homenageado em evento na faculdade.

A imagem mostra uma estante de livros organizada em prateleiras. Os livros estão dispostos em várias cores, com capas predominantemente em tons de azul, verde, vermelho e branco. As lombadas dos livros são visíveis, e alguns livros estão empilhados horizontalmente. A estante parece ser de madeira clara e está bem iluminada.
Estante de livros no escritório de José Afonso da Silva, com diferentes edições de alguns dos seus livros mais conhecidos, como seu curso de direito constitucional chegou à 45ª edição em 2024 - Eduardo Knapp/Folhapress

Em 2022, José Afonso se emocionou ao ser homenageado durante ato em defesa da democracia inspirado na célebre "Carta aos Brasileiros", lida em 1977 e da qual ele também foi signatário. Atuou ainda como procurador do Estado de São Paulo e ocupou cargos públicos, como o de secretário de Segurança Pública, no governo Mário Covas (PSDB).

Estavam presentes durante a entrevista seu filho Virgílio Afonso da Silva, que seguiu os passos do pai e é professor de direito na USP, e sua filha Helena Augusta. Ela conta que o pai segue revisando as próprias obras. "A gente liga na casa dele, às vezes nove e meia, dez horas, e pergunta ‘tá tudo bem, pai’? [E ele diz:] ‘Tô trabalhando’", conta. "É que o chefe dele é realmente muito bravo, né, pai? Seu chefe é muito exigente", brinca ela.

"O pior é que ele não paga bem", arremata o pai, ao que todos riem. Questionado sobre a frequência com que ainda trabalha, ele dá uma breve risada, antes de responder: "Eu trabalho todo dia". Contou também que pelas manhãs e à noite reserva cerca de 20 minutos para meditar, prática que leva consigo há algumas décadas.

Qual é o sentimento de completar um século de vida?
Eu me sinto, de certo modo, muito forte. Não tenho euforias, mas me sinto muito bem. Porque a saúde, de um modo geral, está bem. Então, chegar a essa idade com uma saúde razoável é muito bom. E isso me proporciona avançar.

O sr. é apontado como um dos doutrinadores mais citados em decisões do STF. A que credita esse feito?
Meu primeiro livro foi muito utilizado no Supremo. Então, eu fiquei conhecido no tribunal pelo meu primeiro livro, que é o do recurso extraordinário [no Direito Processual Brasileiro, de 1963]. E era também conhecido na magistratura em geral. Os juízes citavam muito o livro.

Isso abriu um certo conhecimento no Supremo. Nunca fui lá defender causa. Defendi embaixo, defendi na Justiça, mas no Supremo eu nunca fui lá fazer uma defesa oral.

Depois disso, eles começaram a olhar meus livros, a ler meus livros e aí a entender que havia alguma coisa que podia ser aproveitada neles.

O sr. avalia que trouxe uma nova perspectiva sobre as Constituições com seu trabalho?
[Houve] Uma fala do ministro Luís Roberto Barroso nesse respeito tem uns três dias [em 24 de abril] que ele diz, realmente, que eu trouxe uma contribuição renovadora para o direito constitucional.

Eu acho que eu trouxe, sim. Que isso possibilitou o surgimento de uma corrente modernizadora, renovadora do direito constitucional.

Acho que cabe aos outros agora, digamos assim, meu filho [Virgílio], por exemplo, tocar para frente.

Anteriormente, a gente pensava muito no direito constitucional do ponto de vista da organização do Estado. Uma renovação vem precisamente mudar isto. Para que a Constituição seja um instrumento de garantia dos direitos fundamentais.

O sr. participou da Constituinte. Agora, mais de 35 anos depois, o que o sr. vê como mais importante do novo texto e ponto mais fraco?
Acho que o mais importante é a declaração de direitos fundamentais da Constituição. Especialmente os direitos sociais também. Então esse é o ponto alto da Constituição. Ela tem uma boa declaração de direitos fundamentais. O ponto contrário é que também faltou criar determinados mecanismos para que eles [esses direitos] tivessem eficácia completa.

Como o sr. vê a atuação nos últimos anos do STF e também do ministro Alexandre de Moraes, que tem estado bastante em destaque?
O problema do Alexandre, eu acho que foi criado um mecanismo, não foi nem pelo Alexandre, foi pelo [Dias] Toffoli. Um inquérito que eu acho que não era bom.

Agora, eu não acho que o Supremo esteja errado em tudo. Só quem não conheceu o Supremo antes, que era estático, praticamente não via as coisas do ponto de vista mais humano, só depois disso que passou a ver.

Então o sr vê, de certa forma, a atuação do STF nos últimos anos como positiva, por não ser tão estática, mas também vê pontos negativos?
No meu ponto de vista o Supremo melhorou. O fato de ter um ministro ou outro fazendo coisa que não é tão apreciada não pode atingir o Supremo.

