domingo, 19 de novembro de 2023

ESTADÃO / EDUCAÇÃO Ele foi PM, jogador de várzea e agora é reitor: ‘Dinheiro não livra a gente de sofrer racismo’’, Gonçalo Junior OESP

O menino José Vicente não via muitas opções quando olhava para o horizonte do Morro do Querosene, na periferia de Marília, interior de São Paulo. O caminho normal da vida era ser boia-fria como os pais, colhendo café ou laranja e cortando cana. Mas não bem era isso que queria.

O caçula de seis irmãos desejava mesmo ser jogador de futebol, outro lugar possível para pretos, pobres e periféricos. O ponteiro canhoto habilidoso ensaiou uma carreira promissora no Marília Atlético Clube, ganhou o apelido de Cafuringa, referência a um jogador das antigas, mas ele não tinha dinheiro para esperar que a salvação viesse de um olheiro.

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, trabalha pela construção de um museu da memória negra em São Paulo
José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, trabalha pela construção de um museu da memória negra em São Paulo Foto: Alex Silva/Estadão

Descobriu que era um bom driblador também com as palavras, com poesias e letras de música. Era tão habilidoso foi o 2º colocado no Festival Estadual da Música no final dos anos 1970, com apresentação do ex-locutor Osmar Santos – ele se lembra até hoje - e entrega do troféu pelo cantor Fagner. Mas a mãe, dona Isabel, falou que poesia não enchia barriga de ninguém.

Foi nessa época que a Polícia Militar de São Paulo abriu concurso público. Nunca foi seu sonho, mas o salário de soldado era dez vezes maior que o de um boia-fria. Além disso, ele “podia colocar o revólver na cinta e falar grosso”. Foram cinco anos nas baratinhas, os antigos veículos militares, trabalhados em paralelo ao curso de Direito em Guarulhos, na região metropolitana. Quando terminou a faculdade, pediu baixa na PM.

Como advogado criminalista nos anos 1990, defendeu jovens negros e começou a lutar por bolsas de estudos. O projeto cresceu para um cursinho preparatório e hoje se transformou em uma universidade pioneira voltada à inclusão racial no ensino superior. Desde 2003, a Zumbi dos Palmares já formou cerca de 5 mil jovens, a maioria negros. Em parceria com o Estadão, a instituição também terá um curso para formação em Jornalismo.

Foi assim que Cafuringa virou o reitor José Vicente, hoje com 63 anos. Mas a maneira como pensa o menino preto da periferia de Marília que se tornou um dos líderes antirracistas mais conhecidos do País merece ir além do resumo.

Continua após a publicidade

Combate pragmático ao racismo

Nos últimos anos, o professor foi um dos pioneiros do movimento “Cotas sim”, sobre a adoção de ações afirmativas no Brasil, em particular no ensino superior público. Esse movimento despertou a atenção de muita gente para o tema racial.

Outra ação importante, a adoção do feriado estadual em São Paulo para a Consciência Negra, neste dia 20, foi outra bandeira que ergueu anos atrás. Até uma rua próxima à universidade passou a receber o nome do próprio líder histórico do quilombo de Palmares, em Alagoas.

Diante dessas medidas práticas, que mexem no cotidiano dos negros, o Estadão pergunta se ele prefere uma luta antirracista mais pragmática e objetiva. “Precisamos debater, reivindicar e denunciar. Mas precisamos de foco, direção e objetividade. Se não, a gente vai fazer um bom debate, mas não consegue tornar real nenhuma das ações que o debate estrutura. Sempre tivemos essa preocupação: a da ação direta”.

José Vicente, quando ainda pertencia à Polícia Militar, e sua mãe, Isabel Lopes
José Vicente, quando ainda pertencia à Polícia Militar, e sua mãe, Isabel Lopes Foto: Arquivo pessoal

Mesmo com esses avanços, o reitor mostra cautela. “Estamos avançando, mas ainda muito lentamente e superficialmente na questão racial. É um momento enriquecedor e oportuno, mas a presença do negro ainda é limitada nos espaços de decisão”.

Vicente fica com um pé atrás porque ainda é discriminado diariamente. Quando ele estaciona sua Mercedes preta num hotel de luxo para uma palestra, os funcionários pedem para ele ir mais adiante, abrir espaço para a chefia, como se fosse um motorista esperar alguém. No momento em que entra na sala de reuniões, ele conta que sente os olhares de estranhamento, como se estivesse na sala errada.

Continua após a publicidade

Na saída, os participantes do próprio evento entregam a chave do carro como se ele fosse manobrista. Não há demérito algum em ser motorista ou manobrista; a questão é imaginar que negros e negras não possam ocupar outras posições, além dessas. “Na percepção deles, um negro de terno e gravata só pode ir buscar o carro, não pode ser o proprietário. Dinheiro não livra a gente de sofrer racismo”, relata.

