domingo, 28 de abril de 2024

JOSÉ GOLDEMBERG Vivemos uma crise de energia elétrica?, FSP

 

0
Apagão na avenida São João, no centro de São Paulo, em um dos dias em que a Enel falhou na distribuição de energia - Otavio Valle - 21.mar.24/Folhapress - Folhapress

Esse cenário confuso dificulta a tomada de decisão para lidar com o problema. Mas há alguns fatos incontestáveis que podem ser utilizados para encontrar soluções.

O primeiro deles é que o Brasil produz eletricidade suficiente para atender todas as necessidades da população. Boa parte dessa produção é privada; aliás, sem que isso seja um problema para o fornecimento.

O segundo é que nós temos um excelente Sistema Integrado Nacional (SIN) de transmissão de longa distância que cobre praticamente todo o território nacional.

Em outras palavras, o setor não vive uma crise, embora os episódios recentes pareçam expressar.

Mas é um fato, também, que a eletricidade dos consumidores comerciais e residenciais é cara. Para se ter uma ideia, esse custo é maior do que em 34 países desenvolvidos, o que se explica pelos subsídios diretos (cerca de R$ 40 bilhões somente em 2023). Eles incluem a tarifa social para a população de baixa renda e para energias incentivadas —como as renováveis e termelétricas em regiões não conectadas ao SIN—, as perdas técnicas incluídas nas tarifas das distribuidoras, impostos e o valor da própria energia e da sua transmissão.

O resultado é que, do total arrecadado pelas empresas que fornecem eletricidade, apenas 20% ficam com elas de fato, tanto para cobrir as operações das redes de distribuição como em forma de lucro.
Essa situação tem se agravado por causa dos jabutis incluídos em diversas leis aprovadas no Congresso Nacional, privilegiando interesses dos lobbies que o Ministério de Minas e Energia (MME) não tem se esforçado tanto em barrar. Essa "fúria legislativa" resulta em alguns absurdos, como a instalação de usinas renováveis (eólicas e fotovoltaicas) sem nenhuma preocupação com a conexão delas com as linhas de transmissão do SIN ou de usinas térmicas a gás em locais onde não há esse combustível; ou, ainda, a renovação dos contratos de fornecimento emergencial com as termelétricas a carvão mineral.

É certo que distribuidoras bem geridas, sejam elas estatais ou privadas, podem enfrentar acidentes causados por temporais de forma muito melhor do que outras —como era a Light, em São Paulo, empresa privada com boa reputação pelo seu atendimento residencial e que foi substituída pela Eletropaulo (estatal), depois pela AES (privada) e, agora, pela atual Enel, que tem recebido muitas reclamações.

O problema, na verdade, está na tendência das empresas privadas em terceirizar serviços técnicos de manutenção sem a devida supervisão, como se fossem operações comuns. É então que a passividade do MME e da Aneel fica evidente, pois só depois dos graves problemas ocorridos em São Paulo no final de 2023, e há algumas semanas na região central da principal metrópole do país, que eles resolveram agir com severidade.

Ainda assim, estatizar o sistema de distribuição, como alguns têm defendido, não resolveria o problema.

Talvez até o agrave, pela falta de recursos públicos para investimentos em infraestrutura. Indispensável mesmo é fazer as distribuidoras entenderem, sob pena de sérias penalidades e até da perda da concessão, que os consumidores residenciais e o setor do comércio (sobretudo pequenos e médios estabelecimentos) precisam ser mais bem atendidos —e que, no caso de acidentes ou imprevistos inevitáveis, como temporais, por exemplo, que eles sejam ressarcidos pelas perdas econômicas rapidamente, sem uma longa tramitação na esfera judicial.

Isso já resolveria muita coisa.


Retrato da desigualdade, prédio com piscinas nas sacadas reflete decadência do Morumbi, FSP

 Clayton Castelani

SÃO PAULO

"Aqui ainda é bairro de rico, mas só tem pobre andando na rua", conta a recepcionista Maria Félix, 40, logo após sair do colégio particular de muros altos onde trabalha para atravessar a Giovanni Gronchi, avenida que separa condomínios de alto padrão no Morumbi da comunidade de Paraisópolis, na divisa entre as zonas oeste e sul da cidade de São Paulo.

Perto das 17h, a recepcionista engrossava a marcha de porteiros, empregadas domésticas e outros trabalhadores que tinham encerrado o expediente e seguiam a pé até a segunda maior favela da capital. A curta caminhada acontece à sombra do prédio cuja imagem das varandas com piscinas e vista para a comunidade é símbolo da desigualdade no país desde que foi publicada há duas décadas.

Morumbi e Paraisópolis, 20 anos depois

prédio suntuoso com pintura desgastada e manchas de infiltração ao lado de favela
prédio com piscinas cheias e quadras de esporte novas contrastam com área de favela

Imagens aéreas mostram varandas com piscinas do edifício Penthouse, hoje com pintura desgastada e cercado pela expansão de Paraisópolis; imagem feita há 20 anos se tornou símbolo do contraste entre ricos em pobres - Bruno Santos/Folhapress e Tuca Vieira - 20.jan.2004/Folhapress

O edifício Penthouse está longe de ter o mesmo status de quando foi fotografado em 2004 pelo fotojornalista Tuca Vieira, que na ocasião estava a bordo de um helicóptero para fazer imagens para reportagem da Folha sobre os 450 anos de São Paulo. Em vez do contraste entre glamour e precariedade, nos dias atuais, a fachada com tinta descascada, marcas de infiltrações em paredes e piscinas com água esverdeada remetem à falência de um modelo urbano que buscava redutos para uma elite interessada em viver longe das tensões sociais da cidade.