Eu acho que ele melhorou. Quem não conheceu [o STF] antes, que ele era estático… Posso estar até errado, mas acho que o Supremo salvou a democracia do Brasil atual. Acho que ele salvou em umas duas oportunidades.

Em quais?
No 7 de Setembro [de 2021] e no 8 de janeiro [de 2023]. Eu acho que ele salvou a democracia que nós temos.

O sr. considera que no 8 de janeiro houve uma tentativa de golpe?
Eu considero. Eu acho que houve. Eu achei que no 7 de Setembro [de 2021] também era uma tentativa de golpe. Só que não houve correspondência das Forças Armadas ao discurso do [então presidente Jair] Bolsonaro.

A interpretação que o STF faz sobre uma série de temas tem sido muito questionada por uma parte do campo político mais conservador, desde questões de costume a temas como o marco temporal. Há em certa medida uma crise em relação à Constituição e à forma como o Supremo a interpreta e os campos que estão atuantes na política no Brasil?
Eu acho que não. Eu acho que há uma divergência de interpretação, como sempre, entre conservador e progressista. Na Constituinte foi sempre assim também. Os conservadores certamente são menos propensos a aceitar certo tipo de política social. Os ruralistas querem tomar as terras dos índios e outras terras.

Quais são os principais desafios jurídicos que se colocam?
Um grande desafio para o futuro do direito constitucional é a realização dos direitos fundamentais em uma sociedade desigual como a brasileira, sobretudo com o objetivo de diminuir essa desigualdade.


Raio-X

José Afonso da Silva, 100

Professor emérito da USP, é autor de livros como "Curso de Direito Constitucional Positivo" (JusPodivm/Malheiros), que está na 45ª edição, e "Aplicabilidade das Normas Constitucionais" (Malheiros). Na Assembleia Constituinte, foi assessor do senador Mário Covas, então líder do PMDB. Foi secretário da Segurança Pública de São Paulo de 1995 a 1999.

domingo, 21 de setembro de 2025

Como educar nossos filhos diante da inteligência artificial?, Ronaldo Lemos, FSP

 Meu filho nasceu em julho de 2025. No dia do seu nascimento, o valor investido em inteligência artificial já superava US$ 1 trilhão (R$ 5,3 trilhões). Esse é o maior projeto da humanidade. Ultrapassa com folga a ida à lua, a criação da bomba atômica e todo o desenvolvimento da internet somados.

Se há algo que podemos afirmar a partir desses números é que nas próximas décadas vamos viver inevitavelmente no meio da inteligência artificial. Isso coloca uma pressão enorme sobre governos, empresas, organizações e, sobretudo, cada pessoa. Especialmente se você precisa educar alguém.

As escolas não estão preparadas para a tarefa e boa parte da responsabilidade sobre "o que fazer?" recairá sobre os pais. Vou compartilhar minha visão pessoal, especialmente porque vejo muita ansiedade sobre o tema.

A imagem mostra um grupo de crianças em uma sala de aula de informática. Elas estão sentadas em mesas, concentradas em seus laptops. Dois meninos estão em primeiro plano, um deles com uma expressão de surpresa ou curiosidade, enquanto o outro parece focado na tela. Ao fundo, outras crianças também estão usando computadores. O ambiente é claro e moderno, com fones de ouvido e cabos visíveis.
Crianças assistem a uma conferência sobre Inteligência Artificial em uma sala de informática da escola Yanchuan, no distrito de Zhangxian, na cidade de Dingxi da província de Gansu, no noroeste da China - Chen Bin 10.set.25/Xinhua

O desafio central é evitar que as crianças deleguem para a IA habilidades essenciais, a ponto de ficarem dependentes da tecnologia. A IA pode levar a um novo tipo de incapacidade. Para muita gente será difícil escrever, fazer contas, conversar, preencher um formulário, ficar em paz consigo mesmo, ou até se entreter sem algo derivado de uma máquina.

educação será bem-sucedida se evitar que a IA se converta em substituto da aquisição de habilidades, permitindo, ao contrário, que amplifique as habilidades adquiridas.

Vale lembrar a frase de Mcluhan: "O conteúdo de qualquer mídia é sempre outra mídia". As novas mídias absorvem as anteriores. A escrita absorveu a fala. O cinema absorveu o teatro e a literatura. A TV absorveu o cinema. A internet absorveu tudo isso. E a inteligência artificial absorveu a internet.

O resultado prático é: não deixe que ninguém diga que as habilidades que você adquiriu no passado se tornaram obsoletas. É o oposto. No contexto da IA, a formação de repertório e de habilidades torna-se mais essencial do que nunca. São fiadores dos espaços de autonomia possíveis.

Qual a idade em que uma criança deve começar a usar a IA? Uma boa resposta a essa pergunta aprendi na Estônia. O país está na liderança no teste PISA na Europa e é o mais avançado no uso da IA para a educação. As escolas do país oferecem a versão mais avançada do ChatGPT para todos os alunos. No entanto, só a partir dos 14 anos.