Vicente não se descobriu negro na época em que era apenas Cafuringa. Vivia só “a luta diária para defender a subsistência” e entender que o mundo era assim e já estava definido. Também não foi na época da PM. “Isso é curioso. Você vestia a capa de policial e as questões raciais não atravessavam o nosso olhar. Foi no curso de Direito que comecei a perceber, principalmente nas eleições para os diretórios acadêmicos.”

O professor José Vicente foi soldado da Polícia Militar de São Paulo enquanto estudava Direito
O professor José Vicente foi soldado da Polícia Militar de São Paulo enquanto estudava Direito Foto: Arquivo pessoal

O reitor trabalha agora pela construção de Museu da História do Negro em São Paulo. Depois da concordância do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o museu vai ocupar a antiga sede do Centro Paula Souza, patrimônio público construído no século 19, tombado e localizado nas proximidades da Estação de Metrô Tiradentes, no Bom Retiro, região central.

Os recursos para restauração e manutenção do imóvel ficam sob a responsabilidade da Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (Afrobras), do qual o professor é presidente do Conselho de Fundadores.

“O órgão estuda, técnica e juridicamente, a elaboração de uma proposta que permita o uso do prédio para instalação do Museu da História do Negro, um importante acervo cultural e histórico para o Estado”, informou o Centro Paula Souza.

Mesmo ocupado com a atuação em tantas áreas, Vicente diz que a poesia nunca ficou de lado. O professor conta que ainda se aventura na ficção (prometeu revirar seu baú e depois mandar uns versos para a reportagem).

Continua após a publicidade

“Essa veia poética sempre esteve em mim. De vez em quando ainda sai algo. A poesia é uma mais elaborada, de passar sua mensagem. Não só sobre sentimentos, mas sobre a vida.”

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares 

Ouse buscar a verdade sobre drogas, queimadas e crise climática, Marcelo Leite, FSP

 A moça ao lado tem tatuagem no antebraço esquerdo que diz: "Sapere aude". Um lapso de memória impõe consulta à memória coletiva in silico, que informa a tradução esquecida para o dístico latino: "Ouse saber".

Provérbios costumam encapsular sabedoria acumulada por gerações, guardam o fumo da verdade. Onde há fumaça há fogo. Nesta primavera escaldante, uma dose dupla de fumacê pode contribuir para desanuviar os olhos da mente.

Primeiro, a fumaça da Cannabis. Informar-se sobre maconha e seu potencial de benefício à saúde interessa a todos. Quem não tem ou conhece alguém com depressão, ansiedade, insônia, dores, câncerAlzheimer ou Parkinson?

Flores de maconha e óleo de CBD importados com autorização da ANVISA
A maconha está vencendo preconceitos. E por ippon - Pedro Ladeira - 29.jun.23/Folhapress

Seja pela via da pesquisa biomédica, com seus endeusados testes clínicos aleatorizados e controlados, seja pela experiência anedótica de portadores e seus parentes (o adjetivo mais adequado seria "traumática"), a maconha está vencendo preconceitos. E por ippon.

Quem afirma é Sidarta Ribeiro, neurocientista que se ergueu como intelectual público, condição nem sempre benquista por luminares da ciência normal e seus assessores na imprensa. Está no livro "As Flores do Bem – A Ciência e a História da Libertação da Maconha".

Cabem aqui dois avisos a navegantes. Um: cultivo relações próximas com Sidarta, que começaram como fonte de informações e evoluíram para fonte de amizades. Dois: temos a mesma editora, Fósforo, que lançou em 2021 meu "Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira", com prefácio dele.

PUBLICIDADE

Seu livro é de utilidade pública. Lastreia com fartas referências científicas e relatos tocantes as propriedades das irmãs CBD e THC (analgésicas, anti-inflamatórias, antiespasmódicas, anti-isquêmicas, antieméticas, antibacterianas e antidiabéticas da maconha) obscurecidas por uma muralha de racismo estrutural, proibicionismo fracassado e bom-mocismo acadêmico.

No imaginário social, a maconha está marcada como droga de pretos e pobres. Embora consumida por brancos de todas as classes, há quem acredite piamente que a liamba esteja na raiz das supostas indolência e violência atribuídas às favelas e periferias.

A obra faz jus ao bem-apanhado título "As Flores do Bem". Lá estão as referências dos estudos e as explicações sobre por que pesquisas promissoras não avançam mais, em particular num país demófobo como o Brasil. O maior senão do livro é que não será lido pelos cultivadores do pânico moral.

Outra cortina de fumaça esclarecedora cobre no momento boa parte da Amazônia. Embora o desmatamento tenha recuado 42,5% nos primeiros sete meses do ano, comparados com igual período de 2022, as queimadas estão comendo soltas.

