terça-feira, 13 de maio de 2025

Mulheres trans devem ser banidas do esporte?, Bruno Gualano, FSP (definitivo)

 Há um crescente número de leis —aqui e fora— que visam cercear direitos de pessoas trans, sob pretexto de proteger os direitos de crianças e mulheres e resguardar a liberdade religiosa. O esporte parece ser um dos temas favoritos dos legisladores. Levantamento desta Folha revelou que, dos 293 projetos de lei antitrans protocolados no Brasil em 2023, 47 eram vinculados à participação esportiva. Há pouco, Trump assinou uma ordem executiva que impede mulheres trans de competir em categorias femininas. A medida abrange o esporte no ensino médio e nas universidades, e pretende se estender aos Jogos Olímpicos de 2028, em Los Angeles. "Meu governo não ficará parado assistindo a homens espancarem e agredirem atletas femininas", protestou o mandatário, nem sempre reconhecido pelo seu lado feminista.

O Comitê Olímpico Internacional (COI) separa as modalidades em categorias masculina e feminina para assegurar equidade competitiva, segurança e promoção da igualdade de gênero no esporte, evitando que diferenças fisiológicas inatas determinem resultados. De fato, comparados a mulheres, homens têm maior massa muscular, capacidade cardiovascular e força, o que lhes conferem vantagens competitivas. Esse é o argumento mais comum para rechaçar a coparticipação de mulheres cis e trans na mesma categoria esportiva.

Uma jogadora de vôlei está sorrindo enquanto segura um troféu em uma quadra de vôlei. Ela está vestindo um uniforme preto com detalhes coloridos e tem tatuagens visíveis nos braços. Ao fundo, há uma plateia com algumas pessoas e cadeiras vazias, indicando que o evento pode ter acabado. A iluminação do local é intensa, destacando a jogadora e o troféu que ela ergue.
Tifanny Abreu, jogadora do Osasco Voleibol Clube, segura o troféu da Superliga de Vôlei, no Ginásio do Ibirapuera - Rubens Cavallari - 1º.mai.2025/Folhapress

Contudo, as terapias hormonais afirmativas de gênero —intervenções que envolvem prescrição de hormônios para aliviar o sofrimento de pessoas cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo designado ao nascer— tendem a modificar profundamente as características biológicas. Até que ponto mulheres trans apresentam vantagens fisiológicas quando comparadas às cis é um tema cientificamente controverso.

Em busca de respostas, realizamos uma ampla revisão sistemática com meta-analise de 51 estudos envolvendo mais de 6.000 participantes, cujo objetivo foi comparar aptidão física e a composição corporal entre pessoas trans e cis. O artigo foi publicado como preprint, ou seja, ainda aguarda revisão por pares.

Os resultados indicaram que homens trans tratados com testosterona exibiram métricas de massa magra e aptidão física intermediárias entre mulheres e homens cis. O estudo também revelou que mulheres trans que receberam hormônios femininos têm maior massa magra que mulheres cis, mas nenhuma diferença significativa em força e capacidade aeróbia.

Duas notas sobre esses achados. Em primeiro lugar, mais massa magra absoluta desacoplada de melhor eficiência neuromuscular não traz, necessariamente, vantagens atléticas. A bem da verdade, pode até prejudicar o desempenho em modalidades cujo desempenho depende de um peso corporal mais leve (natação, ciclismo, maratona).

Em segundo, o desempenho esportivo não se restringe à fisiologia, envolvendo também dimensões sociais, psicológicas e culturais. Evidências apontam que pessoas trans estão mais suscetíveis a transtornos mentais, associados ao estigma, à exclusão e à discriminação enfrentados em diversos contextos, inclusive no ambiente esportivo.

Não sabemos se a chamada "memória muscular" —possíveis adaptações fisiológicas duradouras à testosterona— poderia compensar o impacto negativo desses fatores psicossociais no desempenho. Contudo, a suposição de que mulheres trans possuem vantagens competitivas intrínsecas em relação às cis e, por isso, devem ser incondicionalmente banidas de toda modalidade esportiva, não encontra sustentação nas evidências disponíveis.

Nossa revisão também identificou diversas limitações nos estudos. A maioria não controlou adequadamente fatores como regimes hormonais, bloqueadores de puberdade, histórico de treino, dieta e nível inicial de aptidão física, demandando novas pesquisas.