Nos anos seguintes à inauguração do condomínio, na década de 1980, a vista das sacadas construídas em forma de leque –para que recebam mais luz solar– mudou radicalmente, conta Francisco Serino, há 35 anos zelador de um prédio vizinho. As plantações foram substituídas pela ocupação irregular de retirantes que chegavam à capital para trabalhar, muitos em atividades domésticas nas casas dos ricos do Morumbi.

"Daqui para baixo só tinha chácara", aponta, perto do muro que separa o prédio da favela.

Outros edifícios também possuem aspecto decadente na margem esquerda do sentido bairro da avenida, embora a aparência do Penthouse esteja pior. É o reflexo da perda de interesse de locatários e compradores de imóveis dispostos a pagar para viver em apartamentos com mais de 300 metros quadrados naquela porção da cidade.

PUBLICIDADE

Em março deste ano, o Morumbi foi o segundo bairro da cidade de São Paulo com maior desvalorização acumulada no preço do aluguel em 12 meses. O recuo de 3,5% só não foi maior do que a queda de 5,1% da Vila Aricanduva, na zona leste, segundo dados da plataforma de locação imobiliária Quinto Andar. Na média geral do período, os aluguéis da capital paulista apresentaram valorização de 9,6%.

Além da fronteira com Paraisópolis, aquele trecho da Giovanni Gronchi tem do lado oposto da via outra comunidade fruto de ocupação irregular, a do Jardim Colombo. Perto dali, o único empreendimento imobiliário novo à venda não buscava compradores de alta renda.

Ao lado do edifício com piscinas suspensas, um novo conjunto de apartamentos em duas torres ainda em construção tinha unidades de 37 metros quadrados a preço abaixo dos R$ 200 mil, para que coubessem no bolso de beneficiários do programa Minha Casa Minha Vida. "Aqui tem que ser habitação popular porque os clientes consideram que está dentro da favela", conta o corretor Campos Ruiz.

No caso do vizinho famoso, o preço do apartamento ainda pode chegar a R$ 2 milhões, mas uma unidade foi colocada a leilão por um quarto desse valor (R$ 500 mil). Com apenas 13 apartamentos e taxa de condominial perto de R$ 5.000, o caixa do prédio ficou desguarnecido devido a quatro condôminos inadimplentes.

Um deles passou cerca de duas décadas sem quitar as obrigações e, além disso, bombardeou o condomínio com ações judiciais que atrasaram a tomada de bens para pagamento da dívida. Ele chegou a manter 18 ações simultâneas contra a administração.

Quem vive no prédio há anos não gosta da alcunha de decadente. É o caso da síndica, furiosa com a forma como o imóvel tem sido retratado na imprensa, segundo o funcionário que abriu o portão de ferro emperrado em uma das tentativas da Folha em falar com a gestora. Ela não atendeu nem respondeu aos telefonemas e mensagens da reportagem.

Representante em ações judiciais envolvendo o Penthouse até o mês passado, a advogada Priscila Cortez de Carvalho diz que o condomínio contratou um administrador profissional para tentar resolver a questão e que atualmente a maior parte das pendências judiciais está resolvida. "Há um plano de recuperação financeira", afirma.

Para quem observa a dinâmica do bairro, é difícil imaginar que ele voltará a ser atraente aos muito endinheirados, pois há questões que vão além do contraste entre classes.

Em uma cidade repleta de gargalos ao tráfego de veículos, o rio Pinheiros é barreira geográfica com importante influência na decisão dos grupos de maior renda para que busquem moradia em bairros mais centrais, explica o especialista em mercado imobiliário Daniel Sznelwar. "Houve uma mudança de comportamento, e o tempo de deslocamento passou a ser importante", comenta.

Pinheiros é exemplo dessa mudança de preferência. O bairro da zona oeste paulistana obteve valorização de 12,9% em 12 meses, segundo o índice de locação do Quinto Andar.

Com forte expansão imobiliária estimulada por incentivos públicos, Pinheiros tem ampla infraestrutura de transporte público e está tanto perto da região central quanto da área da avenida Brigadeiro Faria Lima e suas grandes empresas do setor financeiro.

Deslocamentos podem ser desafiadores às margens de Paraisópolis. Quando a reportagem esteve no Penthouse, a tentativa de chamar um Uber da porta do condomínio para retornar ao centro foi frustrada. Motoristas de aplicativo evitam aquele trecho, sobretudo num dia em que uma operação policial deixou uma criança ferida na comunidade. O trajeto de ônibus, lotado, levou 1h20.

O fotografo Tuca Vieira posa com a foto que fez em 2004 para especial de aniversário de São Paulo, na Folha - Diego Padgurschi - 3.fev.2016/Folhapress

Apesar da imagem emblemática, Penthouse e Paraisópolis não representam o verdadeiro abismo social brasileiro, diz Tuca Vieira, que além de autor da fotografia icônica, é doutorando pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

"Os muito ricos não moram naquele prédio, assim como aquela favela tem um dinamismo econômico que dá aos seus moradores melhores condições em relação aos de outras regiões pobres", comenta.

Vieira se mostra intrigado com o fato de o mesmo retrato feito há duas década ainda ser uma das principais representações da desigualdade. "Acho que os muito ricos estão ainda mais isolados, em condomínios como Alphaville", diz. "Talvez não exista outra imagem que a substitua porque a segregação pode estar ainda mais difícil de ser fotografada."