sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Mauro Calliari - O Sesc mudou a cara de São Paulo, FSP

 SÃO PAULO

Sesc é uma potência. Criado para melhorar a vida de comerciários, hoje vai muito além e faz parte da vida das cidades.

Se, na frente soft, oferece milhares de cursos, eventos, espetáculos, congressos e publicações, a parte hard é um legado de espaços imprescindíveis para as cidades. Só em São Paulo são 25 unidades.

O crítico de arquitetura Paul Goldberger diz que os espaços incríveis fazem a gente sentir algo na boca do estômago. Algumas das unidades do Sesc são capazes de produzir essa sensação.

Unidade do Sesc Pompeia na Água Branca, na zona oeste de São Paulo - Daigo Oliveira - 13.out.2016/Folhapress

O meu preferido, e imagino de muita gente, é o Sesc Pompeia, de 1986, um projeto de Lina Bo Bardi para uma fábrica desativada de tambores na Lapa. A pessoa entra e vai se desligando da rua, em meio aos tijolinhos e paralelepípedos. No galpão principal, a surpresa do espelho d´água. Na exposição de Sebastião Salgado, dois anos atrás, as fotos naquele preto e branco hiper contrastado pareciam flutuar no escuro.

Minha memória vai até algumas décadas atrás, sentado nas cadeiras estranhas para assistir aos shows de Luiz Melodia, Itamar Assunção e Rumo. Nunca entendi por que o teatro tem dois lances de cadeiras em direções opostas, que desafiavam os artistas a escolher para que lado olhar. Numa palestra lá mesmo, Lina contou que fez as cadeiras desconfortáveis de propósito, para que ninguém relaxasse durante os shows. Idiossincrasias de gênios...

No Belenzinho, projeto de Ricardo Chahim, de 2010, o que faz perder o fôlego é a massa humana, que toma as piscinas e que provocou a admiração incondicional do músico Tom Zé.

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Na unidade da 24 de maio, de 2017, com projeto do escritório MMBB e Paulo Mendes da Rocha, a beleza do prédio é a sua integração com a cidade. É uma praça aberta, sem os degraus, catracas e pórticos de outros prédios públicos ou privados que a gente vê por aí. O visitante circula pelos andares sem pressa. Lá embaixo, o teatro. Lá em cima, o mirante, e a vista surpreendente da cidade cinza.

Tem muitos outros, mas um deles especialíssimo –o Cinesesc, um dos poucos cinemas de rua que sobraram na cidade. Não é nada demais por fora, mas dentro tem o bar tem vista direta para a tela da sala de projeção. Em março de 2020, fiquei ali tomando café enquanto assistia tranquilo a "Amarcord", de Felini. Foi a última sessão antes de tudo fechar por conta da pandemia. Três anos depois, o cinema está lá, firme e forte, mesmo numa rua Augusta que está vindo abaixo.

E agora?

O sonho de qualquer organização é ter uma fonte de recursos constante. É o caso do Sistema S, que inclui Senai, Sesc, Sesi e outras, recebendo um percentual fixo –e compulsório- da folha de seus patrocinadores. No caso do Sesc, apenas no Estado de São Paulo é uma bolada de R$ 2,4 bilhões, um número maior que os orçamentos da Secretaria Estadual e da Secretaria Municipal de Cultura somados.

É surpreendente que todo esse dinheiro seja gerido por uma entidade privada. Mesmo com um conselho que inclui até o Tribunal de Contas da União, a missão do Sesc, de melhorar a qualidade de vida dos comerciários, poderia em tese transformá-lo num clube fechado e assistencialista. Foi assim no início, mas a gestão de Danilo Santos de Miranda, em quase 40 anos, optou por uma postura de se abrir para as cidades e para a sociedade. Basta comparar o impacto do Sesc na vida de São Paulo com o de seus congêneres Senai e Senac para ver que a estratégia deu resultado.

Suspeito que essa abertura funcione, voluntária ou involuntariamente, como um seguro contra as propostas cíclicas de mexer no destino do bilionário orçamento, que vem de contribuições obrigatórias. Enquanto estiver cumprindo eficientemente um papel de difusão de cultura e de acesso para os cidadãos, haverá sempre alguém para defender seu funcionamento e para evitar que outras bocas também queiram morder um pedaço do dinheiro, como a Embratur, por exemplo.

Depois da morte de Danilo, há quase um mês, vale a pena perguntar se vai haver alguma mudança nos rumos do Sesc. A pergunta se justifica pelo grau de centralização da organização e é mais relevante ainda diante da nossa carência de espaços públicos.

O Sesc tem a previsão de abrir mais seis unidades só na capital. A do Parque Dom Pedro 2° é tão importante que a própria prefeitura está concebendo um Plano de Intervenção Urbana para aproveitar o embalo que a nova unidade pode causar nessa região tão degradada. E, no lugar mais emblemático de São Paulo, virá a sede administrativa do Sesc, para o antigo prédio do Mappin, em frente ao Theatro Municipal.