A ausência de atletas de alto rendimento nos estudos foi outra lacuna apontada. Mas esta dificilmente será superada, porque homens e mulheres trans são raridade na elite do esporte. Lembremos que a halterofilista Laurel Hubbard foi a primeira mulher abertamente trans a competir nos Jogos Olímpicos —não no século 19, mas em Tóquio, 2021. E quem esperava por dominância, frustrou-se com o pífio desempenho da neozelandesa, que passou longe do pódio. O leitor, claro, pode puxar da memória casos de sucesso. Lia Thomas, a nadadora americana. Tiffany, a jogadora brasileira de vôlei. Mas quantas mais? Num torneio disputado exclusivamente por atletas trans —proposta dos que querem incluir segregando – o resultado mais comum seria o W.O.

A infundada fobia de que mulheres trans destruam o esporte feminino é engrenagem de um projeto maior de apagamento social. O esporte contemporâneo deve ser território de dignidade, diversidade, inclusão e não violência.

O livro que Leão 14 indicaria ao padre Júlio Lancellotti, Juliano Spyer, FSP

 Uma mãe jovem, com cinco filhos, mora em uma cidade empobrecida da Califórnia. À medida que seu filho mais velho avança na educação formal, ela percebe que a escola não o levará para a universidade, mas para o crime e/ou a drogadição. Então, decide mudar o rumo da família.

O novo papa, americano e sensível ao tema das desigualdades, se interessará pelo livro "Seeking Shelter: A Working Mother, Her Children, and a Story of Homelessness in America" (Em busca de abrigo: uma mãe trabalhadora, seus filhos e uma história de pessoas sem teto nos Estados Unidos), do escritor Jeff Hobbs, publicado no início deste ano.

A protagonista decide mudar a família para um bairro de Los Angeles onde a escola pública tem melhor qualidade. Mas comete um erro de cálculo e, pelos cinco anos seguintes, ela e as cinco crianças, de dois a 11 anos, viverão nas ruas ou em abrigos provisórios. A partir dessa experiência, o leitor é apresentado ao tema da desigualdade nos EUA e convidado a refletir sobre como lidar com o problema dos moradores de rua nas grandes cidades.

Uma mulher está em pé na entrada de uma casa, com uma expressão de atenção. Ela usa uma blusa colorida com estampas e um lenço na cabeça. A porta da casa é de madeira e está parcialmente aberta, revelando um ambiente interno. Ao fundo, há uma parede pintada de verde e uma porta de madeira desgastada. O chão está um pouco bagunçado, com alguns objetos espalhados.
Moradores são obrigados a deixar suas casas na favela do Moinho, em São Paulo - Danilo Verpa - 22.abr.25/Folhapress

Embora se passe em Los Angeles, cidade do cinema, o livro não conta uma história espetacular, mas algo comum e banal, sem promessa de final feliz. E o autor não molda seus personagens em uma narrativa de superação —tão típica do rótulo hollywoodiano. É a história de uma mãe que se divide entre os empregos possíveis e o esforço para proteger os filhos.

O autor mostra como um texto seco, sem sentimentalismos, quase exclusivamente descritivo e factual, pode produzir uma história de suspense. Fui fisgado desde o início pela maneira crua e direta com que ele conta os desafios cotidianos dessa família.

Nem jornalismo nem literatura nem sociologia: o livro escapa desses gêneros e, ao mesmo tempo, carrega o melhor de cada um.

Da sociologia, herda o interesse em examinar um caso com sobriedade e método. Do jornalismo, o desejo de abordar temas atuais da sociedade. E da literatura, a disposição para contar uma história. A leitura flui sem a interrupção de citações; as frases são simples, diretas e livres de jargão.

O autor entrega duas reflexões. A primeira é mostrar que não são apenas pessoas com transtornos psiquiátricos ou drogaditos que vivem essa experiência. É a mesma temática, por exemplo, do filme britânico "Eu, Daniel Blake", sobre um aposentado que, por um problema burocrático, quase é despejado.

A outra mensagem é sobre a solução que funciona melhor para reintegrar quem passou pela experiência de viver nas ruas.

Organizações bem-sucedidas têm, entre outras características, vínculo religioso. Pense na atuação do padre Júlio Lancellotti em São Paulo. Além disso, essas instituições atendem poucas famílias, garantindo que o acompanhamento —com treinamentos e assistência— continue mesmo depois de a família se reestabelecer.

O cristianismo aparece de modo discreto, sem proselitismo nem autopromoção. Por isso, não me surpreenderia se Leão 14 o recomendasse também ao vice-presidente J.D. Vance, católico como ele e que escreveu um ótimo livro sobre o descaso do Estado pelos pobres nos EUA.