domingo, 24 de agosto de 2025

O genoma social, Hélio Schwartsman - FSP

 Confrontos produtivos de ideias e o avanço da ciência podem ocorrer mesmo em ambientes ideologicamente carregados. Um bom exemplo disso é o debate "nature vs. nurture" (natureza contra criação).

Até um par de décadas atrás, a contenda servia como teste ideológico. Quem afirmasse que genes eram importantes para definir as características de uma pessoa era considerado de direita. O pessoal da esquerda defendia que eram variáveis ambientais, como alimentaçãoeducação etc., que explicavam o indivíduo.

Apesar do ruído de fundo, a discussão racional não parou e vai surgindo um novo consenso: genes e ambiente são ambos importantes e também são inextrincáveis. Genes influem em qual ambiente uma pessoa escolherá viver e ambientes influem sobre quais serão as características genéricas que favorecerão (ou prejudicarão) uma pessoa.

A imagem ilustra uma cena em um pátio escolar. No fundo, um grupo de meninos está jogando basquete. À frente, um grupo de estudantes está sentado em mesas, com algumas meninas tocando violão e outras desenhando. Há também um grupo de alunos lendo e conversando. O ambiente é iluminado, com janelas grandes ao fundo e um céu azul visível.
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman, esta que será publicada também na versão impressa da Folha deste domingo (24 de agosto de 2025) - Annette Schwartsman/Folhapress

"The Social Genome", de Dalton Conley, é mais um bom livro que tenta mostrar como ocorre essa complexa dança entre genes e ambiente, entre nature e nurture.

O autor começa na genética molecular, mais especificamente nos PGIs, os índices poligênicos, que permitem estimar predisposições genéticas para certos traços ou doenças, e os utiliza como ferramenta para reanalisar categorias sociológicas, como nível de instrução, classe social, expectativa de vida etc.

Uma das chaves explicativas do livro é a noção de homofilia, que é a tendência das pessoas de procurarem seus semelhantes. Se você gosta de estudar, se associará, na escola, a um grupo de colegas que também goste de estudar, o que provavelmente exacerbará sua predisposição inicial para o estudo. Isso vale não só para estudo, mas para várias outras características, incluindo hábito de fumar, peso corporal etc., que impactam sobre outras características, como renda, saúde e por aí vai.

Um dos achados intrigantes e contraintuitivos que Conley mostra no livro é que amigos têm entre si maior similaridade genética do que com indivíduos escolhidos ao acaso. É como se fossem pelo menos primos em quarto grau.


Microbiota, elo perdido da depressão, Marcelo Leite, FSP

 Há mais coisas entre as tripas e a cachola do que as sonhadas por nossa biologia –pelo menos a ciência biológica convencional, reducionista. A depressão, por exemplo, parece envolver bem mais que uma carência de serotonina no cérebro, incluindo até bactérias do intestino.

Antidepressivos como o escitalopram atuam barrando a reciclagem do neurotransmissor entre neurônios. São os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), classe surgida há quatro décadas alicerçada na noção de que transtornos mentais decorrem de desequilíbrios bioquímicos no cérebro.

Mais de um terço dos deprimidos não melhoram com os ISRS, indicativo de que mais fatores entram nessa inequação. Dois temas vêm ganhando atenção: eixo intestino-cérebro (que um pouco de humor converteria em "tripas-cachola") e microbiota (antigos diriam "flora intestinal").

A imagem apresenta uma figura humana em silhueta, de pé, em um ambiente nebuloso. A figura está voltada para a esquerda, com um fundo predominantemente branco e uma mistura de tons escuros e cinzas que sugerem a presença de fumaça ou névoa. A composição transmite uma sensação de solidão e introspecção.
Atichat /Adobe Stock

Nem sempre nos damos conta de que o sistema nervoso não se compõe só de cérebro e medula espinhal. Há neurônios espalhados pelo corpo, até em lugares insuspeitos como o sistema nervoso entérico. O SNE controla funções digestivas com células neurais alinhadas do esôfago ao ânus.

O controle ocorre de modo independente do sistema nervoso central, mas não em completa desconexão. Emoções podem desencadear conversas problemáticas entre SNC e SNE, como sabem todos que tiveram dor de barriga no primeiro dia de aula.

Como há conexão, influenciaria ela também os transtornos de humor, como depressão e ansiedade? Assim como se imaginou que o desequilíbrio químico no cérebro poderia causá-los, surgiu a hipótese de que o predomínio de certas bactérias na microbiota poderia exercer um papel na (piora da) saúde mental.

Dois experimentos de 2016, um na Irlanda e outro na China, testaram essa possibilidade. Ao se transplantarem fezes de seres humanos deprimidos para roedores saudáveis, os animais desenvolveram sintomas depressivos, como anedonia (deficit de interesse e de prazer).

