domingo, 19 de novembro de 2023

Promiscuas parcerias, Muniz Sodré ,FSP

 


Cena de interesse acadêmico para a operação de GLO no Rio: a Polícia Federal prende um criminoso, cuja escolta eram dois policiais militares e um sargento do Exército. Se, por hipótese, o ato se estendesse à estrutura de sustentação do absurdo, seria preso também algum vereador, algum deputado, algum promotor, algum juiz.

Promiscuidade é palavra-chave para se entender a expansão local do crime. O fenômeno pode evidenciar-se em outros estados, mas a imprecisão dos limites fluminenses entre poder oficial e criminalidade beneficia-se de uma transfusão inatingível por planos pontuais de segurança pública.

Marinha do Brasil começa o patrulhamento reforçado de portos no Rio de Janeiro e em São Paulo para combate ao crime organizado através de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) - Divulgação - 6.nov.23/Marinha do Brasil

A palavra-chave não é, em princípio, negativa. A cultura carioca sempre foi promíscua no sentido de trocas aleatórias entre estratos sociais diferenciados por formas de vida migrantes. Espremida entre mar e morros, a cidade soube combinar aportes europeus com costumes e atmosfera afetiva da colonização negro-nordestina. O samba, o Carnaval e o ethos praieiro resultam de criativa promiscuidade cultural.

Hoje isso cobra um preço perverso. O ser carioca, ou guanabarino por demarcação do antigo estado da Guanabara, sofreu metamorfose cívica ao se transfundir com a vida política do interior fluminense. É que, em meados dos anos 1970, a ditadura militar fundiu dois estados de características urbanas e culturais muito diversas. O pior do arcaísmo político chegou à praia. Não por diversão, mas para gerir poderes de Estado.

Os anos 1980 —"década perdida", por estagnação da economia e elevação da dívida pública— foram tempo de ganhos para a contravenção no Rio. Empoderados, os bicheiros incrementaram as relações com a polícia e fizeram das escolas de samba seu cartão postal.

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Com a estreia massiva da cocaína, quadrilhas e armas pesadas substituíram os folclóricos "donos dos morros". Chico Buarque viria a cantar que "o malandro aposentou a navalha". E deu lugar ao oficial, eleito. Em tempos recentes, narcomilicianos passaram a controlar territórios e votos, mafializando o poder. Chegou-se a condecorar assassinos de aluguel. Nos últimos dez anos, cinco governadores entraram em cana.

Tem sido imprudente a tolerância ao crime. Mas a negação eufórica da realidade crua, estado de espírito sal-sol-sul carioca, arrefece diante do terror das praças de guerra e dos poderes antagônicos ao Estado formal, embora de mão comum com o informal: uma mão lava a outra, sem que as duas lavem o rosto. A face suja do estado-bandido é maquiada pela coalizão que abre as asas sobre o circo midiático e a violência desenfreada nas ruas. Uma GLO realista deveria partir do fato de que o berço do samba é o mesmo berço político do pior. O fato de que, promiscuamente, estamos fundidos.

Viola no baú, Ruy Castro FSP

 


Essa conversa dominical sobre a sigla "MPB" (5/11 e 12/11) me fez lembrar sua estranha fixação inicial pela viola. Não a viola erudita, prima severa do violino (este, soprano; ela, contralto), mas a viola brasileira, caipira, cabocla, sertaneja, como tecnicamente a chamam. Rara a música de sucesso entre 1966 e 1972 que não falasse em viola. E tome de viola principalmente naqueles finais apoteóticos dos festivais da canção, que levantavam as massas nos auditórios.

Em "Disparada" (1966), de Geraldo Vandré e Theo de Barros: "Vou pegar minha viola/ Vou deixar você de lado/ Vou cantar noutro lugar!". Em "Ponteio" (1967), de Edu Lobo e Capinam: "Quem me dera agora/ Eu tivesse a viola pra cantar/ Ponteio!!!". Em "Roda Viva" (1967), de Chico Buarque: "A gente toma a iniciativa/ Viola na rua a cantar/ Mas eis que chega a roda viva/ E carrega a viola pra lá...".

Em "A Estrada e o Violeiro (1967), de Sidney Miller: "Sou violeiro caminhando só/ Por uma estrada, caminhando só...". O apogeu da viola foi, todos sabem, "Viola Enluarada" (1968), de Marcos e Paulo Sergio Valle: "Viola em noite enluarada/ No sertão é como espada/ Liberdade!...". E por aí seguiu a brilhante carreira da viola no nosso universo poético, até que, em 1972, o insuspeito Paulinho da Viola resolveu aposentar a dita cuja: "Minha viola vai pro fundo do baú/ Não haverá mais ilusão...".