A constatação estoniana é que a criança até os 7 anos tem de aprender essencialmente uma coisa: ser gente. Regular seus sentimentos, aprender a conviver com outras pessoas, saber se vestir, se organizar, se alimentar, ter autonomia. Dos 7 aos 14 é hora de ensinar habilidades e repertório. A IA torna-se útil só a partir daí.

Outra dimensão é a ética. O uso da IA requer uma habilidade essencial: a prudência. A IA só é útil, inclusive profissionalmente, para quem a utiliza com prudência. Isso significa entender como ela funciona e seus resultados, o que inclui a capacidade de filtrá-los, refutá-los ou aceitá-los. Sem a prudência o uso da IA é um risco constante, que supera qualquer benefício.

Em suma, a tarefa de educar nossos filhos em face da IA é conseguir expô-los o máximo possível à vastidão, complexidade e contradições do conhecimento humano. Resistindo à sombra apaziguadora projetada pela IA.

Já era - achar que IA torna o conhecimento obsoleto
Já é - compreender autonomia frente à IA depende de repertório e habilidades
Já vem - cada vez mais necessidade de prudência no uso da IA

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Será que patinetes podem ser alternativas eficientes de mobilidade?, Mauro Calliari- FSP

 A pandemia causou o fim das operações de patinetes no Brasil. Agora, elas estão voltando e trazem velhos e novos desafios.

Em São Paulo, já são quase 5 mil patinetes. As empresas chamam o serviço de microbilidade; ou seja, a prioridade não é o lazer, mas os pequenos deslocamentos, principalmente entre o transporte de massa e o destino final.

Dezenas de patinetes elétricas na cor azul em praça
Prefeitura de SP liberou a volta das patinetes elétricas no município - Divulgação/PMSP

Será que as patinetes podem ocupar um papel relevante na rede paulistana de mobilidade ou serão sempre um brinquedo divertido para poucos?

A primeira limitação diz respeito à segurança. Patinetes elétricas aceleram rapidamente, mas como as rodas têm raio diminuto, qualquer desnível é um risco. Também é comum o conflito com bicicletas e, principalmente, pedestres.

A Prefeitura autorizou o serviço com algumas regras mais restritivas: agora, só pode uma pessoa adulta por máquina, não é permitido andar nas calçadas ou avenidas e as empresas instalam um bloqueador para não ultrapassar os 20 km/h.

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O problema é a falta de fiscalização.

A CET não tem como multar os infratores, apenas orientá-los e delega às empresas o ônus de fiscalizar os usuários. Na prática, isso significa que não haverá fiscalização alguma. Para piorar, a Prefeitura não mede, ou não divulga, o número de acidentes (a estatística internacional é de um acidente a cada 200 mil viagens) e, como se sabe, o que não se mede, não se controla.

A segunda limitação é escala, hoje reduzida a poucos bairros. Somadas, as empresas Jet e Whoosh têm pouco menos de 5 mil patinetes em funcionamento. Elas estão concentradas nos bairros onde há alto poder aquisitivo e estrutura de ciclovias, como Butantã, Ipiranga, Lapa, Pinheiros, Santo Amaro e Vila Mariana.

Essa base ainda pode se expandir, mas dificilmente chegará a bairros mais pobres. Há também o limite da disposição ao risco. Uma pessoa mais velha, carregando pacotes, dificilmente usará patinetes como modo de acesso para a estação de trem.

O custo é uma limitação em si. Cada patinete custa quase R$ 10 mil e a operação exige alto capital de giro para manutenção, troca de bateria e reposição por conta do vandalismo. Com isso, é difícil imaginar preços mais baixos do que os atuais R$ 0,70 cobrados por minuto. A pandemia decretou o fim das empresas como Lime e Grow, que investiram no crescimento rápido. As novas empresas, que operam em outras cidades e países, parecem mais conservadoras. A Whoosh é de origem russa com um sócio brasileiro e a Easy Jet tem sede no Cazaquistão e dono russo.

Finalmente, há também o impacto urbanístico. Antes da pandemia, as patinetes, assim como as bicicletas dockless, aquelas amarelas, eram deixadas por toda parte, transformando as calçadas em campos de obstáculos para os pedestres.

Hoje, a legislação obriga as empresas a demarcar uma área para estacionamento e cadastrar junto às subprefeituras. Já são 437 espaços demarcados.

Mais uma vez, o risco está na fiscalização, que depende das subprefeituras. Seu histórico recente demonstra falta de agentes para fiscalizar o que quer que seja, de buracos nas calçadas a comércio irregular. Torço para estar errado, mas o mais provável é que haja pouca fiscalização sobre as patinetes jogadas pelas calçadas.

É bom que haja alternativas de transporte para compor uma rede multimodal robusta e variada. As patinetes podem aumentar o número de alternativas de deslocamento, mas provavelmente sempre serão um transporte de nicho. Como tal, precisam de melhor planejamento e fiscalização do poder público para não virarem um risco e um estorvo.