O Sesc já afirmou que os planos anteriores seguem em frente. Vale a pena aproveitar o poderio econômico da entidade para ajudar a criar os novos espaços de convivência na cidade que tanto precisa.


Serviço público pune 12% dos acusados de assédio moral e 21% dos de assédio sexual, FSP

 Alexa Salomão

BRASÍLIA

O nome é fictício a pedido do entrevistado, mas a história é real. Manoel Cardozo é servidor de carreira concursado subordinado a uma autoridade de alto escalão do funcionalismo federal. Esse chefe é conhecido pela impaciência com os subordinados. Faz comentários jocosos sobre o desempenho da equipe. Todo o mundo releva com o argumento de que tem gente pior.

Há alguns meses, o chefe xingou Cardozo na frente dos colegas. Na sequência, o servidor adoeceu e saiu de licença.

Só então, alertado por um profissional de saúde, associou o mal-estar que o acometia ao sentimento de humilhação que se tornara recorrente quando pisava na repartição. Decidiu, então, protocolar uma denúncia de assédio moral e pedir transferência. Ainda aguarda a conclusão de suas demandas.

duas pessoas enfrentadas, uma delas cabisbaixa e a outra aponta o dedo indicador com cara de raiva. A ilustração tem o fundo com redemoinhos pretos rabiscados
Ilustração sobre assédio moral; estabilidade do serviço pública limita reação do funcionáro quando vítima de humilhação no ambiente de trabalho - Artsgraphiques.net - stock.adobe

Analisando os dados gerais sobre sobre esse tipo de procedimento no serviço público brasileiro, o desfecho dessa história ainda pode ser favorável ao chefe.

Essa tendência foi identifica na pesquisa "Servidoras e Servidores Públicos contra Assédio e Violência no Trabalho: Limites da Estabilidade do Mecanismo de Proteção".

Trata-se do mais amplo estudo do gênero já feito no Brasil, com dados consolidados para o Poder Executivo na União, nos estados e no Distrito Federal, entre 2022 até outubro de 2023.

A pesquisa foi encomendada pela República.org, entidade que fomenta a qualidade no serviço público, para dar luz ao tema, e será apresentado nesta sexta-feira (24) na Flip, a festa literária internacional, em Paraty (RJ).

"Acreditamos que a valorização do servidor público passa por discussões sensíveis como a do assédio, mas isso demanda dados para dar consistência às análises. Não havia um recorte tão detalhado quanto o que conseguimos com essa pesquisa", diz Vanessa Campagnac, gerente de dados e comunicação da República.org.

"O assédio no setor público requer um atendimento mais específico por causa de caraterísticas particulares da atividade, como a estabilidade e a convivência mais prolongada das equipes em alguma área ou função."

raio-X sobre o assédio mostra lacunas nos órgãos públicos para apurar as denúncias e punir os responsáveis.

A advogada Myrelle Jacob, que coordenou a pesquisa, afirma que um dos entraves é a morosidade. Desde o relato do eventual ilícito nos canais de denúncia até a instauração de algum procedimento administrativo transcorrem-se, em média, 500 dias.

O relato vai passar pelo crivo de uma ouvidoria, ser chancelada para corregedoria antes de chegar à fase de investigação.

Em um dos poucos trabalhos que compara esses trâmites nos setores público e privado no Brasil, realizado pela pesquisadora Margarida Barreto, identificou-se que 60% dos processos nas repartições públicas podem se prolongar por 36 meses. No setor privado, essa taxa cai para 4%.

Barreto relatou que chegou a encontrar casos de assédio em empresa pública com duração de oito anos, enquanto na empresa privada o máximo foi de um ano e meio.

A morosidade pode ser um fator que desestimula a denúncia.

Os dados coletados demonstram que, no ano passado, por exemplo, foram feitas 3.638 denúncias de assédio no âmbito do Executivo federal, uma fração do todo. Esse segmento conta com 1 milhão de servidores, cerca de 560 mil excluindo estatais.

"O número de denúncias é absurdamente baixo", diz a pesquisadora.

O levantamento também identificou uma maior propensão a denúncias sobre humilhação e constrangimento públicos. Do total das denúncias, 82% foram classificadas como assédio moral e 18%, como assédio sexual.

No entanto, apesar de haver mais queixas de assédio moral, o número de punidos, proporcionalmente, é inferior.

No caso do assédio moral, 12,3% das pessoas denunciadas receberam algum tipo de penalidade, com demissão de 1,5%. No caso do assédio sexual, 21,3% dos denunciados sofreram alguma penalidade, sendo que 9,4% foram demitidos.