Como Theo, Edu, Chico, Sidney, Marcos e Paulo Sergio e Paulinho eram cariocas e não se viam violeiros à solta em Ipanema, imagino que quisessem dizer violão —aliás, o instrumento deles. Talvez viola soasse, digamos, mais autêntico.

O fato é que, desde então, a viola foi evaporada do cancioneiro nacional. Nunca mais ouvimos falar dela. É verdade que o próprio cancioneiro nacional também foi evaporado, ou quase. E, se a viola continua a ser citada, agora nas letras dos sertanejos de butique, é problema dela.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Fracasso econômico e sucesso eleitoral, Marcos Mendes, FSP

 


Neste domingo (19) se realizará o segundo turno da eleição presidencial da Argentina. Um fato surpreendente é que o candidato peronista, ainda que possa perder, mostrou-se competitivo, mesmo sendo ministro da Economia em um contexto de crise e inflação descontrolada. Um feito e tanto, mesmo considerando que o adversário exótico assusta e leva muitos eleitores para o peronismo, como opção "menos pior".

Na coluna de 28/1/2023, citei o artigo "Populist Leaders and the Economy" (Manuel Funke e coautores, 2022), que mostra que governos populistas conseguem ficar mais tempo no poder que os "não populistas", ainda que seus mandatos gerem piores resultados econômicos. O peronismo é um caso extremo de resiliência associada à decadência econômica.

A chave do sucesso político parece estar na criação de benefícios visíveis a diferentes grupos sociais, como subsídios nos preços e financiamentos, tributação favorecida e transferências de renda.

As distorções se acumulam, o déficit público cresce, a inflação sobe, o crescimento não vem. Recuperar a economia passa por remover ou redesenhar os benefícios.

Mercado de frutas na Villa 31, uma das maiores favelas da Argentina, na região central de Buenos Aires - Guillermo Adami/Folhapress

Isso coloca os eleitores em um dilema. Se votar em outro candidato, na esperança de reformas que melhorem a economia, e o plano não der certo, o eleitor fica no pior dos mundos: com inflação, com crise econômica e sem o seu benefício. A campanha de Massa, por exemplo, alertava em anúncios nos transportes coletivos que, se Milei ganhar, o subsídio acabará e a passagem ficará 10 vezes mais cara.

Propagandas de Sergio Massa em parada de ônibus em Buenos Aires; em uma delas, Maradona veste camiseta com imagem de Juan Domingo Peron - Juan Mabromata/AFP

A vacina que as democracias usam para evitar essa armadilha é o uso de regras que, ex-ante, submetem a expansão de políticas públicas à realidade orçamentária.

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Essa foi uma das funções da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) aprovada no Brasil no ano 2000. Em seus artigos 14 a 17, a LRF estabelece que, para propor qualquer benefício fiscal ou programa público que reduza receita ou aumente despesa, o governo precisa, pelo menos, dizer quanto custará essa nova política e como ela será financiada.

Isso é uma condição básica. Muitas outras são necessárias: quais os detalhes de implementação, os riscos, a razões para escolher esta política em detrimento de alternativas que levariam ao mesmo resultado etc.

No entanto, desde a sua aprovação, a LRF vem sendo enfraquecida e desrespeitada. Nem a exigência mínima dos artigos 14 a 17 é cumprida: políticas públicas são criadas sem que se saiba quanto custarão ou como serão pagas. Isso abre as portas para a profusão de benefícios específicos e nos conduzem à "armadilha argentina".

Por exemplo, recentemente o governo propôs a medida provisória 1.162/23, reformulando o programa Minha Casa Minha Vida, que foi convertida na lei 14.620/23. Além de ampliação geral dos subsídios do Tesouro aos financiamentos habitacionais, a lei autoriza que famílias beneficiárias do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) recebam moradias sem pagar: 100% de subsídio. Tendo em vista que são mais de 20 milhões de família no Bolsa Família e 4,5 milhões de beneficiários do BPC, há que se estimar o custo potencial. Mas nada foi dito a respeito.

A exposição de motivos da MP diz que a aprovação da matéria não teria custos a serem computados nos termos dos artigos 16 e 17 da LRF, porque eles só ocorreriam no futuro, quando da regulamentação. Mas na regulamentação (portaria MCID 1248/23) não foram explicitados os custos. A MP tramitou no Congresso e todos os pareceres louvaram a sua "adequação orçamentária e financeira".

Afinal: quanto vai custar? Ninguém disse.

Não se trata de ser contra o subsídio a pessoas pobres. Benefícios para a alta renda estão sendo criados com essa mesma sem-cerimônia, como a desoneração da folha de pagamento de empresas, as isenções tributárias para hotéis, restaurantes e igrejas ou o aumento do financiamento dos partidos políticos.

Na Argentina, foi tudo financiado por emissão monetária e gerou o surto inflacionário. Aqui está sendo financiado por dívida pública, resultando em juros altos, baixo crescimento e concentração de renda.