Parece contraditório, mas não é. Detritos de derrubadas em alta nos fatídicos anos Bolsonaro deixaram de ser incinerados, por causa do excesso de umidade. Com a estiagem inaudita no bioma, grileiros —primeiro elo na cadeia de devastação amazônica— correm a tocar fogo na biomassa, agora mais inflamável sob ar seco.

O fumo da verdade não dá descanso nem a quem tem os olhos bem abertos. Como narrou Meghie Rodrigues na revista Nature, a ecóloga brasileira Erika Berenguer, da Universidade de Oxford, estudiosa da vulnerabilidade da floresta ao fogo, foi escorraçada por ele.

Berenguer estava na região do Tapajós quando se viu envolta pela fumaça, dia e noite. Teve de abandonar o trabalho de campo por dez dias. "Eu estava mais sem fôlego do que quando tive Covid", disse Rodrigues. "Isso é envenenamento coletivo."

Queimamos combustíveis fósseis e as florestas, alimentando a fornalha do efeito estufa e do El Niño, que impelem a mata amazônica para um ponto de não retorno na espiral de ressecamento. Cegos brincando com fogo.


Política industrial como direito adquirido, Samuel Pessôa, FSP

 

Meu colega André Roncaglia, que ocupa este espaço às sextas-feiras, na coluna passada demonstrou entusiasmo com a política pública de aumentar a tarifa de importação de carros elétricos para estimular a produção local.

Há duas condições necessárias, mas não suficientes, para que a política tenha alguma chance de funcionar. Primeira, que ela tenha data para terminar. Segundo, que tenha metas de exportação.

A produção de um bem somente é sustentável se conseguimos atingir um mercado muito maior do que o brasileiro. Em particular, uma linha de produção de automóvel somente será competitiva se a produção for em torno de 300 mil unidades por ano.

Empresa aluga carregador para carro elétrico
Carro elétrico sendo carregado em estacionamento - Zanone Fraissat - 2.ago.23/Folhapress

Devido à diversidade da demanda, o mercado brasileiro exclusivamente não sustenta uma indústria competitiva: nosso mercado é de 3 milhões de unidades, e a demanda é muito mais diversa do que somente dez modelos.

Tradicionalmente, a grande crítica que se faz aos esforços da política industrial (PI) é que um burocrata não consegue escolher os vencedores. O que funcionará? Não é possível saber de antemão.

No entanto, em um recente trabalho, "The new economics of industrial policy", Réka Juhász, Nathan Lane e Dani Rodrik lembram que a exigência sobre o gestor público é menor. Segundo os autores: "Na presença de incerteza, tanto sobre a eficácia das políticas quanto sobre a localização/magnitude das externalidades, o teste final não é se os governos podem escolher "vencedores", mas se eles têm (ou podem desenvolver) a capacidade de deixar os "perdedores" irem embora".

PUBLICIDADE

Ou seja, o desenho da política pública precisa prever a possibilidade de a política não funcionar. O setor público precisa ser capaz de se desapegar da política.

Essa é uma das maiores limitações para a prática da PI por aqui. Como escrevi na coluna de 1º de outubro, quando nos comparamos aos países asiáticos, há três aspectos que dificultam o emprego de PI por aqui.

Primeiro, temos escassez de capital humano e físico. Em geral, os setores que se deseja desenvolver usam intensamente fatores de produção escassos, o que encarece a política.

Segundo, o Estado brasileiro não tem demonstrado ter a capacidade da autonomia embutida —estar próximo ao setor privado, para ser capaz de destravar obstáculos, e, simultaneamente, ser independente dos interesses particulares.

Terceiro, temos enorme dificuldade de nos desfazer de políticas públicas. No Brasil, tudo se transforma em direito adquirido imediatamente. Uma política é iniciada e nunca nos desfazemos dela, mesmo que ela não tenha funcionado.

Como bem lembrado por Alex da Mata em um tuíte na semana passada, há uma quarta distinção quando nos comparamos aos países asiáticos. Estes sempre valorizaram a abertura para o comércio internacional, fator essencial para que a industrial automobilística seja autossustentável.

Por exemplo, a política de desoneração da folha de salários foi iniciada em 2011, no governo Dilma, com o objetivo de ajudar setores da indústria de transformação na competição com a China. Era para ser uma política temporária até que a indústria brasileira absorvesse os efeitos do ingresso da China na OMC.

Com o tempo, inúmeros setores foram sendo incorporados, e hoje o foco da política são setores intensivos em trabalho que produzem bens para o mercado doméstico e que não sofrem concorrência externa, pois são bens não comercializáveis internacionalmente. Não há nenhum estudo sério que mostre que a política de desoneração da folha de salário gera empregos.

A desoneração da folha de salários se mantém como uma política pública somente devido à ação dos grupos de pressão que defendem o interesse localizado à revelia do interesse coletivo. Oxalá o presidente Lula vete a recente renovação da desoneração da folha.