O passo seguinte foi investigar se mudanças na microbiota poderiam também tratar a depressão. Em 2023, teste clínico conduzido por Valerie Taylor no Canadá transferiu fezes de pessoas mentalmente saudáveis para o intestino de pacientes com depressão resistente a tratamento, aqueles sem melhora mesmo depois de usar ao menos dois remédios antidepressivos.

Reportagem de Simon Makin numa série da revista Nature sobre o microbioma humano narra o caso de Andrew Moseson, que se curou de depressão grave com esse tratamento. O teste clínico não funcionou tão bem para todos os participantes, a sugerir que, sim, há mais vozes participando da conversa entre tripas e cachola.

Uma alternativa sob investigação é o uso de probióticos, preparados contendo espécies ou cepas de bactérias, como algumas do gênero Bacillus, cujo aumento na microbiota parece reduzir sintomas de ansiedade. Os resultados até aqui são mistos.

Resta muita coisa ainda por desvendar nessa comunicação polifônica entre bactérias e depressão. Uma coisa é certa: microrganismos têm papéis decisivos no corpo humano e nas doenças, como fica evidente pela participação do papilomavírus (HPV) no câncer de colo do útero e da Helicobacter pylori nas úlceras e nos tumores de estômago.

Juízes ambiciosos filosoficamente são maus juízes: autocontenção de juízes e o legado institucional do STF, Marcus André Melo, FSP

 "No geral, juízes ambiciosos filosoficamente são maus juízes." A afirmação é de Joseph Raz, em "The Politics of the Rule of Law", clássico sobre a interseção entre a política e o império ou regra da lei. A questão adquire suma importância em um quadro em que a ausência de autocontenção dos juízes do STF passa a ser tema de discussões cotidianas.

O último exemplo vem do ministro Flávio Dino, que debochou —em uma conjuntura crítica— das repercussões de sua decisão no mercado financeiro. Dele também aprendemos, na semana anterior, como funcionaria o sistema político brasileiro: "Nenhuma força política constrói hegemonia. Com o sistema estruturado como está, nenhuma força política governa o país". No que se seguiu proposta de mudanças como se agente político fosse. Aqui a ambição não é apenas filosófica. Estende-se sobre outros domínios.

A imagem mostra um grupo de quatro pessoas em um evento. Um homem de terno escuro, segurando um microfone, está sorrindo e falando. Ao seu lado, um homem de terno claro também sorri. Uma mulher com cabelo longo e liso, vestindo uma blusa clara, observa. Um homem de terno escuro, ao fundo, parece estar prestando atenção. O ambiente é bem iluminado e parece ser uma sala de conferências.
O ministro do STF Flávio Dino, ao receber o título de cidadão baiano - Thuane Maria - 22.ago.25/Divulgação GOVBA

Raz continua: "A exigência de justificativas públicas fundamentadas não é uma demanda por grande sofisticação filosófica". Trata-se de uma definição parcimoniosa. Ela não exclui a sofisticação analítica do juiz que pode ser um acadêmico reconhecido; antes, delimita a forma de justificação pública das decisões, o que tem grande impacto sobre sua legitimidade. "É uma exigência de justificação com referência aos valores e práticas compartilhados da cultura legal." Mas como falar de cultura legal ou constitucional quando a jurisprudência é volátil e as interpretações dependem em larga medida do julgador, como nas decisões recentes de Dias Toffoli?

Há clamor pela autocontenção. Mas, do ponto de vista de uma análise positiva, o que efetivamente importa é a estrutura de incentivos dos atores envolvidos. O hiperprotagonismo de agentes judiciais tem causas estruturais. Como argumentam Ferejohn, Weingast e Chavez, quando forças rivais controlam os poderes Executivo e Legislativo, as condições institucionais para a autonomia do Judiciário ampliam-se. E vice-versa.

O grau de controle hegemônico do Executivo sobre o Judiciário no Brasil é o menor da América Latina em um estudo cobrindo um século. E isso independe do desenho institucional. Historicamente Argentina, Brasil, Chile e México copiaram a fórmula dos Federalistas de nomeação dos Juízes da Suprema Corte pelo Executivo, ratificação pelo Senado e vitaliciedade. Nos demais, prevaleceu a escolha pelo Legislativo (em geral controlados pelo Executivo). Salvo Uruguai, isso não resultou em tribunais independentes, pelo contrário. Embora mandatos —em alguns países chegaram a apenas três anos— importem.

No Brasil, não escapou a Jacques Lambert, em 1966, que, executado o golpe militar, o regime acatou habeas corpus em nome de um inimigo político (Miguel Arraes) e optou pela solução rooseveltiana de aumentar a composição da corte, e não destituir o tribunal tout court , como era comum na região. A partir de 1988, a autonomia (relativa) foi brutalmente magnificada pela jurisdição criminal da corte (como mostrei aqui) e por padrão personalístico de nomeações. O resto é conhecido: tribunal e juízes hipertrofiados.