A falta de um conceito detalhado para assédio moral, a ausência de previsão legal para o tratamento desse tipo de importunação e a tendência a ser considerado uma forma mais branda de assédio seriam algumas explicações para a baixa taxa de punição, explica a pesquisadora.

"Os números mostram como é difícil que uma denúncia leve efetivamente à abertura de um processo administrativo, mas a gente não tem clareza sobre o que ocorre no trâmite. Não é possível saber em que ponto uma denúncia foi arquivada", afirma Jacob.

A margem de reação do servidor assediado tem limitações judiciais. Se não se sentir atendido em um pleito administrativo, ele pode recorrer a um processo civil ou criminal, mas não à Justiça do Trabalho, uma vez que seu contrato não é regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

Na maioria dos entes federativos, o servidor faz a sua denúncia de assédio no mesmo canal em que a população reclama do buraco na rua

Myrelle Jacob

advogada e coordenadora da pesquisa

Sobre os estados e o Distrito Federal, todos, segundo a pesquisa, têm algum tipo de canal de denúncia pela internet, mas apenas Minas Gerais instituiu um canal especifico.

"Na maioria dos entes federativos, o servidor faz a sua denúncia de assédio no mesmo canal em que a população reclama do buraco na rua", afirma Jacob.

No aspecto legal, a pesquisa identificou que quase metade dos governos estaduais ainda não tem estruturas aptas para atender o servidor que se sente assediado.

Dos 26 estados, 14 deles, além do Distrito Federal, adotaram legislações que tratam de assédio na administração pública. Desagregando por tema, o assédio sexual foi regulamentado por 5 unidades federativas, em comparação ao assédio moral, que ocorreu nos 14.

Apenas 2 estados definiram o conceito para assédio sexual (Amazonas e Rio Grande do Sul) e 12 descreveram o assédio moral (Acre, Ceará, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Tocantins, Rondônia, São Paulo e Sergipe).

Acreditamos que a valorização do servidor público passa por discussões sensíveis como a do assédio, mas isso demanda dados para dar consistência às análises. Não havia um recorte tão detalhado quanto o que conseguimos com essa pesquisa

Vanessa Campagnac

vice-presidente do conselho da República.org

Para além das estruturas de atendimento, Jacob questiona premissas sobre a temática.

O conceito de assédio, por exemplo, se restringe a relações entre as pessoas e o efeito de processo no trabalho, sem considerar a discriminação racial e de gênero.

"Na avaliação de uma denúncia, assédio moral, assédio sexual e discriminação são tratados como questões diferentes, mas na realidade não são. A discriminação não é um ato isolado, mas uma das raízes do assédio", afirma Jacob.

Outro ponto que incomoda a pesquisadora é o fato de as normas sobre o tema no serviço público não considerarem casos isolados de violência psicológica como assédio.

"Normalmente, assédio está associado a repetição de conduta, mas a gente sabe que um único ato, a depender de sua gravidade, já pode ser suficiente para afetar o emocional e o desempenho de um servidor."

Homem preso sem provas por 172 dias vai receber R$ 80 mil de indenização, FSP

 SÃO PAULO

O governo paulista foi condenado pela Justiça paulista a pagar uma indenização de R$ 80 mil a um homem que ficou 172 dias preso por um crime que não cometeu.

Júlio Assis (o nome é fictício para preservar a sua identidade) foi preso em seu local de trabalho em fevereiro de 2022 na cidade de Guarulhos (SP) sob acusação ter cometido crime de extorsão.

Ao ser algemado, nem mesmo sabia qual era a acusação. Seu rosto foi exposto em um programa de televisão no qual o apresentador dizia que ele tinha cara de psicopata. Durante a investigação, o portão de sua casa foi derrubado por policiais, que levaram sua mulher em trajes noturnos para a delegacia sem que ela pudesse mudar de roupa. Enquanto estava na prisão, perdeu 30 quilos e sua família passou a enfrentar dificuldades financeiras.

Ilustração com imagem do WhatsApp - Dado Ruvic/Reuters


Júlio, no entanto, não tinha relação nenhuma com o crime. O verdadeiro culpado era um antigo colega que havia utilizado seu nome e sua foto em um perfil de WhatsApp para chantagear a empresa de alimentos na qual ele trabalhava.

O criminoso alegava possuir provas de contaminação em um produto fabricado pela empresa e exigia um pagamento de R$ 5 milhões para não as divulgar. Durante o processo criminal, ele confessou ter agido sozinho.

Ao condenar o governo paulista, a Justiça destacou que Júlio foi absolvido diante da ausência total de provas e que ele foi preso indevidamente, tendo sofrido uma evidente agressão à sua dignidade.

O governo paulista ainda pode recorrer. Na defesa apresentada à Justiça, o Estado afirmou que não houve engano na prisão. Disse que havia, no momento da denúncia, elementos suficientes para aferir a participação de Júlio no crime.